Campanha não eleitoral
No dia 14 de setembro de 2012, em Belo Horizonte, uma pequena tropa de coladores de cartazes saiu do galpão de distribuição de material na hora costumeira, às 4 da manhã. Em vez dos cartazes usuais – propaganda política, espetáculos ou produtos de consumo – os rapazes e moças levavam coleções de cinco cartazes, cada um com uma cor, cada um com uma frase. Seguindo as suas rotas normais, colaram os cartazes nas superfícies transitoriamente disponíveis da cidade, no processo repetido de mudar, a cada madrugada, as colorações da paisagem urbana. Já as frases dos cartazes propunham mudanças na paisagem menos transitórias, mais duradouras, estabelecendo aí o primeiro paradoxo. Como alternativa à retórica desse parlatório político surdo-mudo que toma conta da cidade nas vésperas das eleições municipais, foi oferecida a ação direta na forma da “palavra que manifesta o desentendimento”.
Se o primeiro paradoxo da ação está na coincidência efemeridade/permanência, o segundo paradoxo está na associação do cartaz com um nome, rosto ou partido. As frases, sem assinatura, se lançavam livres para serem captadas e capturadas por qualquer um. Sem reivindicação de autoria, as palavras veiculadas pelos cartazes coloridos procuravam resgatar, no deserto político em que nos encontramos, o vínculo entre as palavras e as coisas. Enquanto coisas, as palavras desenham propostas, imaginários, paisagens e práticas de código aberto: disponíveis à livre apropriação, à concretização no território e, inclusive, ao intercâmbio nacional – do rio Arrudas partimos ao Tietê e ao Capibaribe, numa bacia hidrográfica fictícia conectada pela ideia de voltar a nadar, pescar e navegar nos nossos rios mortos.
Também presentes em adesivos, cartazes, cavaletes, sacolas e camisetas, as cinco frases iniciadas por um hashtag configuram espécies de pílulas de projetos para o espaço público. Conformam uma prática espacial que aplica a palavra na paisagem política árida e, ao mesmo tempo, reivindica o uso coletivo e público do espaço cada vez mais privatizado.
A ação surgiu no contexto da Noite Branca, em Belo Horizonte, e se serviu da grande capacidade mobilizadora do evento e da coincidência com o período eleitoral para ativar uma campanha permanente que se prolonga no tempo e no espaço. As sacolas e camisetas se tornaram uma coleção outono-inverno-primavera-verão de interesse público, vendidas a preço de custo em livrarias, feiras e em uma loja online. Dezenas de milhares de hashtags ganharam o Brasil: #ÔNIBUSSEMCATRACA, #CARROSFORADOCENTRO, #PARQUESABERTOS24H, #UMAPRAÇAPORBAIRRO, #NADAREPESCARNOARRUDAS (ou no Tietê ou no Capibaribe) circulam e provocam o imaginário em diversas cidades do país, constituindo uma rede de compartilhamentos física e de longo prazo – uma alternativa à fugacidade deslumbrada das campanhas nas redes sociais.
Durante as manifestações que tomaram as ruas do país, as propostas da campanha foram apropriadas por grupos e movimentos sociais, sem nenhum vínculo prévio, e literalmente se tornaram bandeiras das reivindicações coletivas. Um grupo de amigos engajados na luta pelo transporte público de qualidade e gratuito fabricou diversas bandeiras vermelhas que foram empunhadas com orgulho durante os protestos. Uma versão gigante foi levada a muitas mãos, se destacando na inusitada paisagem da Avenida Antônio Carlos tomada por pedestres e pelo lema ÔNIBUS SEM CATRACA. Uma dessas bandeiras teve ainda seu momento mais glorioso ao ser hasteada no mastro central do jardim da Câmara Municipal durante a ocupação do edifício, pouco tempo depois.
As praças e também o cada vez mais esquecido e invisível Arrudas foram lembrados, justamente no momento mais conflituoso das manifestações, no dia 26 de junho, semifinais da Copa das Confederações, quando o confronto entre polícia e cidadãos tomou o hipercentro da cidade. Logo ao lado do Parque Municipal, de janelas do edifício Sulacap, as frases UMA PRAÇA POR BAIRRO e NADAR E PESCAR NO ARRUDAS foram projetadas na fachada do prédio vizinho por um outro grupo de amigos, criando uma sublime utopia evanescente – de fazer inveja a qualquer Jenny Holzer – que reivindicava o rio e as praças enquanto no asfalto turbulento pessoas comuns apanhavam daqueles que deveriam garantir a sua segurança.
A simplicidade do design e das ideias contidas nos cinco quadrados coloridos foram viralizados nas redes sociais e variações de cores e propostas pulularam de post em post, até acabarem publicadas na página wiki da Assembléia Popular Horizontal, criada no contexto das manifestações como um espaço aberto e horizontal de debate e reivindicação popular, sob o título “novas hashtags revolucionárias”. Ônibus foram então trocados por afeto, bairros pelo cosmos, carros por amor, concreto por energia.
Lançada em um contexto de intervenções artísticas, a campanha se serve do design para atuar no campo da política, injetando possibilidades no imaginário urbanístico e fomentando com que os sujeitos da cidade protagonizem, consciente ou distraidamente, mas sobretudo corriqueiramente, a difusão das ideias. Os projetos urbanos condensados em suas frases, por não apresentarem um desenho técnico específico, são formulados para a legibilidade de qualquer um e para a livre imaginação de todos. Sinalização para imaginários ao mesmo tempo novos e nostálgicos; estratégicos e prospectivos.
Afinal, como seria nossa relação com o deslocamento se os ônibus fossem gratuitos e sem catraca? Que possibilidades de uso da cidade se abririam se os carros não entupissem os centros e se tivéssemos no mínimo uma ótima praça em cada bairro? Quanto refresco haveria em nossas rotinas se pudéssemos nadar e pescar em nossos rios? Que possibilidades de encontro e convivência urbana teríamos se os parques não fechassem à noite, como aconteceu no Parque Municipal de Belo Horizonte naquele 15 de setembro de 2012.