A MALDIÇÃO
DOS RECURSOS
Texto de Eric Macedo
Viagem pitoresca pelo Brasil, fotografias de Cássio Vasconcellos
Algumas regiões periféricas do mundo parecem amaldiçoadas. Os povos do Médio Xingu são perseguidos por um sentimento de maldição que persiste ao longo da história: a dissipação das breves riquezas geradas pelo extrativismo se replica na rápida dilapidação da natureza local.
Diz-se que, uma vez, uma mulher deu à luz uma menina indesejada. Diz-se ainda que a criança era filha bastarda do patrão da mulher. Envergonhada, a mãe jogou-a no Rio Xingu, próximo ao local onde se situava o Forte Ambé, a primeira edificação de Altamira. A menina transformou-se em cobra grande, a cobra Angélica, e passou a habitar um poço próximo ao local onde foi jogada ou, segundo a versão, as fendas nos subterrâneos da cidade. Conta-se, ainda, que a cobra costuma atacar pescadores incautos que se aproximam do poço onde vive. Um padre conduziu uma cerimônia na igreja com o intuito de desencantá-la: a cobra entraria no prédio e, reencontrando a mãe entre os presentes, tomaria de mamar em seu seio. Como isso não aconteceu, o padre condenou a igreja matriz de Altamira a ser, um dia, a cama da cobra grande.
Talvez tenha sido o mesmo padre que, depois de naufragar na cachoeira do Porcão, retornando a Altamira da região de São Félix, foi-se embora da cidade esconjurando-a: “Alta miséria, Forte desgraça e Vitória nada!”, disse ele, referindo-se a Altamira, ao Forte Ambé e a Vitória do Xingu. Muita gente sabe da história da cobra Angélica em Altamira. Há diferentes versões dela, mas foi seu Gabriel quem a contou para mim com o maior número de detalhes. Seu Gabriel é filho de um homem conhecido como Coleta, que chegou a Altamira em 1912, vindo do cangaço, e de uma indígena curuaia, nascida no Rio Curuá.
A cidade de Altamira está localizada no Oeste do Pará, no trecho final do médio curso do Rio Xingu. O município possuía 100 mil habitantes em 2010, 85 mil vivendo na área urbana. A cidade nasceu como entreposto comercial para escoamento das mercadorias extraídas do médio curso do rio — especialmente a borracha, que nas últimas décadas do século XIX impulsionou a colonização da região. Nela está a ponta do percurso que, por terra, leva a Vitória do Xingu, local onde está localizado um porto que permite o ancoramento de grandes embarcações, ligando a região ao Rio Amazonas.
Em 1970, Altamira tinha cinco mil habitantes. Nesse ano, porém, se iniciaria a construção da Rodovia Transamazônica. A colonização da região tomaria um fôlego redobrado, agora não mais restrita às margens dos rios, mas propiciada pela abertura de lotes na beira da rodovia e seus travessões. Altamira tornou-se um polo regional de comércio e serviços. Localizada num ponto central para a estrada que cortaria o continente, ela serviu como uma das primeiras bases para a sua construção e para o projeto de colonização que a acompanhou: além do apelido de “Princesinha do Xingu”, Altamira ganhou o de “capital da Transamazônica”.
Quando me contaram a história da cobra Angélica, seu Gabriel e sua esposa, Maria, estavam vivendo em Altamira. Estavam vivendo a expectativa de terem sua casa na cidade demolida para dar lugar ao lago da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, construída nas proximidades da cidade entre os anos de 2011 e 2016. Não gostavam do cotidiano da cidade: tinham também uma casa à beira do Rio Curuá, a centenas de quilômetros ao sul da cidade de Altamira, mas ainda nos limites deste município, um dos maiores do mundo em extensão territorial. Ali, em meio à mata, sentiam-se muito mais à vontade do que em Altamira. Ainda mais que a cidade andava particularmente inóspita, com a movimentação das obras de Belo Monte e seus milhares de trabalhadores e caminhões circulando por ruas esburacadas, retraçadas rapidamente a fim de acomodar a gigantesca novidade que ali se instalava.
