A LÓGICA DO
CONDOMÍNIO
Texto de Christian Dunker
De passagem, desenhos de Aruan Mattos e Flavia Regaldo
Alô, alô, W/Brasil… Alô, alô, W/Brasil… / Jacarezinho! Avião! Jacarezinho! Avião! / Cuidado com o disco voador / Tira essa escada daí / Essa escada é pra ficar aqui fora / Eu vou chamar o síndico / Tim Maia! Tim Maia! Tim Maia! Tim Maia!
Ao entrar em um desses modernos condomínios, projetados com a mais tenra engenharia urbanística, temos o sentimento pacificador de que enfim encontramos alguma ordem e segurança. Rapidamente nos damos conta de que há ali uma forma de vida na qual a precariedade, o risco e a indeterminação teriam sido abolidos. O espaço é homogêneo, conforme certas regras de estilo. Dentro dele, os lugares são bem distribuídos, as posições estão confortavelmente ocupadas. A polícia parece realmente presente, apesar de particular. As ruas estão bem pavimentadas e sinalizadas, em que pese o leve excesso de mensagens indicando caminhos e condições de uso. As casas exibem seu indefectível jardim frontal, sem cercas. Tudo o mais é funcional, administrado e limpo. A imagem dessa ilha de serenidade captura as ilusões de um sonho brasileiro mediano de consumo. Uma região, isolada do resto, onde se poderia livremente exercer a convivência e o sentido de comunidade entre iguais. Um retorno para a natureza, uma vida com menos preocupação, plena de lazer na convivência entre semelhantes. Uma comunidade de destino que se apresenta em inúmeras variantes: verticais, horizontais, residenciais, comerciais, privadas e até mesmo públicas.
Nos condomínios mais antigos, ainda se nota aquela ousadia variável de estilos, que nos faz passar abruptamente de um château francês para uma mansarda russa, de uma imponente imitação de E o vento levou para um chalé digno dos Alpes suíços, tudo isso ao lado da reconstrução pós-moderna de uma antiga sede colonial de fazenda cafeeira paulista. Não se trata de bairro-dormitório, o que é tecnicamente correto, nem de habitação planejada para uso racional do espaço. Também não é um caso similar aos subúrbios nova-iorquinos upper class como New Jersey, alternativa real e acessível ao superpovoamento da ilha de Manhattan.
A variação temática dos antigos condomínios mais verdes, arejados e suburbanos contrasta com a monotonia sóbria, em aspecto de papelão, que encontramos nos condomínios mais centrais, retintos de tecnologia, de ostensiva segurança biométrica, que lentamente recolonizaram São Paulo. Nossos condomínios são como aqueles antigos castelos em cartolina para recortar e colar, que montávamos quando crianças, só que em tamanho natural. O movimento foi da periferia para o centro, começando pelas pequenas vilas operárias, compradas no atacado e logo transformadas em seis ou oito pares de habitações, gêmeas e geminadas, com altos muros eletrificados e opacas guaritas majestosas. Ninguém acreditaria que descendem dos quintais portugueses, das villas italianas ou das plazas espanholas. São a reconstrução de uma segunda natureza arquitetônica, combinando as práticas espontâneas de ocupação familiar por partição do terreno com a boa preservação das origens culturais.
O caso-modelo dos condomínios brasileiros chama-se Alphaville. Formado em 1973 com a aquisição de uma vasta área nos arredores da cidade de São Paulo, tornou-se, depois de Brasília, um signo maior de nossa capacidade de planejamento e construção de novas formas de vida. Um bairro artificial, formado por uma série de condomínios interligados, com um centro empresarial e comercial, em uma área antes ocupada por posseiros, destinada por zoneamento e plano diretor a indústrias não poluentes. A última objeção ocupacional remonta ao fato de que ali se previa também área para uma reserva indígena.
