A cidade
e os skatistas
Leonardo Brandão
O primeiro skate de que se tem notícia surgiu nos Estados Unidos no final do século XIX, quando alguns garotos resolveram, numa brincadeira inusitada, encaixar um pedaço de tábua nos eixos e rodas dos patins. Depois de algumas décadas, ou mais precisamente no ano de 1936, o novo brinquedo foi patenteado. No início, era visto como uma brincadeira de criança, algo entre o ioiô e o bambolê.
De brincadeira, o skate se transformou num esporte radical. Um dos fatores que iniciaram essa transformação ocorreu no ano de 1972, quando Frank Nashworthy, um engenheiro químico de Encinitas, Califórnia, introduziu o poliuretano na fabricação das rodinhas do skate, tornando-as mais aderentes e capazes de alcançar incríveis velocidades. Além disso, também por volta desse período, alguns jovens californianos começaram a realizar com o skate os mesmos movimentos de corpo que usavam para “pegar” ondas no mar. Assim, da união entre tecnologia e movimentos do surfe, o skate começou a ser visto como um esporte alternativo, conquistando diversos adeptos durante a segunda metade da década de 1970, inclusive no Brasil.
Embora tenha sido praticado em muitas cidades do país, sua atividade na cidade de São Paulo é digna de nota em função de uma série de acontecimentos provocados por sua inserção no espaço urbano. Em dezembro de 1975, por exemplo, um episódio ocorrido no Morumbi demonstra o início conturbado do skatismo no país. Nessa época, sua prática começava a ser experimentada por alguns jovens paulistanos. Reunidos numa turma de mais ou menos cem skatistas, eles decidiram deslizar pela Rua Queiroz Guimarães, que apresentava um asfalto liso e uma descida bem inclinada. Mas para a surpresa desses jovens, assim que eles começaram a realizar suas primeiras descidas, rapidamente um grupo de soldados da PM se deslocou até o local e os colocou sob a mira de potentes metralhadoras. O problema, de acordo com as autoridades, é que a rua fora feita para o uso dos carros, e não dos skates.
Também no final dos anos de 1980 ocorreu um episódio envolvendo a proibição da prática do skate. Diferentemente dos anos 70, quando o skate ainda continha muito do visual e das técnicas que vinham do surfe, os anos 80 trouxeram para o universo do skate uma série de outros elementos, como a influência da estética punk e o desenvolvimento de um novo tipo de skate, chamado de streetskate. Nessa modalidade, os skatistas passaram a interagir com diversos aspectos da arquitetura urbana: corrimãos, escadas, guias, trilhos e paredes.
Mas a prática do skate na rua, com skatistas pulando escadas e subvertendo o sentido original dado pelos arquitetos e urbanistas aos espaços, começou a incomodar alguns transeuntes e, no caso de São Paulo, o seu prefeito na época, o já popular Jânio Quadros. Em 1988, Jânio Quadros decidiu proibir a prática do skate por toda a cidade. O Jornal Folha de São Paulo, que cobriu o acontecimento enfatizando passeatas e protestos de diversos skatistas, publicou matérias com opiniões contrárias à medida de Jânio, vista por muitos como conservadora, repressora e uma afronta ao livre direito de ir e vir. Cartas que chegaram à redação da imprensa especializada noticiavam o abuso das autoridades e a repressão a essa prática corporal. A revista Yeah!, de circulação nacional, chegou a adotar o slogan “skate não é crime”.
A sucessora de Jânio Quadros, Luiza Erundina, assumiu um tom mais progressista e prometeu legalizar novamente essa atividade, inclusive posando para fotos em cima de pranchas de skate e declarando à imprensa o seu apoio aos skatistas.
De fato, a proibição do skate tornou-se impraticável. Os skatistas eram muitos e, a cada ano, o número de praticantes aumentava. Com o passar do tempo, a construção de pistas de streetskate, com obstáculos imitando os lugares mais visados pelos skatistas na cidade, foi a única solução encontrada pelos políticos para apaziguar a situação e ainda garantir os impostos cobrados sobre a indústria do skate brasileiro, a segunda maior do mundo.
Mesmo legalizado, as coibições à prática do skate na rua não cessaram. Sua continuidade, entretanto, parece ser a resposta de alguns jovens à crescente quantidade de pistas construídas para “domesticá-los”. Mas uma pista de skate jamais irá reproduzir a vivacidade urbana e nem chegar perto do inusitado das ruas.
Leonardo Brandão
Historiador, autor do livro A Cidade e a tribo skatista: juventude, cotidiano e práticas corporais na História Cultural (EDUFGD, 2011).
Como citar
BRANDÃO, Leonardo. A cidade e os skatistas. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 3, p. 50, jul. 2011.