Seu Gabriel foi criado entre os rios Iriri e Curuá. Sua vida, como a de outros curuaia, girou em grande parte em torno do garimpo nessa região, associado a outras atividades, como a pesca, a caça para consumo próprio e, até há algumas décadas, para venda de peles, e a extração de borracha. Uma vida na qual muito raramente alguém enriquecia, apesar da aparência de abundância dada pela presença do ouro. Tampouco, em geral, se passava fome. Muita gente, contudo, bamburrava: achava ouro suficiente para grandes extravagâncias, o que significava que o dinheiro não duraria muito. Seu Gabriel se lembra do caso de um companheiro que, extraindo 389 gramas de ouro num único dia, fretou um avião para ir do garimpo ao vilarejo de Castelo dos Sonhos buscar uma sandália para a esposa. Ela ficou insatisfeita com o presente: de pronto, o avião foi fretado novamente para buscar outra sandália que lhe agradasse.
Um garimpeiro nascido na Paraíba, mas habitante há quatro décadas da Volta Grande do Xingu, me descreveu a vila da Ressaca, onde mora, como um paraíso: “Não dizem que o paraíso é cercado de ouro? Aqui estamos num círculo de ouro, e na beira de um rio farto de peixe”. Outro refletia, no dia seguinte, sobre o momento atual de declínio da atividade garimpeira. Dizia que agora não há mais dinheiro, não há mais a fartura de antes. Em compensação, há tranquilidade, menos brigas, menos violência. “O dinheiro traz violência. É a fonte de todo mal”, dizia ele. Aponta-se recorrentemente que o ouro é visto por muitos dos que lidam com ele como tendo algo de maldito. Essa maldição tem em geral a ver com afirmações de que o dinheiro do ouro não dura, que é “como fumaça”, gasto com facilidade. Em alguns casos, o gasto rápido é visto como uma forma de garantir que o bamburro se repita outras vezes.
A ideia de maldição parece dizer algo mais geral sobre o Médio Xingu, para além de qualquer alusão a um processo “sobrenatural”. Uma maldição é algo que atinge algo ou alguém de modo negativo: maldizer algo, lançar uma praga, é canalizar o desejo de que o alvo da imprecação caia em desgraça, sendo tomado por consequências funestas. O que proponho aqui é uma noção de maldição que remete à caracterização que Philippe Pignarre e Isabelle Stengers fazem do sistema capitalista como um sistema “feiticeiro”. Os autores dedicaram-se, num livro primoroso publicado em 2005, a identificar as formas pelas quais o capitalismo nos enfeitiça, traçando práticas que poderiam funcionar como proteção ou desenfeitiçamento. Talvez seja possível, de fato, ver num tipo particular de maldição um dos modos pelos quais a feitiçaria capitalista atua, especialmente em algumas regiões do globo que parecem fadadas a ocupar um lugar secundário na dinâmica do capital, sendo particularmente afetadas por seus aspectos negativos.
O trabalho de alguns economistas já se refere a uma “maldição dos recursos naturais” que atingiria certas partes periféricas do capitalismo. O termo foi cunhado por Richard Auty no começo da década de 1990 e ganhou proeminência na discussão econômica sobre países em desenvolvimento. Em linhas gerais, os economistas notaram que, ao contrário do que se pensaria intuitivamente, a abundância de recursos naturais aumenta a probabilidade de que esses países experimentem baixo crescimento econômico e altos níveis de pobreza (e, além disso, regimes autoritários e conflitos violentos), com desempenho pior do que os países em que esses recursos não estão presentes.
A diferenciação entre centro e periferia não coincide necessariamente com as divisões de fronteira entre Estados Nacionais, nem com uma simples separação global entre Norte central e Sul periférico. Há zonas periféricas internas aos países do “primeiro mundo”, assim como zonas centrais nos países do “terceiro mundo”. Cada mercadoria, para se constituir como tal, contém algo que remete a um “centro” e algo que remete a uma “periferia”. São como duas faces: uma que corresponde às dinâmicas de acumulação do capital surgidas no centro, com o modo de produção capitalista (no que diz respeito seja ao trabalho assalariado, seja à especulação financeira), e outra que, correspondendo à periferia, diz respeito a outro modo da acumulação, que passa pela exploração de um trabalho não pago da natureza e de certas populações humanas.
