A EXTINÇÃO DO
SÃO FRANCISCO
Texto de José Alves de Siqueira Filho
Transposição, fotografias de Tuca Vieira
Como uma série de ciclos econômicos predatórios e políticas públicas equivocadas fizeram com que, às margens daquele que já foi um dos rios mais exuberantes do país, hoje se consuma peixe importado da Amazônia.
Um dos maiores rios da América do Sul, o São Francisco é o cenário de uma história quase apocalíptica de destruição ambiental. Ainda em 1818, a paisagem documentada em uma litografia dos naturalistas Von Martius e Spix retrata uma das lagoas do São Francisco, numa composição que lembra muito as lagoas do Pantanal mato-grossense. Na gravura, destaca-se a presença do tuiuiú, ave símbolo do Pantanal, cuja distribuição original incluía também a Bacia do São Francisco. Trata-se de um salto: da exuberância primordial à degradação atual.
Ao longo da história da ocupação da Caatinga, não se perderam apenas espécies, mas também processos ecológicos e sociais. Foram-se, para sempre, o fenômeno da piracema e seus incríveis peixes migradores, e também as enchentes que regulavam a biota aquática antes do advento das barragens. Por séculos, as comunidades ribeirinhas conviveram com os ciclos naturais de enchentes do rio e, adaptadas a eles, construíram sua história.
Ao longo das últimas décadas, foram observadas tentativas incessantes de uso de tecnologias importadas em que se prioriza a conversão dos ecossistemas naturais em agroecossistemas que exigem elevado uso de insumos externos. A ampla maioria dos empreendimentos agropecuários tem fracassado porque não incorpora, em sua concepção, as variáveis climáticas e condições singulares locais.
Uma visão multidisciplinar, ainda em construção, sobre os fenômenos complexos da dinâmica do rio São Francisco, defronta-se com iniciativas técnicas e políticas insensatas, incompatíveis com um século XXI supostamente bem informado. Ao que parece, todo o saber disponível ainda é insuficiente para estancar a sangria das águas do rio São Francisco, e também acabar com a erosão biológica e genética de organismos únicos em todo o planeta.
Em nenhum lugar da Terra há tantas espécies como aqui. Contudo, estou convencido da extinção inexorável do rio São Francisco. Os exemplos são tristes e inúmeros: salinização de solos, açudes com água salobra e surgimento e ampliação dos núcleos de desertificação associados a baixíssimos percentuais de cobertura vegetal das matas ciliares. Delas sobraram menos de 4%, e sua ausência amplia processos erosivos nas margens, provocando o assoreamento do rio e tornando-o inviável como hidrovia.
O cenário recente permite concluir que a flora atual e futura do rio São Francisco e da Caatinga como um todo será dominada por ecossistemas simplificados, formados por espécies autocompatíveis, com baixa diversidade biológica, que em nada lembrarão a composição original. O fenômeno já é observado na Mata Atlântica nordestina, que tem apenas 7% de remanescentes florestais, o mais baixo percentual de cobertura vegetal do país.
Muitos me perguntam se sou contra ou a favor da transposição do São Francisco. Respondo que essa questão já foi ultrapassada há muitos anos, quando se tomaram decisões que hoje repercutem em toda a sociedade. Agora, o importante é mostrar aos maestros que comandam essa imensa obra o que fazem, porque, definitivamente, o que se realiza nessa região do Brasil não é simplesmente uma obra de engenharia civil, mas algo muito mais complexo.
Assim como outras extensas áreas do planeta que não dispõem de literatura histórica que trate das paisagens originais, o rio São Francisco e as Caatingas contam com um acervo fragmentado e disperso. As reconstituições possíveis baseiam-se nos relatos de naturalistas viajantes, como Martius e Saint-Hilaire, que provocam admiração e pavor naqueles que se propõem a compreender, à luz da razão, os fenômenos destrutivos recentes.
As etnias indígenas que historicamente viveram em suas margens também nos oferecem pistas da diversidade e exuberância da fauna e flora que existiam ao longo do rio. A ocupação da região tem, pelo menos, 9 mil anos. São 32 povos indígenas que, atuando como caçadores-coletores ou agricultores-ceramistas, deixaram um “tapete” de informações na cultura material que produziram ao longo de todo o corpo do São Francisco, como nos artefatos líticos, cerâmicos, nos esqueletos, adornos, restos de fauna e flora, pinturas e gravuras rupestres.
