O MITO DO
ANTROPOCENO
Texto de Andreas Malm
United Land, imagens de François Ronsiaux
A noção de que adentramos uma nova era, a da humanidade como força geológica, foi sugerida pela primeira vez em 2000, em um artigo de Paul Crutzen e Eugene Stoermer traduzido com exclusividade pela PISEAGRAMA e disponível em nosso site.
Aqui, Andreas Malm sugere que essa era, chamada de Antropoceno, talvez não seja a época geológica de toda uma espécie, mas somente de alguns poucos humanos.
O ano passado foi o mais quente já registrado na história. Mesmo assim, a principal fonte geradora de energia no mundo não foi a luz solar, a força dos ventos, o gás natural ou o petróleo, mas o carvão. O crescimento nas emissões globais – de 1% ao ano na década de 1990 para 3% neste milênio, até o presente momento – é impressionante. E essa escalada aconteceu paralelamente ao aumento do nosso conhecimento a respeito das terríveis consequências do uso de combustíveis fósseis.
Quem está nos conduzindo em direção ao desastre? Uma resposta radical seria a dependência do sistema econômico da extração e do uso de energia fóssil. Algumas pessoas, no entanto, prefeririam identificar outros culpados.
A Terra está atualmente no “Antropoceno”: a época da humanidade. Bastante difundido, esse conceito sugere que a sociedade é a nova força geológica a transformar o planeta, levando-o a se tornar irreconhecível, especialmente devido à queima de quantidades espantosas de carvão, petróleo e gás natural.
De acordo com muitos estudiosos, essa degradação é o resultado de humanos agindo segundo suas predisposições inatas. É o destino inescapável para um planeta submetido à lógica da continuidade a qualquer custo. De fato, os defensores dessa ideia não podem argumentar diferentemente, pois se tal dinâmica de degradação tivesse um caráter mais contingencial, a narrativa de uma espécie inteira ascendendo à supremacia biosférica seria algo difícil de defender.
A referida teoria se centra em um elemento clássico: o fogo. A espécie humana é a única que pode manipular o fogo e, portanto, é quem destrói o clima. Quando nossos ancestrais aprenderam a incendiar as coisas, eles detonaram um processo regido por aquela lógica da continuidade. Esse ponto, de acordo com os proeminentes cientistas climáticos Michael Raupach e Josep Canadell, foi “o gatilho evolucionário essencial do Antropoceno”, que levou a humanidade diretamente para “a descoberta de que energia poderia provir não apenas de carbono derivado de detritos orgânicos, mas também de carbono derivado de detritos de combustíveis fósseis, inicialmente do carvão”.
O “motivo fundamental” para a atual queima de combustíveis fósseis seria que “muito antes da era industrial, uma espécie particular de primatas aprendeu como usufruir das reservas de energia armazenadas no carbono detrital”. Seguindo o raciocínio, o fato de eu ter aprendido a andar no meu primeiro ano de idade é o motivo de eu saber dançar salsa hoje. Quando a humanidade colocou fogo na primeira árvore morta, isso só podia resultar, um milhão de anos depois, na queima de um barril de petróleo.
Nas palavras de Will Steffen, Paul J. Crutzen e John R. McNeill: “O fato de nossos ancestrais terem dominado o fogo garantiu à humanidade o monopólio de uma ferramenta poderosa, indisponível a outras espécies, que nos colocou no longo caminho para o Antropoceno”. Nessa narrativa, a economia fóssil é criação justamente da humanidade, ou do “macaco-fogo, Homo pyrophilus”, como na versão popularizada do pensamento sobre o Antropoceno proposta por Mark Lyna, cuja obra leva o título, mais que apropriado, de A Espécie Divina.
É certo que a habilidade de manipular fogo foi condição necessária para o começo da queima de combustíveis fósseis em larga escala, na Inglaterra, no início do século XIX. Mas teria sido também a causa disso?
Um fator importante aqui é a estrutura lógica da narrativa sobre o Antropoceno: é como se um traço de caráter universal da espécie tivesse que ser o que conduz a época geológica dessa mesma espécie, ou então isso seria problema apenas de algum subconjunto dela. Mas a história da natureza humana pode ser contada de muitas formas, tanto para falar de Antropoceno quanto para outras partes do discurso sobre mudança climática.
Em um estudo presente na antologia Engaging with Climate Change (Engajando-se na causa da mudança climática), o psicanalista John Keene apresenta uma explicação um tanto original sobre por que humanos poluem o planeta e se recusam a parar. Na infância, a pessoa elimina dejetos sem limites e aprende que uma mãe cuidadosa vai levar embora o cocô e o xixi e vai limpar o bumbum.
Como consequência, humanos estão acostumados à prática de estragar seu entorno. “Acredito que esses encontros sucessivos contribuem para a crença de que o planeta é uma ‘privada-mãe’ ilimitada, capaz de absorver nossos produtos tóxicos infinitamente”.