O sociólogo Jason W. Moore propõe trazer à tona um lado da produção do valor que permanece invisibilizado nas análises marxistas tradicionais. Se, de fato, o valor da mercadoria é dado pelo “trabalho social abstrato” (trabalho efetivamente pago), ele encontra como condição necessária a criação e apropriação de outros tipos de trabalho não registrados como valor: trabalho humano, especialmente de mulheres, tradicionalmente responsáveis pela “reprodução” da força de trabalho; mas também o “trabalho” das naturezas extra-humanas de que o capital depende para se reproduzir.
Esse “trabalho não pago” é o que permite a fabricação de quatro elementos centrais para a contínua expansão do capitalismo: mão de obra, alimentos, energia e matérias-primas (o que Moore chama de “Naturezas Baratas”). Sendo o trabalho pago aquilo que efetivamente gera valor, podemos associá-lo à acumulação de capital e, portanto, às regiões centrais do capitalismo. Por outro lado, a tensão entre a taxa dessa acumulação e sua necessidade intensiva de Naturezas Baratas (rapidamente exauridas) é o que leva a uma continuidade dos processos de acumulação primitiva, a uma expansão contínua dos limites do capitalismo e à sua dependência de zonas periféricas que oferecem oportunidades abundantes para novas apropriações.
Em 1949, Georges Bataille publicava um ensaio intitulado A parte maldita, uma contribuição peculiar ao campo da economia política. No livro, a “parte maldita” diz respeito ao excedente inevitável produzido pela vida em toda a sua realização. Toda energia vem primeiramente do sol, que a fornece sempre em excesso. Cada processo da vida na Terra produz também um excedente que deve ser consumido, para o crescimento de um organismo (ou uma formação social) ou para uma dilapidação luxuosa (incluindo-se aí a reprodução e mesmo a guerra). Bataille identifica, a partir daí, dois polos das atividades humanas: um que se liga à esfera do trabalho, do produtivismo, da razão utilitária; outro que corresponde à pura dilapidação, ao consumo inútil do excesso. No capitalismo, é como se tudo dependesse de uma acumulação infinita; ou seja, o consumo “inútil” do excedente é recusado: o “maldito”, ou o sentimento de maldição, está ligado a essa recusa do dispêndio inútil.
A formulação de Bataille me lembra como Seu Agostinho, Yudjá da aldeia Muratu, se referia aos momentos em que, retornando de expedições de caça de peles, gastava-se o dinheiro ganho: naquela época, quando era solteiro, era possível luxar, “ter o que é bom”, e fazer bancada, farras com bebida e comida, em que “vai tudo o que tem”. Também faz recordar, mais amplamente, o inventário feito por Eduardo Galeano de situações vividas ao longo dos séculos de exploração da América Latina: no México, por exemplo, onde a cidade de Guanajuato era frequentemente enfeitada “com jardins que tanto se pareciam com os de Semíramis na Babilônia”; em Sucre, na Bolívia, onde duas senhoras davam “banquetes pantagruélicos”, lançando das sacadas, ao fim das festas, utensílios de prata e ouro para que fossem recolhidos pelos transeuntes. Lembremos ainda das igrejas recheadas de ouro na região de Ouro Preto, no século XVIII, e, mais de cem anos depois, das extravagâncias dos magnatas da borracha de Manaus ou Belém.
Não é que o capitalismo “lance suas maldições” apenas sobre as suas regiões periféricas: de certa forma, como já dizia Bataille, a perda, o consumo inútil são necessários em toda parte. O que se passa na periferia é uma espécie de afloramento da parte maldita, que a torna particularmente visível. Como o grosso da acumulação se dá alhures, a periferia tende a ficar apenas com o fluxo maldito residual que é rapidamente exaurido. A presença mais forte do “sentimento de maldição” nesses locais revela, assim, algo sobre a desigualdade necessária à mecânica de acumulação própria do sistema. Em certo sentido, a “maldição” mais aflorada nessas áreas corresponde a uma manutenção dessa desigualdade constituinte. Na periferia, ou os fluxos escorrem em direção a um centro ou são completamente dissipados: a acumulação, nestas áreas, é mantida numa escala mínima, o que tende à manutenção da condição periférica.
