LIDERANÇA
DISTRIBUÍDA
Texto de Rodrigo Nunes
366 cadeiras, intervenção de Maider López
Não negar a importância das lideranças, mas pensá-las de maneira não autoritária e distribuída em rede é a aposta que aqui se faz para a superação das estruturas hierarquizadas e do horizontalismo imobilizador.
Recentemente temos visto algo que há dez anos era praticamente inimaginável: amplos movimentos sociais em rede agregarem-se em torno a partidos políticos e discutirem abertamente a necessidade de alternativas eleitorais. Os ativistas do 15M espanhol se entusiasmaram, ao menos inicialmente, com o Podemos e com confluências municipalistas como Ahora Madrid e Barcelona En Comú. Nos Estados Unidos, muitos ativistas de Occupy Wall Street e Black Lives Matter engajaram-se na campanha para tentar fazer do senador independente Bernie Sanders o candidato do Partido Democrata. Até mesmo um setor do notoriamente combativo movimento anarquista grego ofereceu a um então recém-criado governo do Syriza um voto de confiança. Fala-se sobre a ressurgência do populismo, considerado há muito, em democracias do norte global, um atavismo restrito às periferias do mundo; e muitos se referem às contrarrevoluções sangrentas que se seguiram à Primavera Árabe como evidência de que quem ignora o Estado o faz por sua própria conta e risco. Se fosse possível voltar no tempo e dizer a algumas das pessoas que estão hoje à frente desse tipo de iniciativa que, em uma década, elas estariam se envolvendo com instituições “verticais”, será que elas acreditariam? Estaríamos presenciando o fim da horizontalidade?
O horizontalismo surgiu como discurso no período em que se consolidava uma perspectiva política mais ou menos comum tanto ao movimento altermundialista da virada do século quanto às insurreições de 2011. Sua formação se deve à convergência de três elementos: o crescimento da consciência da interconectividade complexa produzida pela globalização capitalista; o potencial de organização e mobilização proporcionado pela internet; e a inspiração vinda de experiências participativas de construção de autonomia no sul global, como os Zapatistas e os movimentos que emergiram em resposta à crise de 2001 na Argentina. Enquanto o primeiro dos três elementos dizia respeito ao solapamento da soberania nacional e do controle democrático por agências transnacionais e pelo poder corporativo, bem como ao modo como as organizações tradicionais de esquerda haviam se tornado obsoletas no processo, o último dizia respeito à “democracia real” – muito antes que esta se tornasse palavra de ordem – sendo reconstruída de baixo para cima. Era o elemento do meio que prometia uma mediação entre esses dois: se o mundo estava cada vez mais interligado, era da criação, replicação e expansão de redes de resistência e organização que se esperava uma nova forma de democracia horizontal e, por meio dela, a criação de um outro mundo, oposto àquele da globalização capitalista.
Desde seu surgimento, portanto, a ideia de horizontalidade esteve associada a algo que poderíamos chamar de paradigma da rede: não apenas a generalização da rede como forma organizativa (para muito além da política, aliás, como já então apontavam Luc Boltasnki e Éve Chiapello, por exemplo); mas a ideia de que as redes seriam formas organizativas intrinsecamente democráticas e dotadas de uma capacidade de expansão indefinida, bem como, devido à sua flexibilidade e isomorfismo, as formas mais adequadas às lutas de uma nova fase do capitalismo. Se o ciclo que se abriu em 2011, quando comparado ao movimento global da virada do século, representou em certa medida um retorno ao enfoque no nível nacional – não necessariamente como um locus privilegiado de poder, mas como um espaço em que os movimentos conseguiram encontrar alavancagem –, esta combinação entre paradigma da rede e horizontalidade continuou sendo-lhe central.