Nos anos 1980, a associação de moradores funcionava como poder público capaz de liberar o próprio Habite-se. Nessa época entram em vigor regras rígidas: proibição de casas pré-fabricadas, elevadas exigências construtivas, recomendações de estilo. Impedia-se, assim, a transformação do projeto em loteamento de fim de semana. Em meados dos anos 1980, surge a profusão de “residenciais”, depois a verticalização, que torna o conceito do empreendimento um sucesso. Modelo para futuros projetos habitacionais de alto luxo que apareceram em zonas contíguas, em 1990 Alphaville albergava 75 mil moradores, 360 empresas no centro empresarial e 600 empresas no centro comercial; contava ainda com mais de 800 homens trabalhando na segurança. Morar em Alphaville tornou-se, então, um sonho de consumo para as classes altas e as novas classes médias em ascensão. Um projeto pacientemente construído desde os anos 1970, a partir de interpelações publicitárias muito características:
“Portal do Morumbi. Aqui todo dia é domingo.” (1975)
“Granja Julieta. Vá lá e more feliz.” (1976)
“Vila das Mercês. O direito de não ser incomodado.” (1980)
“Verteville 4. soluções reais para problemas atuais.” (1987)
“Desperte o homem livre que existe em você. Mude para a Chácara Flora.” (1989)
As chamadas enalteciam a ideia de que em um condomínio dois problemas cruciais para a classe média seriam resolvidos conjuntamente: a segurança e o acesso aos serviços. Contudo, de todos os elementos importados pela retórica dos novos condomínios brasileiros de seus equivalentes americanos, um se destacava pela ausência: a promessa de uma comunidade racialmente integrada. Esse tópico chega a ser escandalosamente suprimido nas propagandas que se valiam de testemunhos estrangeiros, com tradução legendada. Nossos condomínios, ao contrário, continuavam a primar pela distinção entre elevadores e entradas e saídas “sociais”, de um lado, e de “serviço”, do outro.
Pela lei brasileira, um condomínio exprime o conceito de um direito exercido de maneira simultânea por muitos sobre um mesmo objeto ou bem. Ou seja, a mesma coisa pertence a mais de uma pessoa; todas partilham direitos, convivem e contribuem nas despesas necessárias para a manutenção de parcelas que são, necessariamente, usadas e administradas em comum. Segundo a Lei 4.591/64, de 16 de dezembro de 1964, e seus respectivos adendos, um condomínio possui certos poderes estabelecidos contra estranhos: uso livre da coisa, liberdade de alheamento, defesa da posse contra outros, concorrência de despesas comuns, inalterabilidade da coisa comum sem consentimento dos condôminos. Ao contrário das gated communities norte-americanas, que se baseiam no conceito de comunidade anterior, ou do condominum anglo-saxônico, derivado do uso e da propriedade estabelecida, o estatuto português e brasileiro do condomínio provém do conceito de defesa, cujo modelo é o forte de ocupação.
Não se trata aqui de portões, que restringem e orientam a circulação de pedestres, ou de cercas, que delimitam simbolicamente o pertencimento e a obrigação de cuidado do território, mas de muros de defesa, cujo objetivo militar é impedir a entrada, ocultar a presença de recursos estratégicos e facilitar a observação do inimigo. Apesar dos ostensivos 10 mil m2 de clube e área comum do primeiro condomínio do Brasil – o Ilha de Sul, construído em São Paulo, em 1973 – e da manutenção do conceito de que um condomínio deve possuir essencialmente uma rede de espaços e serviços de convivência (e não ser apenas um enclave fortificado, localizado em áreas distantes, com muros de proteção), no caso brasileiro, as únicas áreas que permaneceram de fato comuns e são utilizadas de tal forma foram os playgrounds.
As diferenças de classe e de raça não foram tocadas, mas “resolvidas” por meio de um sutil código de circulação e de convivência apartada entre os serviçais e os moradores. Seria preciso descobrir como foi possível inventar uma forma de vida comum sem uma verdadeira comunidade.
Um ano depois da aprovação da lei brasileira sobre condomínios, Jean-Luc Godard dirigia o filme Alphaville (1965). A estranha aventura de Lemmy Caution é um sincretismo entre os gêneros da ficção científica distópica e o romance policial noir, inspirada no clássico de Jean Cocteau, Orpheus (1950). A história se passa em outro planeta, mas o filme é rodado em Paris. Sem efeitos especiais dignos de nota, o futuro é representado pela arquitetura modernista em edifícios de concreto envidraçado. O herói é um veterano da Segunda Guerra Mundial que se torna agente secreto (003) disfarçado de jornalista, cuja missão é resgatar outro agente desaparecido, capturar o criador de Alphaville (professor Von Braun) e destruir o computador que controla e administra a cidade (Alpha 60). Em Alphaville, está proibida toda forma de amor, poesia ou emoção. Toda construção interrogativa na forma por quê? foi banida e deve ser substituída pelo explicativo porque. Os transgressores, quando não eliminados, são enviados para outras galáxias, com o fim explícito de incitar revoltas, greves e perturbações estudantis. Em cada casa, há uma espécie de dicionário, continuamente atualizado, contendo as palavras suprimidas em função de sua potencial conotação afetiva. Caution se apaixona pela filha do professor Von Braun, também chamado Nosferatu. Sua astúcia consiste em confundir o computador que controla Alphaville com frases poéticas de Jorge Luis Borges, Friedrich Nietzsche e Blaise Pascal.