Isso que viemos chamando de zona periférica guarda certa relação com a noção de fronteira, conceito habitualmente destacado para pensar a incorporação de novas áreas à dinâmica capitalista. As abordagens mais consagradas sobre o tema dão pouco espaço para a função da extração de “recursos naturais” nas dinâmicas instauradas nessas áreas. Mesmo quando isso é feito, porém, o conceito parece ainda muito localizado, especialmente se encaramos a possibilidade de formação de novas fronteiras em locais onde a ocupação é vista como dada — não seria este o caso, por exemplo, da exploração de gás por meio de fraturamento hidráulico (conhecida como fracking) em áreas urbanas dos Estados Unidos, como uma fronteira que desta vez expande-se em direção ao subsolo?
A formação de fronteiras é o modo pelo qual o capitalismo se apropria de novas zonas onde encontra mão de obra, energia, alimentos e matéria-prima baratos. A manutenção das taxas de acumulação depende de que esse movimento se dê num ritmo mais rápido do que a própria acumulação, uma vez que esta tende a uma contínua exaustão das naturezas humanas e não humanas que entram no processo produtivo.
Há fronteira sempre que o limite do capitalismo se desloca; as fronteiras são como zonas formadas a partir deste deslocamento. Tais zonas não são apenas geográficas: elas abrem-se no espaço horizontalmente ou verticalmente (atingindo o subsolo ou a atmosfera), tanto quanto, por exemplo, em relações de trabalho. O pensamento neoliberal nada mais é do que um conjunto de receitas que, ao subtrair certos direitos da população (direito à aposentadoria, assistência médica e educação gratuitas) ou precarizar as relações de trabalho, abre novas oportunidades. A cada novo fluxo que é liberado, o limite se desloca; uma nova fronteira está formada. Não há dúvida, porém, de que a periferia é o lugar privilegiado para a formação dessas zonas.
Nas áreas periféricas, a dilapidação da riqueza nas mãos das pessoas envolvidas nos processos produtivos locais se replica ainda em outro processo mais amplo: a dilapidação ou dissipação dos próprios recursos retirados. Isso se dá mais visivelmente no caso da mineração, mas também na maior parte das atividades extrativistas (incluindo, aí, a madeira), em que há uma espécie de dilapidação progressiva dos elementos. O sentimento de maldição suscitado pelo ouro, por exemplo, remete num primeiro momento à riqueza imediatamente consumida após cada lance de trocas. Numa perspectiva mais abrangente, ou num tempo estendido, porém, ela também parece dizer respeito ao fato de que aquilo que é extraído, num dado local, também tende a um esgotamento.
Na economia extrativa, sabe-se — ao menos por um sentimento vago — que as atividades tendem a não durar ou que há uma duração limitada pelos estoques disponíveis. Daí vem, em parte, a alternância das atividades realizadas nessas áreas, assim como a configuração de ciclos de abundância e escassez. Os elementos extraídos que formam a base dessas economias são necessariamente finitos; não podem se reproduzir.
No caso da hidreletricidade, a dilapidação realiza-se de outra forma: não mais progressivamente, mas efetuando-se por um salto súbito, concentrado no período de construção — até concluído o alagamento ou ensecamento da área. A construção de uma hidrelétrica como Belo Monte passa por um momento de consumo frenético: das pilhas inimagináveis de material utilizado à bebida sobre a mesa dos barrageiros que a erguem. E então, terminadas as obras, tudo se estagna. O potencial de um dado trecho de rio para a produção de eletricidade é convertido num único lance: ainda que a força do rio passe pelas suas turbinas ao longo de décadas, o trecho é barrado apenas uma vez.
No caso de Belo Monte, tratou-se de um esforço gigantesco, impossível sem a participação ativa do Estado brasileiro. A potência de captura do Estado é posta a favor de uma dinâmica capitalista mais ampla; por outro lado, o Estado também captura as empresas que, de certa forma, aparecem prestando um serviço a ele: especialmente um serviço ao crescimento, lema maior dos estados nacionais contemporâneos, pressuposto indiscutível da narrativa econômica atual. Belo Monte, lembre-se, foi o “carro-chefe” do propalado “Programa de Aceleração do Crescimento”, grande aposta econômica do governo brasileiro em sua segunda etapa sob o comando do Partido dos Trabalhadores.