Apesar do aparente retorno à forma-partido ocorrido recentemente, tais ideias não desapareceram do discurso e da prática da maioria dos ativistas, inclusive daqueles que estão agora diretamente envolvidos na política institucional. Fato é que elas foram atenuadas por outras preocupações: o senso de urgência infundido por várias crises sobrepostas (econômica, ambiental, de reprodução social, de representação); o retorno à dimensão nacional, e mesmo municipal ou local, que envolve alvos mais bem definidos e marcos temporais mais claros; o hiato crescente entre a construção lenta, de baixo para cima, de experiências locais, e instituições cada vez mais repressivas e menos transparentes; e os próprios limites da horizontalidade como prática, que uma nova geração política teve a oportunidade de experimentar em primeira mão de 2011 para cá. A continuidade entre um momento e outro sugere que seria mais correto falar não no fim da horizontalidade, mas no declínio do horizontalismo.
Como o sufixo sugere, o horizontalismo não deve e não pode ser confundido com as práticas reais em que as pessoas se engajam; ele é uma abstração produzida a partir dessas práticas. É uma hipóstase da noção de horizontalidade, que passa a ser entendida como uma propriedade que adere necessariamente a certos procedimentos ou formas organizacionais e não a outros; uma realidade substancial que não admite graus de “mais” ou “menos”; um critério absoluto de julgamento político; um ideal que, mesmo que realizado de forma incompleta hoje, poderia algum dia ser plenamente realizado. Poderíamos chamá-lo, neste sentido, de ideologia: a ideologia segundo a qual a horizontalidade só pode existir dentro de um conjunto específico de práticas e de formas organizacionais, e para a qual a horizontalidade é o valor último, que pode e deve se tornar absoluto – vindo a substituir ideais mais antigos, como os de “sociedade sem classes” ou “livre associação de produtores”, no posto de objetivo final da ação política.
O problema do horizontalismo não é tanto que ele negue os limites e conflitos que a horizontalidade traz com ela, mas que, a partir da criação de expectativas exageradamente altas, ele aumente irrealisticamente os custos de se lidar com esses limites e conflitos. Pode-se até dizer que, mais do que uma teoria explicitamente articulada, o horizontalismo existe essencialmente nos efeitos que produz: a consciência de um descompasso entre o ideal e as práticas imperfeitas que supostamente lhe dão corpo e a oscilação entre denegação e ansiedade que dela resulta. Denegação, na medida em que os limites da prática são ocultos detrás de uma representação acrítica e imaginária deles, ou tratados como meramente contingenciais e temporários, em vez de necessários e constitutivos. Ansiedade, na medida em que o sentimento de estar sempre aquém dos próprios ideais nunca desaparece.
Isso se manifesta, por exemplo, num desejo por inclusão ilimitada que conduz ao adiamento de toda tomada de decisão, já que nenhum espaço é jamais tido como suficientemente legítimo para deliberar: sempre há mais pessoas que deveriam estar incluídas. Mas se manifesta também quando essa fixação com a ausência se inclina paradoxalmente na direção oposta – um fetiche de presença, como pôde ser visto em algumas das grandes assembleias nas praças ocupadas em 2011. Quando é tomada como único centro legítimo de todas as atividades de tomada de decisão, a assembleia passa a representar o movimento como um todo, de forma que iniciativas vindas de qualquer outro lugar são vistas como abusos de procedimento ilegítimos ou tentativas mal-intencionadas de usurpação, independentemente de quão relevantes ou úteis sejam e do quão limitada uma assembleia (por maior que seja) ainda é. Tanto em um caso quanto em outro, já que as iniciativas tendem a ser vistas com suspeita, o resultado costuma ser um medo paralisante diante delas, externado na forma de paranoia ou internalizado como autopoliciamento.