Portanto, antes mesmo de possuirmos nossos condomínios fechados, aprendemos a associá-los com a imagem de felicidade, que, não sem alguma ironia, podíamos colher no cinema e na televisão, revestida de asceticismo. Assim, quando os primeiros projetos desse tipo ganharam corpo no Brasil, era também uma ilusão pré-fabricada que encontrava seu signo de realidade. Eles recuperavam o antigo ideário de modernização como planejamento e antecipação, mas abdicando, então, de sua universalidade. Daí que tenhamos uma forma de vida caracterizada pela proposta de articulação entre a dialética do amor e da amizade, expressa em uma comunidade de cuidado que é extensão integrada da família, com a dialética do direito e da ética, expressa por uma administração particular profissionalizada.
Uma vida governada segundo exigência de autorrealização, em que o conceito de “estilo de vida total” funciona como elemento de unificação teológico-metafísica dos diferentes sistemas simbólicos – serviços bancários, alimentação, escola, serviços domésticos, compras e até mesmo o trabalho, tudo isto é realizado nas imediações. Mas é precisamente nesse ponto que algo parece escapar ao esperado. A forma de vida em condomínios vem sendo retratada, de forma sistemática, como repleta de mau gosto, investida de artificialidade, superficialidade e esvaziamento. O crime ressurgiu dentro dos condomínios: primeiro, pequenas desobediências de trânsito, depois, consumo de drogas e, finalmente, desavenças entre vizinhos.
Se olharmos para trás à procura de precedentes para esse tipo de forma de vida planejada, ascética e controlada, baseada no uso e na administração racional do espaço, do lugar e das posições, não reencontramos os sonhos utópicos naturalistas como Walden, as cidades medievais de Campanella ou ainda as cidades utópicas do Mundo Novo, como as retrata Italo Calvino. O precedente mais claro de nossos modernos condomínios administrados, conforme o uso higienista da razão, são, evidentemente, os grandes hospitais psiquiátricos reconstruídos e expandidos em meados do século XIX. Uma visita a Salpêtrière, em Paris, ou a Steinhof, no entorno de Viena, até mesmo a Barbacena, em Minas Gerais, ou a Franco da Rocha, no subúrbio de São Paulo, mostrará a similaridade irretorquível. Retirem-se a pobreza e os sinais aparentes de loucura, e o que restará é um protocondomínio arborizado, cheio de locais para meditação, centros de cuidado e tratamento, regulamentos e rotas de circulação. Espaços que são ao mesmo tempo de produção de saúde e de reprodução de um modo de vida perdido.
O apelo à vida em forma de condomínio baseia-se, como os antigos leprosários e hospícios, na promessa de recuperação e reconstrução da experiência perdida. A antiga noção de cura não tem outro sentido que não o de reencontro de um lugar. Talvez não seja por outro motivo que não se possa associar a nova vida em condomínio com nenhuma expressão artística ou cultural relevante. A distante relação com o pós-modernismo como estilo arquitetônico pode ser reduzida ao pastiche de paródias involuntárias, citações invertidas e autoironias mal escolhidas. Isso por si só já seria uma exceção, tendo em vista a recorrência histórica entre transformações urbanísticas e criação estética. A lógica do condomínio tem por premissa justamente excluir o que está fora de seus muros; portanto, no fundo, não há nada para pensar na tensão entre esse local murado e seu exterior. Também não há muito a pensar na tensão intramuros, uma vez que, como observamos, a única área de real convivência pública é o playground. O espaço já é concebido e vivido como falso universal. Por isso, os que vivem fora estão sem lugar, sem terra, sem teto, sem destino. E os que vivem dentro estão demasiadamente implantados em seu espaço, seu lugar e sua posição.