O jenipapo e o urucum, dos quais se extraíam os corantes para ornamentar os corpos nus durante os rituais indígenas, têm ampla distribuição no território brasileiro e, ao que tudo indica, seriam plantas comuns nas matas ciliares do São Francisco. Outra evidência do porte florestal que já tiveram as matas que margeiam o rio pode ser observada na tradição de confecção das canoas dos romeiros da região. As canoas eram feitas de cedro ou de tamboril, preferidos pela madeira dura, leve e resistente.
Nas ilhas do São Francisco, nas imediações de Petrolina e Juazeiro, há sinais de uma realidade indelével, ainda que agonizante, composta por um conjunto de imensos jatobazeiros, marinheiros e carnaubeiras. É comum observar, na beira do rio, árvores mortas em pé, de forma prematura. A polinização das ingerias depende de mariposas noturnas, que são ofuscadas pela intensa luminosidade das moradias do continente, o que leva-as à morte. Daí ocorre uma brusca diminuição na formação de frutos e sementes. A floresta ciliar também nutria os peixes que, por sua vez, alimentaram gerações de ribeirinhos. Muitas plantas aquáticas desapareceram com a construção das hidroelétricas do rio São Francisco. Outras espécies animais foram praticamente exterminadas pela caça, como o tatu-bola, o guariba e a anta.
A degradação da paisagem confunde-se também com a decadência do vaqueiro, um dos símbolos mais emblemáticos do sertão. A cultura do vaqueiro derrubando o boi nas moitas das Caatingas está claramente em vias de extinção. Indiretamente, seu sumiço nas quebradas do sertão é reflexo e, ao mesmo tempo, causa, do desaparecimento da Caatinga arbórea, especialmente aquela situada às margens do São Francisco ou de afluentes importantes. Para lá corria o gado nas fortes estiagens, quando ainda se encontravam forragem e água em abundância.
A Caatinga pode ser o segundo ecossistema mais degradado do Brasil, à frente do Cerrado, mas é possível que qualquer avaliação seja subdimensionada, pois é difícil estimar a extensão da perda dos ecossistemas naturais e da flora e fauna do Nordeste brasileiro nos últimos 500 anos.
Vários ciclos econômicos – como o do gado, o das hidrovias, o das hidroelétricas, o das ferrovias e o dos polos de irrigação Petrolina-Juazeiro – subtraíram da região recursos naturais finitos sem trazerem desenvolvimento real. O que se presenciou, ao longo da história, foram meros picos de crescimento econômico.
O ciclo do gado, também conhecido como ciclo do couro, iniciado em 1549 no Vale do São Francisco, estabeleceu a primeira zona pecuária brasileira, expandindo-se dali para todo o interior do Nordeste. Esse período foi marcado pela interiorização da economia, que, até então, se concentrava no litoral nordestino em função do cultivo da cana-de-açúcar. O rio São Francisco representou um importante corredor para o gado que penetrava nos confins da Bahia e de Minas Gerais. Ao final do século XX, o rebanho bovino, criado de forma extensiva e com manejo precário, já alcançava 9,5 milhões de cabeças. Daí pode-se imaginar o quanto das zonas ripárias foi convertido em pastagens, por meio do desmatamento e das queimadas, impactando profundamente as matas ciliares do rio.
Atualmente, o rebanho bovino do Nordeste vem declinando, enquanto o caprino e o ovino vêm ganhando espaço por serem mais resistentes. O agravante em investir nos caprinos e, sobretudo, nos ovinos, é que sua criação é extensiva, e são ainda mais generalistas e danosos à regeneração natural de muitas espécies da Caatinga.
O ciclo das hidrovias teve início em 1871, quando a primeira embarcação a vapor aportou na Vila de Guaicuí, em Minas Gerais, onde o Rio das Velhas deságua no Velho Chico. Os vapores ou gaiolas foram muito comuns até meados da década de 1970 e faziam principalmente o trajeto entre Pirapora (MG) e Juazeiro (BA).
As embarcações, já prestes a virarem sucata, eram reformadas e trazidas para o rio São Francisco para sua última jornada. Os vapores consumiam uma quantidade absurda de lenha oriunda das matas ciliares. Ademais, seus cascos, oriundos de outras partes do mundo, traziam uma série de moluscos bivalves, como a Corbicula flumínea, que proliferavam descontroladamente. Os moluscos certamente impactaram a biota bentônica do rio, entrando em competição com a fauna nativa e endêmica do São Francisco.
