EXÍLIO E
CRIATIVIDADE
Texto de Vilém Flusser
Desenho de Lígia Milagres
Este ensaio não se propõe a examinar as conotações existenciais e religiosas do termo exílio, embora o que for dito aqui possa ecoar o que a tradição cristã chama de exílio do paraíso, o que os judeus místicos chamam de exílio do espírito divino do mundo e o existencialismo entende por ser estrangeiro no mundo. Tais desdobramentos estarão implícitos em todo o texto, cuja intenção é abordar o exílio como um desafio à criatividade.
Eis a hipótese proposta. O exilado foi arrancado (ou arrancou-se) de seu ambiente costumeiro. Costume e hábito são um véu sobre a realidade. Em nossa rotina, nos atentamos para as mudanças, mas não para o que permanece fixo, que é redundante. Mas no exílio tudo é incomum. O exílio é um oceano de informação caótica. A ausência de redundância no exílio não permite que as informações sejam absorvidas pelo exilado. Para poder viver, o exilado deve primeiro transformar a tempestade de informações em torno dele em mensagens significativas; ou seja, deve processar dados. Trata-se de uma questão de vida ou morte. Se ele não for capaz de processar dados, será inundado e consumido pelo tufão do exílio. Processar dados é sinônimo de criação. Para não perecer, o exilado deve ser criativo.
Antes de defender a hipótese, gostaria de atentar para o fato de que ela traz uma valoração positiva do exílio e da expulsão. Frente à costumeira piedade com a qual tratamos os exilados, tal valoração positiva já é incomum e informativa. Porque se evidencia, de acordo com esta valoração, que aqueles que tentam ‘ajudar’ os refugiados a se adaptarem estão de fato enquadrando-os em sua própria ordem, tornando-os ordinários. Esta questão é informativa porque força a reconsideração do usual e do ordinário. O que não justifica aqueles que expulsam, mas explicita sua vulgaridade. Os exilados perturbavam a ordem e foram expulsos para tornar seu local de origem ainda mais ordinário. No entanto, surge a questão se aqueles que expulsam não estão, na verdade, a serviço dos exilados, apesar de nenhum deles ter esta intenção.
Falo especificamente de exilados e não de refugiados ou emigrantes, para ampliar a extensão do problema abordado. Porque não se trata somente do fenômeno dos que fogem em barcos, dos palestinos, ou dos judeus fugindo de Hitler, mas também da expulsão das gerações antigas do mundo de seus filhos e netos, e da expulsão de humanistas do mundo dos aparelhos. Vivemos um período de expulsão. Se valorarmos isto positivamente, o futuro parecerá menos desolador.
Este ensaio foi escrito por um exilado em múltiplos sentidos, que, tendo sido expulso diversas vezes, conhece bem a tristeza que cada exílio traz, e a sombra que essa tristeza projeta. A língua alemã cunhou a palavra Heimweh para expressar essa tristeza. Apesar de sua experiência, ou por causa dela, este autor fará um elogio da condição de exilado.
O hábito é um cobertor macio. Arredonda os cantos e amortece os barulhos. É portanto anestésico (de aisthestai, perceber) porque nos impede de perceber informações, como ângulos ou ruídos. O hábito é agradável porque bloqueia percepções e porque anestesia. É reconfortante. Torna as coisas agradáveis e tranquilas. Todo ambiente rotineiro é gracioso e tranquilo e sua graça é uma das fontes do amor pela terra de origem, que confunde graça com beleza. A descoberta começa quando se retira o cobertor. Então tudo se torna incomum, monstruoso e inquietante. Para entender tal estranhamento basta considerar o movimento das mãos e dos dedos pelo ponto de vista de um marciano. Surge uma monstruosidade cheia de tentáculos. Os gregos chamavam esta descoberta de a-letheia, uma palavra que traduzimos por verdade.