A música W/Brasil (Chama o síndico), de Jorge Ben Jor, foi encomendada ao músico para comemorar o aniversário de uma agência de publicidade, em 1990. É um marco da passagem do samba para o funk no país. O samba é tradicionalmente entendido como uma música do coletivo indeterminado, da festa aberta, do barracão, da roda e da família. O funk, ao contrário, traz a ideia de que cada um, ou cada turma, ou cada galera, ou cada bonde tem de ocupar seu lugar. É como se o samba fosse uma conversa, em forma de canção, enquanto o funk é um conjunto de monólogos. A divisão já estava dada no início da carreira do cantor, nos anos 1960. Situado entre a Jovem Guarda e a Bossa Nova, Jorge Ben Jor é um ótimo exemplo de continuidade da disposição onívora do modernismo brasileiro na música. Disposto a importar ritmos e a combiná-los em novos formatos, ele faz uma mistura de suingue e rock, samba e hip-hop, rap e funk. Forma e conteúdo se reúnem nessa música, que teria partido de uma alegoria real.
O cantor Tim Maia teria se irritado com uma escada fora de lugar no condomínio onde morava, de tal forma que a solução encontrada foi candidatar-se a síndico. A trama proverbial da segunda parte do refrão contrasta com a primeira, na qual se alude à favela do Jacarezinho, as crianças servindo de transporte para o tráfico de drogas (avião) ou como observadoras para a chegada dos policiais, nomeados como estrangeiros, extraterrestres (disco voador). A letra é pensada como nos filmes da Pixar, ou seja, escalonada em alvos estratificados, de tal maneira que cada segmento social se sentirá endereçado em seu “código particular”. Por exemplo, o público mais esclarecido entenderá, em “Dizem que Cabral 1/ descobriu a filial/ Dizem que Cabral 2/ tentou e se deu mal”, a alusão ao empreendimento privatista e corrupto do político homônimo ao descobridor do Brasil. O público carioca perceberá, em “A feira de Acari é um sucesso/ tem de tudo/ é um mistério”, a alusão ao conhecido entreposto de produtos roubados.
Cada grupo encontrará ainda um prazer adicional. Além da mensagem que lhe é especialmente destinada, há o benefício secundário de a forma dela ser tão particular que só pode ser lida e compreendida por “nós”. Os “outros” estão excluídos. Ou seja, a forma da letra, ela mesma, pratica seu tema, que é a vida no condomínio Brasil.
Além disso, ela consegue lançar uma suspeita autoirônica em relação ao próprio processo produtivo. É uma música feita sob encomenda para a festa de aniversário de uma agência de publicidade, ou seja, ela mesma um exemplo maior do funcionamento condominial brasileiro. Favorecida por leis de proteção, que começariam a ser desmanteladas a partir de 1992, a publicidade nacional empreitava o capital privado com a proteção e a garantia de incentivos públicos. A autoironia está no fato de que a letra acusa o papel que será reservado ao artista em seu vindouro processo de inclusão ao mercado. Não apenas extorquido pela indústria fonográfica, destruída pelo vendaval digital àquela altura já avistado, mas também extorquido em segunda instância pela música publicitária. Seria esse o condomínio no qual seria possível sobreviver?
A intervenção diagnóstica da canção está em introduzir na figura do síndico ninguém menos do que Tim Maia. Errático e irreverente, de vida e música sincrética, o cantor era, em inúmeros sentidos, o antimodelo ideal para “representar a lei”. O tema não é novo, mas o caráter hegemônico da paródia, sim. “Tira essa escada daí”, dito assim, sem contexto, dito como uma ameaça de chamar o síndico, revela sua função fundamental na gestão dos muros. Nada de escadas, nem para subir nem para descer. Esse movimento acusa uma modificação interessante na incidência da autoridade, consequentemente da inscrição cultural da função social da imago paterna, no Brasil de então.