Abandonar o horizontalismo não significa, portanto, abandonar a horizontalidade, mas sim encontrar uma forma diferente de lidar com seus limites; significa, na verdade, tratar esses limites como constitutivos, ao invés de meramente acidentais. Não é verdade que a horizontalidade em sua completude esteja sempre presente como uma possibilidade constantemente traída; o que a ideia de traição faz é precisamente transformar em limites subjetivos aquilo que são limites objetivos, como se as coisas só dessem errado porque a pessoas escolhem assim. (O que não significa, claro, que isso não aconteça também.) Desistir da fantasia de alcançar o que propõe o modelo significa compreender a horizontalidade como algo que, para citar Deleuze e Guattari, “só funciona rangendo”: a falha constitui uma parte essencial do seu funcionamento.
Diferenciar horizontalismo de horizontalidade nos permite interpretar alguns acontecimentos – como a recente deriva eleitoral de alguns movimentos, por exemplo – de outra forma que não a de um mero abandono das redes em favor de um retorno aos partidos. É possível dizer, aliás, que o fim do horizontalismo envolve não o fim, mas um aprofundamento do paradigma de rede – tanto no sentido de realmente generalizá-lo como chave de compreensão quanto de adotar uma posição mais realista em relação às próprias redes, questionando o pressuposto de que seriam democráticas por natureza (ou, pelo menos, o sentido de “democráticas”).
Generalizar o paradigma de redes significa que não podemos mais falar como se houvesse um mundo da organização em rede – ao qual a horizontalidade pertenceria automaticamente – em oposição a um mundo de organizações uniformemente verticais. “Redes” não designam apenas uma forma organizacional específica, no mesmo nível de “partidos” ou “sindicatos”, mas são também a forma mais geral de descrever qualquer conjunto de pessoas ou coisas em interação. Neste último sentido, não pode haver qualquer oposição entre “rede” e “organização (formal)”, pelo simples fato de que partidos e sindicatos, por exemplo, também são redes (ainda que redes cuja topologia é determinada por suas estruturas formais), e tanto organizações formais quanto redes informais integram um contexto mais amplo que é, ele mesmo, descritível como rede. Existir é estar em rede, ser rede, motivo pelo qual não faz sentido, em um nível mais profundo, opor redes a não redes, nem falar em ausência de organização: não ter organização (formal) já é estar organizado como/em algum tipo de rede.
Uma conclusão importante dessa generalização é que ela muda o foco de nosso pensamento organizacional: de organizações ou agentes individuais para uma ecologia deles. Partidos, sindicatos, federações, grupos de afinidades – e também indivíduos que compõem ou colaboram com eles, suas mídias sociais, perfis etc. – são nós em uma rede mais ampla. O mesmo vale para indivíduos sem nenhuma afiliação que participam de protestos, compartilham conteúdo online ou apenas acompanham os acontecimentos políticos nos jornais. Da mesma forma, uma assembleia geral, independentemente do tamanho, é apenas um topos entre outros em uma topologia de rede mais vasta. Aquilo que totalizamos como “o movimento” é, na verdade, uma rede não totalizável composta de várias redes diferentes, um sistema-rede que nunca é plano ou indistinto, mas que está constantemente se diferenciando, adquirindo e perdendo nós e laços de diferentes intensidades, desenvolvendo clusters (zonas mais densas, onde os nós estão mais integrados) e hubs (nós com alto número de laços e que conectam várias zonas diferentes da rede). Esta própria rede está situada, por sua vez, em outras redes mais amplas e assim sucessivamente.
Essa mudança de perspectiva transforma automaticamente nossa maneira de entender como os movimentos tomam decisões – torna-se possível matizar a ideia de que as redes seriam intrinsecamente democráticas. O que se faz ao descrever um movimento em rede como “horizontal” e “sem liderança” é operar por meio de uma metonímia: toma-se um aspecto visível (como as assembleias gerais) ou uma ideia apoiada por um grande número de participantes (como a horizontalidade) e faz-se deles algo que representa o movimento como um todo. Mas isso claramente não é suficiente. Uma coisa é determinar quais são os espaços mais importantes para tomada de decisão e como esses espaços operam, ou identificar o modo como a maioria dos atores se autodescreve; outra é entender como a ação coletiva se organiza no sistema-rede que abriga todos esses diferentes espaços e ver até que ponto ela corresponde àquela autodescrição.