Claro que não se trata de ser expulso por sua própria mão direita, a não ser que ela seja amputada. A descoberta da monstruosidade de nossa contingência física resulta da estranha habilidade de exilar nosso corpo em nossos pensamentos. Tal exílio radical não se mantém por muito tempo. Uma saudade irresistível do corpo nos assola, e então remigramos. Esta experiência de exílio extremo é reveladora. Para o exilado é como se ele tivesse sido expulso do seu próprio corpo. Mesmo as coisas rotineiras causam estranhamento. Tudo se torna anguloso e barulhento. Ele se volta para a descoberta e a verdade.
O estado de transcendência no qual se encontra (ou se perde) o exilado faz com que tudo pareça provisório e transitório. No hábito, somente as mudanças são percebidas. No exílio, tudo parece estar em constante mudança, e o exilado vê absolutamente tudo como um desafio para suas transformações. Sem a coberta do hábito, o exilado se torna um revolucionário, mesmo que sua meta seja somente a própria sobrevivência no exílio. O que justifica que ele seja tratado com suspeitas em sua terra nova. Sua presença ali perfura o habitual e ameaça sua graça.
Mas a terra nova é nova somente para o exilado, e não para os habitantes que o recebem. O exilado descobrirá a América, não importa para onde esteja indo. Somente o imigrante na América é verdadeiramente um americano, e ele continua a ser americano ainda que seu destino seja uma terra antiga, como Jerusalém. Ele emana uma aura americana somente por ser exilado. Ele se torna o epicentro de um terremoto experienciado pelos habitantes antigos como uma reviravolta no curso natural das coisas. Mas da sua perspectiva trata-se do oposto: ele tenta com todas suas forças tornar o incomum (ou seja, quase tudo) habitável. Este desencontro mútuo pode proporcionar um diálogo criativo entre o exilado e o habitante.
O lugar do exílio não é irrelevante. É verdade que o exilado, em qualquer lugar, terá experiência da Terra Nova. Mas para o habitante antigo, cada lugar é diferente em seus hábitos e costumes, que distorcem a verdade. Há países que se consideram novos por hábito, como a América, a terra de nossos netos e aparelhos automáticos. E há terras que, também por hábito, se consideram antigas, isto é, sagradas. Como Jerusalém, a terra dos textos lineares e dos valores burgueses. Quando o exilado chega a um lugar que se considera novo, força os habitantes a descobrirem sua senilidade, incrustada pelo hábito. Se ele chega a um país que se considera sagrado, força os habitantes a descobrirem que seu aspecto sacro também deriva do hábito. Por um lado, o exilado força americanos, netos e tecnocratas, a descobrirem que fazem parte de algo que sempre existiu. Por outro lado, os habitantes de Jerusalém, escritores e defensores de verdades eternas descobrem que são escravos do hábito. Há dois tipos de diálogo criativo entre exilados e habitantes. O primeiro (por exemplo, entre o exilado e um nova-iorquino) resultará numa renovação. O segundo (por exemplo, entre o exilado e um habitante de Jerusalém) resultará numa dessacralização. Essa classificação é necessária para entender o presente, inclusive o fenômeno do trabalhador imigrante ou a crítica dos aparelhos.
Exilados são pessoas desenraizadas que buscam desenraizar tudo à sua volta para criar raízes. Fazem isso espontaneamente. O mesmo processo ocorre com os vegetais, o que pode ser observado quando se replanta uma árvore. Ocasionalmente, o exilado terá consciência do lado vegetal/vegetativo do seu exílio. Talvez ele descubra que o ser humano não é uma árvore. E que a dignidade humana consiste precisamente em não ter raízes. Que o ser torna-se humano somente quando arranca as raízes de vegetal que o prendem à terra. Existe uma palavra negativa em alemão: Luftmensch (literalmente, pessoa aérea). O exilado talvez descubra que ar e espírito são conceitos muito próximos e que Luftmensch talvez signifique pura e simplesmente humano.