Hoje, as condições de navegabilidade do São Francisco são precárias. O transporte fluvial de grãos feito entre Pirapora e Juazeiro já não compensa economicamente devido ao baixo nível da água do rio, que exige o uso de chatas, um tipo de embarcação que utiliza somente a metade da capacidade de carga para evitar encalhes. A viagem até o Porto de Petrolina tem que ser feita com a ajuda de rebocadores para desembarcar os produtos.
No que diz respeito às hidroelétricas, a produção de energia advinda das águas de grandes rios brasileiros ainda é considerada energia limpa, mesmo que esse paradigma venha apresentando consequências nefastas a curto, médio e longo prazos. O São Francisco é o rio brasileiro mais controlado pelo homem, o que se dá por meio de cinco grandes barragens: Três Marias, Sobradinho, Itaparica, Paulo Afonso e Xingó. As hidroelétricas se beneficiam de todo o potencial do desnível natural do rio. No entanto, a energia produzida, que representa 15% da energia elétrica produzida no Brasil, nem sempre é utilizada no Nordeste, onde o dano ambiental ocorre.
O lago de Sobradinho é uma das maiores aberrações criadas no período militar. Na década de 1970, foi construído como o maior lago artificial do planeta. Hoje perdeu a liderança, mas segue sendo o maior lago artificial da América Latina. Possui um imenso espelho d’água de baixa profundidade e altas taxas de evaporação de água, atingindo 150 m³/s, o que corresponde ao volume necessário para o abastecimento anual de uma população de 144 milhões de habitantes. Um exemplo concreto de desperdício.
Antes da construção da barragem de Sobradinho, havia, ao longo do rio, várias lagoas temporárias altamente piscosas e administradas pelas prefeituras de municípios baianos. Quase todas desapareceram com o enchimento do lago, assim como cidades e povoados inteiros. As lagoas temporárias entre Pirapora e Juazeiro, repletas de peixes, eram fundamentais para o recrutamento das espécies migradoras. O desenvolvimento de tecnologias e programas de “peixamento” do Lago de Sobradinho, utilizando espécies alóctones ou alienígenas, mostrou-se ineficiente e ambientalmente desastroso.
Hoje, o comércio de peixe em Petrolina e Juazeiro ressente-se da falta de pescado para o abastecimento interno e é difícil acreditar que o São Francisco já foi um dos rios mais piscosos do país, tendo sido registradas 158 espécies de peixes em suas águas. Os preços dispararam. Para atender à demanda da população que, por hábitos culturais, ainda inclui o peixe no seu cardápio, hoje se importam peixes de rios amazônicos. O cachara, ou falso-surubim, vindo do Maranhão e do Pará, é uma das espécies mais comercializadas na tradicional Praça do Peixe, em Petrolina, a 700 metros da margem do rio São Francisco.
A construção das hidroelétricas também alterou a composição da flora aquática, fomentando o aumento de populações de algumas espécies em detrimento de outras. Atualmente, as algarobas dominam a paisagem nas margens dos rios. São árvores mais competitivas que as espécies nativas, pois apresentam crescimento rápido, alta capacidade de rebrota e raízes profundas e alelopáticas, isto é, que eliminam substâncias químicas que impedem ou reduzem drasticamente a germinação e o estabelecimento de plantas jovens.
No setor da agricultura, por fim, as áreas irrigadas estão se expandindo rapidamente sobre a vegetação natural do semiárido, e o consumo hídrico é muito elevado (o setor agrícola é o que mais consome água no mundo) devido à grande disponibilidade térmica ao longo do ano. A instalação de perímetros de irrigação no fim da década de 1960 provocou uma nova onda de otimismo. A região recebeu expressivo investimento do governo federal para a agricultura irrigada, mas a falta de planejamento e a substituição brutal da vegetação nativa da Caatinga por culturas agrícolas estiveram por trás de um surto frágil de crescimento econômico, como no caso da produção do melão e do tomate. Onde antes havia culturas de ciclo produtivo curto, estabeleceu-se a maior indústria de processamento de tomate da América Latina. Seguiram-se a abertura de novas áreas, o manejo inadequado de pragas, além da entrada de produtos processados do tomate importados, que inviabilizaram a produção em poucos anos. Todas as fábricas da região fecharam suas portas, migrando para novas áreas no Centro-Oeste do Brasil, onde os custos eram mais baixos e geralmente subsidiados pelo poder público.
