A MARCHA PODEROSA
DOS PONTOS
Texto de Roberto Andrés
Dialeto, ilustrações de Marcelo Drummond
Em janeiro de 2003, enquanto a nave espacial Columbia flanava no espaço com sérios danos em suas asas, diretores da NASA reuniram-se para avaliar os riscos. O slideshow utilizado na reunião foi considerado uma das causas do acidente. “É fácil entender como um diretor sênior pode ver esta apresentação e não perceber que se trata de uma situação de alto risco”, concluía o comitê de investigação, criticando a NASA pela cultura de trabalho em que “o uso endêmico doPowerPoint” substituía a análise técnica rigorosa.
A Columbia se desintegrou quando regressava à Terra, matando os sete tripulantes. As falhas de comunicação geradas com o PowerPoint não ecoaram, mas subsidiaram as críticas à ubiquidade das apresentações de slides e à simplificação do pensamento que elas provocam. Em artigo de 2005, Ruth Marcus cita o acidente para argumentar que a facilidade com a qual o PowerPoint reduz qualquer assunto “a uma série de itens, elimina nuances e permite, ou até mesmo encoraja, a ausência de pensamento sério.” Afinal, “para quê pensar se o Auto Content Wizard faz isto por você?”
Edward Tufte, professor emérito de computação e design na Universidade de Yale, é um dos mais contundentes críticos à cultura do slideshow. Em artigo intitulado “PowerPoint is Evil”, de 2003, Tufte propunha um recall global do software, por vir de fábrica com os defeitos de induzir a estupidez, a chatonice e “degradar a qualidade e a credibilidade da comunicação.” O seu principal argumento é de que o slideshow convencional supervaloriza a forma sobre o conteúdo e, assim, distorce e banaliza ideias em prol de uma coerência estipulada pela ferramenta.
Sete anos depois do recall proposto por Tufte, o então comandante das tropas americanas no Afeganistão, General Mc Chrystal, se deparou com um slide de arrepiar os cabelos. “Quando entendermos isso, teremos vencido a guerra”, comentou sobre o gráfico extremamente complexo (popular na Internet pela semelhança com um prato de espaguete) que abordava a situação da guerra no país de Osama Bin Laden.
Nos Estados Unidos, o exército é conhecido como uma das instituições mais adeptas ao slideshow. Já em meados da década de 90, quando o mundo apenas engatinhava na computação gráfica, os soldados americanos nadavam de braçada em cliparts, charts e bullets. Reza a lenda que, na guerra da Bósnia, em 1996, o intérprete Jim Nelson traduziu para o inglês o comentário de um soldado russo: “Se um dia entrarmos em guerra, mataremos vocês enquanto estiverem fazendo seus PowerPoints”.
Pode-se enxergar alguma profecia na fala do russo. Ao responder a um questionário na guerra do Iraque, em 2009, o tenente Sam Nuxoll afirmou que dispensava a maior parte de seu tempo fazendo apresentações em PowerPoint. Em seguida, desabafou: “Tenho que fazer apresentações completas, com imagens, gráficos e sumários sobre absolutamente qualquer coisa que aconteça.” Foi assim que jovens oficiais, que tomam grande parte de suas jornadas manejando umStoryboard, ganharam a alcunha de Power Point Rangers.
Mas a unanimidade tem limites, até no exército ianque. A página Death by PowerPoint, na Wikipédia, elenca insurreições e inconfidências contra o software. Encontram-se ali o caso do corajoso brigadeiro Herbert McMaster, que baniu oPowerPoint de suas operações e obteve sucesso, do insolente coronel Lawrence Sellin, que perdeu seu posto por criticar a excessiva dependência dos militares com os métodos de apresentação, e do sincero general James Mattis, que asseverou: “PowerPoint nos torna estúpidos”.
Já o talentoso capitão Patriquin produziu, no Iraque, uma apresentação inovadora de slides. Aventando os efeitos de se ampliar o poder da população local, utiliza personagens estereotipados (o soldado, o cidadão, o xeique, o terrorista) para esboçar um panorama social da guerra. Os 18 slides ilustram uma narrativa simplória com desenhos pueris. Em meio a apresentações sofisticadas e de alto orçamento, a de Patriquin foi um dos documentos estratégicos no ano de 2005.