Essa descoberta representa uma inversão dialética na relação entre o exilado e seus expulsores. Antes da descoberta, aquele que expulsa é um polo ativo e o exilado um polo passivo. Depois dela, o expulsor passa a ser a vítima e o exilado o agente. Descobre-se que a história não é feita por expulsores, mas por exilados. Os judeus não são parte da história nazista, mas os nazistas são parte da história dos judeus. Nossos avós não são parte de nossas histórias, mas nossos netos o são. Não somos parte da história dos aparelhos tecnológicos; eles é que são parte de nossa história. Quanto mais somos forçados ao exílio, mais história fazemos, mais transcendemos. Mas esta não é a parte mais crítica da descoberta de que não somos árvores, de que são os seres desenraizados que fazem história. O que é crítico é a descoberta do quanto é difícil não criar novas raízes. O hábito não é somente um cobertor macio sobre as coisas; também é uma piscina de lama, agradável de se estar. Saudade é nolstagie de la boue (“saudade do barro”) e é possível se sentir confortável em qualquer lugar, mesmo no exílio. Ubi bene, ibi patria (“onde as coisas estão bem, é a pátria”). A descoberta de que não somos árvores demanda do exilado que evite constantemente a tentação do barro. Continuar exilado significa permanecer aberto à expulsão.
Aqui entra a questão da liberdade. A descoberta de que a falta de raízes é a condição da dignidade humana parece tirar importância da liberdade de ir e vir, reduzindo-a a um suspiro do espírito. A questão da liberdade esbarra em saber se é possível desejar a expulsão. Haveria uma contradição entre “permitir” e “desejar”, e seria possível falar em destino? Eis uma velha questão. Mas para o exilado a questão não é teórica, como uma dialética entre determinismo e liberdade, mas prática. A primeira expulsão foi consumada, e provou ser produtiva. Então o próprio exílio passa a se tornar hábito. O exilado deveria tentar puxar a si mesmo pelos cabelos para fora do hábito ou deveria provocar uma nova expulsão? Posta assim, a questão da liberdade não é a de ir e vir, mas a de permanecer estrangeiro, diferente dos outros.
Argumentei, no início do texto, que criar é sinônimo de processar dados. O que quis dizer é que a criação de informações novas depende da síntese de informações anteriores. Essa síntese consiste na troca de informações e seu armazenamento em memórias individuais ou coletivas. Podemos falar da criação como um processo dialógico. A chegada de exilados provoca diálogos, e uma colmeia de criatividade circunda o exilado. Ele se torna o catalisador da síntese de novas informações. Se, porém, ele se dá conta de que sua dignidade está na ausência de raízes, um diálogo interno acontece. Esse diálogo consiste na troca entre as informações que ele traz em sua bagagem e o oceano de ondas de informações que o banham no exílio. Quando esses diálogos internos e externos geram sentido, tudo e todos se transformam criativamente. Eis o que quis dizer quando afirmei que a liberdade do exilado consiste em permanecer estrangeiro. Trata-se da liberdade de mudar aos outros e a si mesmo.
O exilado é o Outro dos outros. Isso significa que ele é diferente dos outros e que eles permanecem diferentes para ele. Sua chegada no exílio permite que os outros descubram que podem criar sua identidade somente em relação a ele. Ocorre uma abertura do “eu” e uma abertura à alteridade. Um estar juntos. O espírito dialogal que caracteriza o exílio pode não ser de reconhecimento mútuo; ele é na maioria das vezes polêmico e até violento. Isso porque o exilado ameaça a singularidade dos habitantes antigos. Até o diálogo polêmico é criativo, porque também conduz a síntese de informação nova. O exílio, não importa sua forma, é incubador da criatividade a serviço do novo.
Vilém Flusser
Filósofo tcheco, viveu no Brasil por mais de 20 anos, publicou diversos livros, dentre eles The Freedom of the migrant, de onde foi extraído este ensaio.
Como citar
FLUSSER, Vilém. Exílio e criatividade. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 4, p. 50-52, set. 2011.
Tradução de Fernanda Regaldo e Roberto Andrés.
Neste ensaio: Spaces and friendly machines as leisures tools, de Lígia Milagres (2009).