O ciclo durou cerca de 20 anos e deixou para trás um rastro de destruição e terras abandonadas nas áreas irrigadas. Apesar do inequívoco avanço tecnológico, o modelo de produção agrícola que exige alto nível de insumos instalado no Vale do São Francisco vem acarretando inúmeros prejuízos nas principais culturas como o coco, a banana, a manga e, mais recentemente, a uva. Muitos produtores já abandonaram seus pomares, o que gera, entre outros, um sério problema fitossanitário: a proliferação das moscas-das-frutas. Além disso, há o endividamento com os bancos oficiais, elencado pelos produtores e exportadores como uma questão extremamente significativa. A cultura da goiaba, que já foi a segunda maior do país, vem sofrendo o ataque de nematoides, ainda sem solução definitiva.
As pragas são reflexos do aumento populacional de alguns organismos ocasionado pela ausência de inimigos naturais, eliminados pelos agrotóxicos. Seu uso indiscriminado na fruticultura irrigada no Vale do São Francisco tem recebido pouca atenção das autoridades, mas dados alarmantes de pesquisadores da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) apontam enorme vulnerabilidade na saúde dos trabalhadores no processo produtivo químico-dependente da fruticultura do Vale do São Francisco, com um aumento crescente de intoxicações e casos de câncer. O controle biológico, o uso de inseticidas alternativos ou biodegradáveis de ação específica e a implantação de sistemas de policulturas ou permacultura ainda são percebidos como discursos de extraterrestres. Os casos de dengue aumentam a cada ano porque os inseticidas matam quase tudo, inclusive as libélulas, cuja especialidade é predar o mosquito transmissor da doença.
Nos tempos atuais, no entanto, seria possível aplicar nas Caatingas práticas totalmente sustentáveis, com base em princípios extrativistas disseminados em várias partes do mundo, sem que isso represente retrocessos ou miséria. O Vale do São Francisco, que contabiliza mais de 500 municípios, poderia experimentar novas oportunidades econômicas com o caroá, a maniçoba, o umbuzeiro, o licurizeiro, a oiticica e a carnaúba, entre tantos outros, considerando o que já se sabe dessas culturas.
Talvez o licuri e o umbuzeiro representem as últimas evidências de práticas extrativistas sustentáveis nas Caatingas. Ao longo das estradas que cortam o semiárido, qualquer viajante percebe que restam poucas árvores no cenário insólito dominado por gramíneas exóticas, resistentes ao fogo e ao pisoteio dos animais.
Os licuris ainda despontam na paisagem fragmentada do norte baiano e em parte do agreste meridional de Pernambuco, apesar de virem tombando vitimados por incêndios descontrolados, que visam à abertura e renovação de pastos. O licuri garante a biodiversidade nos ecossistemas secos. Trata-se do principal hospedeiro de plantas epífitas da Caatinga, concentrando em suas bainhas água e substrato de modo análogo às árvores da Mata Atlântica. No licuri, já foram catalogadas 30 espécies, incluindo orquídeas e bromélias que, por sua vez, têm nessa palmeira a única chance de sobrevivência. Durante as secas históricas da Caatinga, a população se apoiava na versatilidade do licuri para matar a fome e alimentar o rebanho, bem como para confeccionar utensílios domésticos como vassouras, esteiras e sacolas.
O umbuzeiro é outra espécie emblemática da Caatinga – uma árvore clímax, de crescimento lento, típica daquele bioma. O uso de seus frutos pelo povo sertanejo vem de longa data. No entanto, estudos mostram que os caprinos consomem todas as partes da planta, incluindo folhas, flores e frutos, inviabilizando o recrutamento de plântulas e a renovação do ciclo natural. Por isso, as populações naturais de umbuzeiro vêm se tornando idosas e a produção declina a cada ano.
Investimentos em pesquisa e aplicação de recursos financeiros em novas culturas, como da pera ou da maçã, típicas de regiões temperadas, parecem bizarros no sertão do São Francisco, diante da miscelânea de espécies nativas oferecidas pela Caatinga. Em vez de importar tecnologias agrícolas ou pecuárias alheias à realidade local, seria mais sensato investir em propriedades produtivas que privilegiem frutas nativas ainda pouco conhecidas pelo mercado consumidor. O café sombreado, por exemplo, há muito tempo plantado nos brejos de altitude do Nordeste, é um produto local com enorme potencial.
Também seria possível otimizar a produção agrícola por meio do estímulo à inovação tecnológica na criação e no manejo de espécies nativas como a ema e até o camaleão, considerado a “galinha das árvores” pelos hábitos arborícolas e pela eficiente conversão de energia em carne quando comparado com o boi. Outra opção, ainda mais positiva, seria a criação de abelhas nativas sem ferrão, como a mandaçaia, a munduri e a jandaíra. Isso aumentaria as taxas de polinização e o sucesso reprodutivo da flora, bem como a produção de mel, rico em propriedades medicinais e mais nobre do que o produzido pelas abelhas Apis africanizadas, que são polarizadoras ineficientes em muitas plantas da Caatinga.