Neste contexto mais amplo, em que os diferentes agentes e espaços não necessariamente se conhecem ou reconhecem uns aos outros, não existe nenhum procedimento democrático globalmente aceito; todos os procedimentos existentes são locais. Logo, se quisermos falar de como a ação coletiva é estruturada em um sistema-rede como um todo (o que pode incluir, por exemplo, partidos e sindicatos), em vez de localmente dentro dele, horizontalidade não é o termo mais adequado. Liderança distribuída é uma descrição bem melhor.
Evidentemente, isso requer que compreendamos “liderança” como algo diferente de dominação, abuso de poder ou hierarquia formal. Requer, precisamente, que a compreendamos em termos de rede: como a capacidade que uma iniciativa tem de introduzir mudanças de comportamento de maior ou menor amplitude e maior ou menor complexidade, que serão adotadas ou adaptadas por outros, dentro de um sistema-rede. Liderar, em seu sentido mais básico, significa ser seguido, ou seja, orientar atenção e ação numa direção determinada. Dessa forma, é uma função que sempre precisará ser ocupada, em maior ou menor escala: mudanças em comportamentos coletivos nunca acontecem de uma vez só, mas propagam-se a partir de um ou mais pontos. Dizer que a liderança é “distribuída” significa dizer que, na ausência de estruturas e procedimentos explícita ou implicitamente acordados entre todos os atores, essa função não está concentrada, em princípio, em lugar algum – e pode, portanto, circular de acordo com o grau de adesão e apoio que diferentes iniciativas consigam atrair. Da mesma maneira que o oposto de “organização formal” não é “ausência de organização”, mas rede, o oposto de liderança concentrada não é ausência de liderança, mas uma condição em que a função de liderança, menos limitada por estruturas formais, está mais apta a circular livremente: uma liderança distribuída, justamente.
Isso também deixa claro que descrições como “horizontal” e “sem liderança” são insuficientes em outro sentido: elas sustentam uma imagem idealizada das redes, perpetuando a fantasia por trás do horizontalismo. Como as redes nunca são indiferenciadas, a capacidade que os nós têm de agir uns sobre os outros não se distribui de maneira equilibrada. Pelo contrário: as ações no âmbito de uma rede exploram e produzem estes diferenciais de poder. Na verdade, a ausência total de liderança implicaria em uma rede em que as ações de um nó não teriam nenhum impacto sobre qualquer outro – o que, é óbvio, contradiz a própria ideia de rede. O máximo a que redes podem aspirar não é um campo de ação perfeitamente nivelado, mas um certo equilíbrio que impeça que o poder se torne concentrado demais, obstruindo a circulação da função de liderança. Em outras palavras, o potencial democrático das redes não está no fato de elas serem ou poderem ser perfeitamente planas ou totalmente horizontais, mas em sua distribuição desigual de poder que é dinâmica e não estável. Ao invés de “nenhum líder”, potencialmente vários, em diferentes momentos e escalas, e o esforço para impedir que os diferenciais de poder se tornem demasiado rígidos e estabilizados, o que tornaria os “líderes” poderosos demais para serem substituídos: uma versão contemporânea e em muito mais larga escala da tese de Pierre Clastres sobre a “sociedade contra o Estado”.
Ver as redes como são em vez de como gostaríamos que fossem nos ajuda a avançar para além da oscilação entre Um e Múltiplo, concentração e dispersão, que há algum tempo tem impedido os debates sobre organização de avançar. Recapitulando: se qualquer tipo de liderança e concentração de poder é automaticamente visto como a semente da catástrofe (a unificação sob o Um totalizador), o único jeito de evitar a catástrofe seria optar por uma dispersão niveladora; mas já que esta dispersão tornaria impossível qualquer ação coletiva, alguns acabam rejeitando-a em favor do retorno ao Um (o partido).