Mas onde estão as provas de qualquer conexão entre queima de combustíveis fósseis e defecação na infância? O que dizer sobre todas as gerações de pessoas que, até o século XIX, dominavam ambas as artes, mas nunca esvaziaram os depósitos de carbono da Terra e os jogaram na atmosfera? Seriam eles cagadores e queimadores apenas esperando para atingir todo o seu potencial?
É fácil rir de certas formas de psicanálise, mas tentativas de atribuir a lógica da continuidade a qualquer custo às peculiaridades da espécie humana estão condenadas ao vazio. Algo que existe desde sempre e em todo lugar não pode explicar por que uma sociedade diverge de todas as outras e desenvolve algo novo – como a economia fóssil, que só surgiu há dois séculos, mas se tornou tão enraizada que nós a reconhecemos como a única com a qual podemos produzir.
O fato, no entanto, é que o discurso climático dominante é inundado de referências à humanidade como tal, à natureza humana, ao empreendimento humano ou à espécie humana como a grande vilã conduzindo o trem. Em A Espécie Divina, lê-se: “O poder de Deus está cada vez mais sendo exercido por nós. Somos os criadores da vida, mas também seus destruidores”. Esse é um dos vieses mais comuns nesse discurso: nós todos, você e eu, criamos essa bagunça juntos e a pioramos todos os dias.
Aí entra Naomi Klein, que em This Changes Everything (Isso Muda Tudo) apresenta como o acúmulo de capital joga combustível no fogo que hoje consome o sistema da Terra. Despachando sem cerimônias toda a conversa sobre o humano maldoso, ela escreve: “Estamos parados no mesmo lugar, porque as ações que nos dariam a melhor chance de evitar uma catástrofe – e beneficiariam a vasta maioria – são extremamente ameaçadoras para uma elite minoritária que controla nossa economia, processos políticos e a maioria das mídias”.
Como os críticos respondem? “Klein descreve a crise climática como um confronto entre o capitalismo e o planeta”, diz o filósofo John Gray no jornal The Guardian. “Seria mais acurado descrever a crise como um choque entre as demandas da humanidade, sempre em expansão, e um mundo finito”. Gray não está sozinho. Esse cisma emerge como grande divisão ideológica no debate climático, e defensores do consenso dominante estão reagindo.
Na London Review of Books, Paul Kingsnorth, um escritor britânico que há muito argumenta que o movimento ambiental deveria se dissolver e aceitar o colapso total como nosso destino, contesta: “Mudança climática não é algo que um pequeno grupo de pessoas maldosas nos impôs”; “no final das contas, todos nós estamos implicados nisso”. Essa, diz Kingsnorth, “é uma mensagem menos palatável do que aquela que vê um grupo de 1% avacalhando o planeta e os outros nobres 99% em oposição, mas é mais próxima da realidade”.
Será que é mesmo mais próxima da realidade? Seis fatos simples demonstram o contrário. Em primeiro lugar, o motor a vapor é amplamente e corretamente visto como a locomotiva inicial da lógica da continuidade a qualquer custo. A partir daí a combustão do carvão foi ligada pela primeira vez à espiral sempre em expansão da produção de commodities.
Ainda que seja banal comentar, motores a vapor não foram adotados por representantes natos da espécie humana. A escolha de um impulsor primário para a produção de commodities não pode ter sido uma prerrogativa da espécie, já que, para começar, isso pressupôs a instituição do trabalho assalariado. Foram os donos dos meios de produção que instalaram o novo motor primário. Composta por homens brancos, essa classe de pessoas (uma pequena minoria, mesmo na Inglaterra) formava uma fração infinitesimal da humanidade no início do século XIX.
Em segundo lugar, quando imperialistas britânicos entraram no norte da Índia naquela mesma época, eles encontraram veios de carvão que, para sua surpresa, já eram conhecidos pelos nativos. De fato, os indianos tinham conhecimento básico de como cavar, queimar e gerar calor a partir do carvão. Ainda assim, eles nem ligavam para o combustível.
Os britânicos, por outro lado, queriam desesperadamente extrair o carvão – para propulsar os barcos a vapor nos quais eles transportavam as riquezas e a matéria-prima retiradas dos indianos, em direção à metrópole, além de seus próprios produtos de algodão, em direção aos mercados do interior. O problema era que nenhum trabalhador se oferecia para entrar nas minas. Assim, os britânicos tiveram que organizar um sistema de trabalho nos termos da servidão, forçando camponeses a entrar em poços para adquirir o combustível para a exploração da Índia.
Terceiro, a maior parte da escalada nas emissões se origina na República Popular da China. A origem dessa escalada é evidente: não é o crescimento da população chinesa, nem o consumo doméstico ou os gastos públicos, mas sim a enorme expansão da indústria manufatureira, implantada no país para explorar a mão de obra local, considerada, na virada do milênio, extraordinariamente barata e disciplinada.
Em quarto lugar, provavelmente não existe indústria que encontre mais oposição popular do que a de petróleo e gás. Como Klein bem exprime, comunidades locais têm se revoltado contra fraturas hidráulicas, exploração e dutos do Alasca até o delta do Nilo, passando por Grécia e Equador. Mas está contra eles um interesse recentemente declarado de forma clara por Rex Tillerson, presidente e CEO da ExxonMobil: “Minha filosofia é ganhar dinheiro. Se eu puder fazer dinheiro perfurando o solo, então é isso que eu quero fazer”.