Muitos profissionais das novas instituições de ensino superior federais no semiárido nordestino foram formados em universos distantes da Caatinga. Os conhecimentos que receberam são muitas vezes incompatíveis com a realidade que ora enfrentam. No entanto, se as gerações passadas foram irresponsáveis ou omissas, causando desmatamentos, salinização e desertificação, a geração atual poderia corrigir solos, recuperar agroecossistemas, mitigar os impactos climáticos e aumentar a produção de alimentos para uma população em crescimento a partir dos saberes locais.
Partindo do conhecimento das espécies nativas, há enorme potencial para alavancar a agricultura hoje praticada. Esse conhecimento permitiria, por exemplo, a ampliação de técnicas agronômicas simples para combater doenças como o nematoide, que ataca as raízes da goiabeira, a partir da enxertia com Myrtaceae nativas. De modo semelhante, seria possível o incremento na produção da uva a partir de espécies de Cissus (Vitaceae), nativas da Caatinga e, por isso, versáteis nos mais variados tipos de solo. A integração dos conhecimentos sobre biodiversidade, conservação e manejo sustentável permitiria, inclusive, economizar água, o recurso mais nobre da produção agrícola do Vale do São Francisco.
Além dos humanos, muitas espécies da biota atual do São Francisco dependem de um rio saudável, no qual processos ecológicos ocorram dentro dos ciclos naturais das cheias, das estações do ano, do dia e da noite. No Vale do São Francisco, essa realidade parece cada vez mais distante. Muitos processos ecológicos, históricos, culturais e paisagísticos já não mais poderão ser contemplados e experimentados pela humanidade. O preço imposto por aquilo que ainda chamamos de progresso foi alto demais: a ampliação dos núcleos de desertificação, a extinção de espécies, a homogeneização biônica e baixos índices sociais de desenvolvimento.
Muitos foram os impactos sobre a biodiversidade decorrentes da conversão do uso da água de bacias hidrográficas complexas como a do São Francisco. O caso do pato mergulhão é um dos mais bem documentados. Hoje ele se encontra criticamente ameaçado de extinção, pois sofre com a perda do habitat, associado aos seus hábitos comportamentais. Um destino ainda pior teve a ararinha-azul, a única arara endêmica da Caatinga, considerada extinta na natureza. Na paisagem original do São Francisco, elas teriam sido comuns nas matas ciliares até o final do século XIX. A caça, o tráfico e a perda de habitats – seja pela diminuição da oferta de alimentos devido à escassez das carnaubeiras, ingerias, jatobazeiros e marizeiros, seja pela falta de locais de nidificação pelo rareamento dos craveiros – foram decisivos para seu declínio populacional.
As profundas mudanças decorrentes do novo Código Florestal parecem apontar para a aniquilação das últimas esperanças de conter os processos erosivos do São Francisco. A mobilização da comunidade acadêmica brasileira não foi suficiente para fazer com que as decisões políticas fossem pautadas no conhecimento científico, já que vários estudos indicam que as vegetações com no mínimo 30 metros de altura nas margens dos rios são essenciais para a proteção da qualidade de água, a estabilização das encostas e a prevenção de inundações.
No semiárido, o acesso à água é a oportunidade e, ao mesmo tempo, o problema para a produção de alimentos quando não há o devido planejamento. A obra de integração de bacias hidrográficas é antiga e polêmica. No caso do São Francisco, um dos principais objetivos defendidos é ampliar consideravelmente a irrigação em regiões que ainda não experimentaram essa prática nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Desde o início das obras, em 2008, já se percebem profundas e aterradoras mudanças na paisagem. Os custos da obra aumentaram consideravelmente nos últimos anos. Mas, diante da gula insaciável por recursos naturais, qual o significado da integração das bacias em curso? O tempo de avaliações sobre os prós e contras da transposição se esgotou: ela já custou muito aos cofres públicos e ao ecossistema local. O momento atual é de trabalhar duro para reverter a catástrofe.
Tuca Vieira
Fotógrafo independente. Desenvolve projetos a partir dos temas da cidade, paisagem urbana e arquitetura e urbanismo.
Como citar
FILHO, José Alves de Siqueira. A extinção do São Francisco. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 8, p. 92-101, set. 2015.