O problema dessa oscilação é partir de um problema mal posto, reconhecendo apenas dois extremos onde existem diversos graus. Entre o Um totalizador (vertical) e um Múltiplo indiferenciado e sem laços (horizontal), há muitos estados intermediários de maior ou menor unidade e dispersão; é, aliás, justamente nesse terreno que se move o distribuído. O que as redes nos ensinam é que não existem ecologias indiferenciadas, nas quais os nós e os laços entre eles seriam todos iguais e intercambiáveis. Um sistema-rede sempre apresenta clusters mais densos e áreas mais dispersas, núcleos mais influentes e uma longa cauda de nós menos conectados e assim por diante; está sempre conectado e diferenciado internamente de várias formas. O Um e o Múltiplo não são as únicas opções: o Múltiplo sempre contém vários Um (hubs e clusters de diferentes tamanhos e influência) sem jamais ser realmente capaz de estar sujeito a ou de se tornar um único Um.
Trata-se de admitir que a liderança (ou direção) é um fenômeno imprescindível, mas que precisa ser controlado – ativamente controlado – pela imposição de limites que podem ser procedimentais ou extraprocedimentais, já que o que define uma “liderança frágil” (para tomar outra ideia clastreana) é depender da colaboração de outros (uma pessoa lidera apenas na medida em que é seguida). É por isso que a horizontalidade não pode ser compreendida como uma realidade originária que seria constantemente traída ou um ideal a ser tornado real no futuro. Ela deve ser definida como um esforço constante e dinâmico: seu próprio funcionamento a perturba e desestabiliza, cria possibilidades e riscos, produz efeitos com os quais será preciso lidar. Ela necessariamente envolve correr riscos de forma controlada, “no sentido”, como afirma Eduardo Viveiros de Castro, em que “pode-se dizer que caminhar é um modo controlado de cair.”
Uma coisa é renunciar conscientemente à fantasia, outra é resistir à forma de pensar que a sustenta. Aceitar que a horizontalidade “só funciona rangendo” implica deixar de pensar em termos de forma para pensar em termos de forças.
Durante muito tempo, o objeto preferencial do pensamento sobre organização política foi não apenas uma organização individual (ao invés de uma ecologia delas), mas a forma ideal que esta deveria ter. Toda discussão sobre o partido, especialmente após a Revolução de 1917, começava da premissa de que havia uma única organização à qual todos deveriam pertencer para, daí, pensar o modelo perfeito desta.
Embora algumas formas possam evidentemente ser melhores que outras, um foco exclusivo na forma tende a transformá-la num modelo a ser emulado porque supostamente perfeito, não susceptível a aperfeiçoamentos, corrupção ou mudanças de qualquer tipo. A forma é, assim, pensada em detrimento das forças que atuam sobre ela, como se bastasse uma boa forma para algo funcionar de maneira perfeita e estável por tempo indefinido. Pensar em termos de forças é compreender que tal estabilidade é impossível, indesejável, ou ambos: a ausência de forças e potenciais é equivalente à morte. Isso significa, primeiramente, que a forma deve ser sempre entendida como um equilíbrio temporário de forças e não como um modelo ou um arranjo institucional que possam ser dados de uma só vez. Em segundo lugar, significa que a melhor forma não é a mais estável, mas a que comporta o maior grau de tensão entre seus elementos.
Isso quer dizer que se trata de obter os equilíbrios mais produtivos entre forças cujo número, cuja intensidade e cuja identidade não são dados de antemão. Em vez do impulso teleológico em direção ao objetivo final de uma forma perfeita, o esforço contínuo de manejar o máximo de compatibilidade e de ressonância interna entre forças heterogêneas.