Quinto, estados de economia avançada continuam a aumentar e a aprofundar a infraestrutura voltada para a exploração dos combustíveis fósseis de forma implacável – são construídas novas estradas, novos aeroportos, novas termelétricas a carvão –, quase nunca levando em conta a opinião da população. Apenas um intelectual um tanto cego, do tipo de Paul Kingsnorth, pode acreditar que “todos estamos implicados” nessas políticas.
Quantos americanos estiveram envolvidos nas decisões de ampliar a cota de carvão no setor de energia elétrica – o que levou ao aumento da participação do carbono na economia dos Estados Unidos em 2013? Quantos suecos deveriam ser culpados pela construção de uma nova estrada no entorno de Estocolmo – o maior projeto de infraestrutura na história moderna do país – ou pela assistência do governo a termelétricas a carvão na África do Sul?
Sexto fato, e talvez o mais óbvio: poucos recursos são consumidos de forma tão desigual quanto a energia. Os 19 milhões de habitantes de Nova Iorque consomem mais energia do que 900 milhões de habitantes da África Subsaariana. Um canadense comum pode consumir até mil vezes mais energia do que um pastor africano da região do Sahel – e estamos falando de um canadense mediano, não de um que seja dono de três casas, cinco carros utilitários e um avião particular.
Um cidadão americano comum emite mais poluentes do que 500 cidadãos da Etiópia, Chade, Afeganistão, Mali ou Burundi. Quanto emite um milionário americano – e quantas vezes mais do que um trabalhador dos Estados Unidos ou do Camboja – ainda não foi computado. O fato é que a ação de uma pessoa sobre a atmosfera varia tremendamente dependendo do local onde ela nasceu. E, dessa forma, “humanidade” fica sendo um conceito muito abstrato para carregar o peso dessa culpa.
A nossa época geológica não é exatamente da humanidade, mas do capital. É claro que uma economia fóssil não precisa necessariamente ser capitalista: a União Soviética e seus países satélites tinham mecanismos de crescimento também ligados a carvão, petróleo e gás. Eles não produziam menos sujeira, fuligem ou emissões – talvez, até mais – do que seus inimigos da Guerra Fria. Então qual a razão para se investigar a destrutividade do capital se os países comunistas agiram de forma igualmente abismal?
Na medicina, uma pergunta parecida seria algo como por que concentrar os esforços de pesquisa no câncer e não na varíola? Ambos podem ser fatais! Mas apenas um deles ainda existe. A História encerrou o capítulo do sistema soviético, então voltamos para o início, onde a economia fóssil é ligada ao modo capitalista de produção – só que, agora, em escala global.
A versão stalinista merece sua própria investigação (tendo tido mecanismos de crescimento de natureza própria). Mas nós não vivemos nas minas de carvão de Vorkuta dos anos 1930. Nossa realidade ecológica, que nos cerca a todos, é o mundo fundado pelo dinheiro impulsionado pelo vapor, e há rotas alternativas que um socialismo responsável em termos ambientais pode seguir. Por isso o sistema econômico, e não a humanidade em si.
Não obstante manifestações recentes, essa visão continua à margem do pensamento dominante. A ciência climática e a política são constantemente embasadas na narrativa Antropocena: pensamento voltado para a espécie; críticas à humanidade; autoflagelo coletivo indiferenciado; apelo à população geral de consumidores para que conserte o que fez – essas e outras piruetas ideológicas servem apenas para esconder o verdadeiro condutor do trem.
Apresentar certas relações sociais como se fossem propriedades naturais da espécie não é algo novo. “Desistoricizar”, universalizar, eternizar e naturalizar um modo de produção específico de determinado tempo e lugar faz parte das estratégias clássicas de legitimação ideológica.
Isso bloqueia qualquer perspectiva de mudança. Se a lógica da continuidade a qualquer custo é resultado da natureza humana, como poderíamos imaginar algo diferente? Faz sentido que os representantes do Antropoceno e aqueles que pensam de forma parecida apresentem falsas soluções, longe das que desafiam o capital fóssil, ou preguem derrota e desespero, como Kingsnorth.
De acordo com esse último, “está claro agora que acabar com a mudança climática é impossível” – e, aliás, construir um parque de produção de energia eólica é tão ruim quanto abrir outra mina de carvão, já que ambas profanam a paisagem. Sem antagonismo, nunca pode haver nenhum tipo de mudança na sociedade humana. O pensamento voltado para a espécie, no que tange à mudança climática, induz à estagnação. Se todo mundo é culpado, então ninguém o é.
Andreas Malm
Professor de Ecologia Humana na Universidade de Lund, na Suécia.
François Ronsiaux
Artista plástico e fotógrafo francês, é presidente da associação L’enterprise, em Paris.
Como citar
MALM, Andreas. O mito do antropoceno. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 8, p. 24-31, set. 2015.
Artigo publicado originalmente na revista Jacobin.