Sem dúvida, Belo Monte serve a uma acumulação de capital. Seus construtores extraem lucro especialmente no momento de sua construção; como muitos apontaram, os ganhos de Belo Monte com a geração de energia não têm papel relevante na decisão de sua construção. Para entender Belo Monte, contudo, é preciso levar em conta sua forte relação com o setor mineral: especialistas como Phillip Fearnside têm mostrado como a maior razão para a sua construção está no fornecimento de energia para a indústria de alumínio localizada no estado do Pará, onde estão 75% das reservas brasileiras de bauxita (trata-se da terceira maior reserva do mundo), minério a partir do qual se produz alumínio. Essa indústria, dedicada a um beneficiamento primário do minério (boa parte do alumínio é exportado em lingotes), é altamente eletrointensiva, dependendo da abundância de energia barata para se manter (estima-se que ela gere apenas 2,7 empregos para cada G/Wh de energia consumida; comparada a outras indústrias do mesmo tipo, ela perde apenas para as usinas de ferro-liga).
A Alcoa, um dos três maiores produtores de alumínio do mundo, opera uma mina de produção de bauxita em Juruti (oeste do Pará) — trata-se de uma das maiores reservas existentes no planeta, estimada em 700 milhões de toneladas. Em Barcarena, na região metropolitana de Belém, estão localizadas algumas unidades de beneficiamento de minério, entre elas a Hydro Alunorte (maior refinaria do mundo de alumina, uma das etapas da transformação de bauxita em alumínio) e a Albras, controlada pela mesma empresa (a norueguesa Norsk Hydro) e maior fábrica de alumínio do Brasil. No caso da alumina, segundo o site da empresa, 86% do que é produzido, em média, é exportado.
O que é exportado é essencialmente o trabalho não pago de recortes da biosfera. Os fluxos de minério, por um lado, e energia, por outro, são combinados na produção de certas formas de matéria-prima exportável. A abundância de energia barata é essencial para o funcionamento da cadeia: em última instância, o fluxo dos rios da Amazônia é convertido em fluxo de energia e, posteriormente, em fluxo de matéria-prima. Nos locais de extração, a quantidade de pessoas empregadas é ínfima, tanto na geração de energia (pós-construção) quanto no beneficiamento do minério. Se o valor é dado pela força de trabalho, ele não é fundamentalmente gerado aí. A conversão desse novo fluxo (alumínio em suas diversas etapas de transformação) em capital se dará em outras regiões (no caso da Alcoa, por exemplo, em sua sede norte-americana). O valor, portanto, é produzido no centro. A região periférica fica com um punhado de salários e todos os impactos da produção. Dissipação de naturezas: entre elas, um rio barrado.
Num sentido amplo, portanto, descontadas as variações no modo de produção (capitalista no caso da Alcoa, extracapitalista no caso do garimpo), a dinâmica da maldição parece ser a mesma, do começo ao fim. Na periferia ocorre uma dissipação da riqueza, realizada nos parcos salários que cabem aos trabalhadores, e na dissipação progressiva ou súbita das naturezas através da apropriação de seu trabalho não pago. Se, como mostra Bataille, a parte maldita tem a ver com a dádiva, com um “desperdício sem contrapartida”, pode-se dizer que o Xingu (e seu entorno) aparece, em Belo Monte, como uma figura que, como o Sol, “dá sem nunca receber”. Servindo, sem dúvida, a certo crescimento que se dá em outras partes do planeta, Belo Monte é, de um ponto de vista local, pura dilapidação. Até mesmo por sua grandiosidade, a barragem lembra uma suntuosa pirâmide; ergue-se um gigantesco templo destinado ao culto macabro de um dos deuses do capitalismo: Energia.
Eric Macedo
Doutor em Antropologia pelo Museu Nacional com a tese Altamira: Ensaio Histórico-maquínico sobre a Colonização.
Cássio Vasconcellos
Fotógrafo com obras no acervo do MASP e Museu de Houston, interessado em aproximar a imagem fotográfica da pintura e das artes gráficas.
Como citar
MACEDO, Eric. A maldição dos recursos. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 10, p. 10-19, mai. 2017.
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