Colocar as forças antes da forma desmoraliza a questão do poder, substituindo o problema de se ele é bom ou mau por outro, mais pragmático: “como lidar com ele?”. Antes de se tornar estabilizado em estruturas que dão a algumas pessoas o poder sobre outras, ou formalizado em explícitas distribuições de direitos e deveres, o poder nada mais é que a capacidade de moldar ou influenciar o campo de ações possíveis de um ou mais outros; uma relação de poder não é nada mais do que “uma ação sobre (…) ações existentes ou sobre aquelas que possam surgir no presente ou no futuro”, como diz Michel Foucault. (Dito de outro modo, poderíamos concluir que toda relação de poder é, em seu fundamento, uma relação de potência.) Neste sentido, o poder apenas é – motivo pelo qual não há sentido em ficar imaginando como evitá-lo ou eliminá-lo. Além do mais, diferenciais de poder não apenas surgem a todo momento, mas são condições necessárias para a ação coletiva. Por exemplo, na constituição de uma assembleia geral, a decisão de instituir um espaço de procedimento democrático não responde, ela própria, a nenhum procedimento democrático, ou pelo menos não ao que ela mesma institui.
O risco de o poder se concentrar nunca deixa de existir. Contudo, o que precisa se opor a esse risco não é o ideal de um estado final de equilíbrio em que a reciprocidade reinaria, nem uma suspeita paranoica diante de qualquer diferencial de poder emergente, mas sim a ideia de que evitar a concentração de poder requer esforço e depende de um equilíbrio entre forças cuja potência é variável. Isso não significa, é claro, que alguns arranjos procedimentais e organizacionais não sejam mais favoráveis que outros à manutenção do equilíbrio e à limitação da concentração de poder. No entanto, é a questão extraprocedimental da potência de algumas forças relativamente a outras que é decisiva: um arranjo sempre pode ser desrespeitado se um agente desproporcionalmente mais forte não tiver interesse em mantê-lo.
“Horizontalidade” e “verticalidade” não são, portanto, nem substâncias que não admitem graus de “mais” e “menos”, nem propriedades que naturalmente pertencem a certas formas organizacionais e não a outras (o que substancializaria as primeiras como “boas” ou “más” por natureza); são tendências presentes em maior ou menor grau em qualquer situação ou forma organizacional. Como tendências, não são nem boas nem más em si, mas podem se tornar más ou boas conforme a situação, dependendo da proporção em que se misturem e da força relativa dos diferentes elementos que compõem uma situação ou uma ecologia organizacional.
Superar o horizontalismo não significa nada mais que compreender isto: igualdade e reciprocidade têm a ver mais com o equilíbrio entre forças que com uma forma ideal; igualdade e reciprocidade absolutas, portanto, só seriam possíveis numa situação em que houvesse um equilíbrio perfeito entre forças; este estado é impossível, de modo que a horizontalidade absoluta não pode ser encontrada nem na origem nem no futuro, porque não é (e é isso que o estudo das redes nos ensina) realizável enquanto tal; tudo que existe será sempre, portanto, um misto de verticalidade e horizontalidade (aquilo que chamamos, justamente, de distribuído); a busca da horizontalidade não é, deste modo, a busca por uma forma perfeita ou por um estado ideal, mas um esforço contínuo para impedir que o distribuído se torne concentrado. Um modo menos reconfortante de pensar, talvez, uma vez que elimina a promessa de um fim consumado; mas que nos deixa mais bem equipados para enfrentar os desafios da prática.
Rodrigo Nunes
Professor de filosofia moderna e contemporânea na PUC-Rio. É autor de Organisation of the Organisationless. Collective Action After Networks.
Maider López
Artista que trabalha nas interfaces entre arte e espaço público. Vive em San Sebastián.
Como citar
NUNES, Rodrigo. Liderança Distribuída. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 9, p. 10-19, set. 2016.