Antes dos muros, havia uma forma bem definida e dominante no sintoma brasileiro relativo à autoridade. Seu enunciado era: “Você sabe com quem está falando?”. O truque ideológico consistia em sobrepor a violência institucionalizada da autoridade impessoal, como fundamento da diferença social, com a impossibilidade de responder própria e pessoalmente a tal pergunta. A operação equivale a colocar um significante-mestre na posição de agente de um discurso. Na fórmula citada, não há nenhum significado que dê consistência ao “quem está falando”. O significante-mestre, nessa posição, é assemântico, pede obediência, não pede compreensão – exatamente como um nome, ele designa, mas não significa. Nunca sabemos com quem exata e precisamente estamos falando. Recebemos do Outro nossa própria mensagem, desejante, inconsciente e ideológica, de forma invertida. Estamos sempre nos dirigindo ao outro, próximo ou conhecido, e, ao mesmo tempo, aos outros que formam nossa história, aos outros que habitam nossa fantasia, aos outros intimamente desconhecidos.
Quando sancionamos, com nossa paixão pela servidão, os termos da pergunta, concedemos que aquele outro é um representante simbólico do Outro, e que ele dispõe pessoalmente da autoridade impessoal da lei. Essa forma de autoridade é principalmente um sintoma egoico, consoante com uma gramática de ideais na qual era muito importante “ser alguém na vida”. Aliada a uma retórica narcísica que oferecia segurança e prestígio em troca de submissão e obediência, vivíamos uma república de autoridades constituídas e de manipulação de exceções: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.
Capitão Nascimento, no primeiro Tropa de elite, é um exemplo de herói moldado nesse tipo de autoridade. Ele age em nome de um significante assemântico, o significante-mestre que esconde sua própria divisão subjetiva. Essa divisão retorna na cena familiar, nos pesadelos e nas incertezas conjugais que cercam o nascimento de seu primeiro filho. Seu objetivo não é apenas introduzir ordem no estado de anomia, mas combater a falta de ordem com o excesso de violência. Seus meios não são os da determinação de muros e limites, mas a ação em nome da lei para suspender a própria lei. Gradualmente, essas duas cenas se cruzam no problema da escolha de seu substituto, que será, a um tempo, como um filho e um chefe policial.
Essa é a estrutura actancial do que Althusser chamou “interpelação ideológica”, que posiciona o espectador nesse lugar decisional. Assim como o Capitão Nascimento, temos de cruzar nosso funcionamento sistêmico no mundo produtivo com relações de autenticidade que provêm da dialética familiar e pessoal. Trata-se, aqui, do lugar discursivo que Lacan chamou de “semblante”, ocupado pelo significante-mestre, por meio do qual alguém se acredita “padre, doutor ou policial”, para retomar a fórmula de Raul Seixas na canção Ouro de tolo, e por meio da qual o rei que se acredita rei é tão louco quanto o louco que se acredita rei. Ora, há uma posição na qual a eficácia do semblante parece possuir uma garantia ontológica: trata-se da posição do pai. Nisso a psicanálise herda uma confiança na universalidade da forma totemista de articulação entre poder e autoridade.
Homem, mulher, pai ou mãe não são apenas procedimentos e funções, ocupáveis por qualquer um que responda pela aparência que eles requerem, mas são também semblantes, uma forma de ocupar um lugar que é negação do parecer, mas sem recair no ser. Daí que um semblante seja, antes de tudo, um caso particular da função dêitica, por meio da qual o sujeito da enunciação se inscreve no enunciado. Quando se fala em declínio da função social da imago paterna, devíamos atentar mais para o qualificativo “imago” do que para o predicado “paterna”. Declínio da imago não é apenas rebaixamento da função social (totem), mas o fato de seu “semblante” deslocar-se para a posição de um “aparência” (imago).
A lógica do condomínio altera substancialmente essa interpelação indutora de autoridade no Brasil dos anos 1990. Sai o autocrata arrogante, de ego espaçoso e rígido, entra a figura cínica, eficaz e flexível do síndico. Não se trata da personagem prosaica, mal ou bem-intencionada, geralmente odiada por levar más novas e pouco reconhecida perto do serviço ingrato a que se dedica. Trata-se do síndico como estrutura, que, em vez de perguntar “Sabe com que está falando?”, murmura entre dentes, ou simplesmente faz escutar sem dizer palavra alguma: “Só estou zelando pelo regulamento”. Ou seja, o síndico é uma metonímia do mestre, não do pai. Ele não está interessado em um laço de submissão, cujo modelo longínquo é a relação entre senhor e escravo; ele pensa mais como o crente pascalino que só se interessa pelos procedimentos: “Ajoelha e reza, a fé virá por si mesma”. Uma vez ajoelhado, não importa mais se você está a blasfemar, desrespeitar ou invalidar o próprio procedimento. Ao contrário do crente imaginado por Pascal, que tem de decidir, cedo ou tarde, a natureza de sua aposta – se Deus existe (e o céu nos aguarda daqui a pouco) ou se Deus não existe (e devemos nos preparar para a perda de tempo que teria sido uma vida de crença) –, o síndico escolhe deixar o balcão da própria aposta e dedicar-se a administrar ou gerir as apostas alheias.
Segundo essa nova gramática da autoridade em condomínio, não é só o caso da colocação do objeto no lugar do Ideal de eu que explica o funcionamento identificatório das massas. É preciso pensar também a alocação do “objeto a” no Outro. A letra de Jorge Ben Jor, por exemplo, tem uma enunciação que se desenrola inteiramente no registro do chamado, do apelo e da convocação. Seu refrão insiste na resposta fática para a chamada telefônica “Alô, alô, W/Brasil”. Isso se desdobra em todos os versos com a estrutura de chamadas – chamadas dirigidas para os diferentes tipos de gozo, que vão se distribuindo ao longo da canção.
Consideremos que o síndico não é apenas um administrador, alguém que suspende a política para fazer funcionar processos racionalizando seus meios e otimizando seus fins. O síndico é um gestor, e não apenas um administrador. É possível ser um ótimo gestor de hospital sem entender nada de saúde, ser um gestor eficaz de escolas sem se preocupar com a educação ou ser um eficiente gestor público sem nenhum interesse na coisa pública. O que o gestor sabe com clareza é que o Real em jogo no capital é muito mais importante do que o Real em jogo na realidade. Se as contas entre o prometido e o alcançado fecham, produzindo o que devem produzir, o resto é simplesmente desimportante. Ao contrário do antigo administrador de sistemas, que via nos métodos instrumentos seguros de captação e controle da realidade, o gestor sabe que os métodos, as métricas, os índices, os balanços (ou seja, os semblantes) são a única realidade que importa. Entendemos, assim, por que alguém como Tim Maia, ou como o palhaço Tiririca, seria um ótimo síndico. Com eles estamos livres dos síndicos gestores.
O síndico representa uma função de zelo no trabalho, a função de alguém que ao mesmo tempo trabalha e faz outra coisa; mantém a ordem e regula, discretamente, a quebra da disciplina. Essa função do trabalho com zelo foi analisada por Paulo Arantes como ponto central do engajamento no “serviço sujo” que define as práticas de sustentação da segregação desde os campos de extermínio.
O síndico é como um novo sintoma da patologia brasileira da autoridade: envolve conflito entre exigências antagônicas, simbolização de desejo e principalmente um tipo especial de satisfação, chamado gozo. Esse terceiro quesito parece ter sofrido uma inversão. Se antes a autoridade dizia como gozar, em imagem e espelho ao pai, agora ela se contenta em gerenciar o gozo perturbador do outro. Se antes o domínio se exercia no território pessoal do latifúndio familiar, agora ele se organiza em torno do espaço impessoal do condomínio. Há condomínios de luxo e condomínios de pobreza, condomínios institucionais e condomínios de consumo, condomínios de educação e condomínios de saúde. Em todos eles, encontramos traços semelhantes de racionalização: fronteiras, muros, regulamentos e catracas. Assim como o sintoma substitui um conflito por uma formação simbólica na qual não reconhecemos mais o antagonismo inicial, o síndico neutraliza o antagonismo deslocando a falta para uma espécie de zona de excesso. O gestor não resolve, necessariamente, um problema; ele “processualiza” o problema ou “operacionaliza” a solução. Parodiando Laurie Anderson, se você não tiver um síndico, você terá dois problemas, o próprio problema e o fato de você não o ver.
Christian Dunker
Psicanalista, doutor em Psicologia Experimental. Professor Titular do Instituto de Psicologia da USP. Coordena ao lado de Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr. o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP.
Aruan Mattos e Flávia Regaldo
Artistas, trabalham juntos desde 2009. Participaram de residências artísticas e realizaram exposições em Minas Gerais, São Paulo, Ceará e Argentina.
Como citar
DUNKER, Christian. A lógica do condomínio. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 11, p. 102-109, nov. 2017.
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