Em artigo publicado no Small Wars Journal, com a alcunha de Starbuck, Crispin Burke toma as dores do PowerPoint. Utiliza o caso do capitão Patriquin para argumentar que o programa, como qualquer outro, pode ser “útil desde que bem utilizado”. Para além de platitudes, nota-se que o case de referência não se serve de nenhum dos recursos diferenciados do software (gráficos 3D, animações, edição simultânea, áudio, vídeo). A presentation de sucesso poderia ter sido feita, idêntica, com papel branco e meia dúzia de lápis de cor.
Com o nome Presenter, surgiu em 1985 um programa para computadores da Apple para fazer apresentações de slides. A empresa que o produzia, a Forethought, foi comprada pela Microsoft em 1987 por 14 milhões de dólares. O nome original foi substituído graças a pendengas jurídicas. Desde 1994, o Microsoft PowerPoint domina o mercado e é utilizado hoje por incontáveis milhões de usuários, das mais diversas áreas do conhecimento.
Na década de 90, quando a Microsoft reinava poderosíssima na informática pessoal, o PowerPoint era seu porta-bandeiras. Não era o principal produto, mas aquele em que os efeitos vinham à tona. A cultura digital da época espelhava a da empresa de Bill Gates tanto em aspectos gráficos como em organização de conteúdo. Nas páginas de Internet e cd-romsdos anos 90 são comuns as ilustrações tipo cliparts, os fundos degradés, as tipografias e cores desconjuntadas, assim como a ênfase na organização em árvore, muitas vezes reproduzindo critérios empresariais ou pseudo-científicos.
Neste início de século, o crescimento exponencial da Apple e da Google revirou essas duas tendências. Com a empresa de Steve Jobs e seus badalados Ipods, cresceram as interfaces gráficas limpas e sofisticadas, que preferem poucos elementos a funcionalidades complexas. Com a Google, mudou-se o paradigma de armazenamento e acesso a dados, de modo que os mecanismos de busca substituem cada vez mais a categorização exaustiva.
As novas bolas da vez da informática (Facebook, Twitter e seus primos menos ricos) são herdeiros dessa mudança de cultura: têm poucas funções, são cleans, rápidos e descomplicados. Os seus nominhos onomatopéicos destoam do empresariês com nome e sobrenome dos produtos da Microsoft. (Essa lembra uma tia-avó extravagante, cujas roupas, gírias e gestos démodés não inibem sua insistente onipresença). Nos dias atuais, talvez o PowerPoint represente o principal foco de resistência da Microsoft e de sua cultura. Foco que irradia dos Estados Unidos, mas que encontra solo fértil nos trópicos e se alastra entre empresários, marqueteiros, políticos, advogados, arquitetos, cientistas, engenheiros, professores, párocos, técnicos de futebol, cidadãos comuns e Presidenta da República.
Dilma Roussef, desde os tempos do Ministério de Minas e Energia, era famosa pelo esmero em apresentações de slides detalhadas e sonolentas. Na presidência, elas já foram ponto de comparação entre o seu estilo e o de Lula. Enquanto ele domina a oratória, bravateia com jargões e metáforas de toda sorte, ela opera com maestria o software da Microsoft para apresentar estudos, tabelas, gráficos, imagens e pontos, muitos pontos.
A presidenta faz parte de um tipo político em ascensão. Com menos experiência política que administrativa, abusam de termos como choque de gestão, plano de metas, empowerment, déficit zero. São formais e se vendem por sérios. Muitas vezes, suas plataformas políticas têm como meta o próprio meio (a gestão eficiente) e esquecem-se do fim (a agenda programática). Não são hábeis em discursos, não emocionam, têm pouco jogo de cintura, mas conquistam espaço manejando números em planilhas e projetando gráficos coloridos.
Com o Excel sob um braço e o PowerPoint sob o outro, os gestores multiplicam-se pela burocracia pública. De modo que se torna cada vez mais difícil imaginar algum departamento de alguma secretaria de algum órgão público que não utilize planilhas, gráficos e slides para lidar com seus assuntos.
Com a crescente informatização da sociedade e das instituições no Brasil, em poucos anos chegaremos perto de uma tão desejada democratização do digital. Se o país pode aproveitar para dar improváveis saltos sociais, educacionais e culturais, pode também, em seu afã de olhar para fora, referenciar-se nas experiências pioneiras da América. Quem sabe não aprenderemos a burocratizar intermináveis guerras e a capotar nossas próprias naves espaciais?
Nos últimos 6 anos, o Ministério da Educação fez chegar 800 mil computadores a escolas públicas brasileiras – fora aqueles advindos de programas estaduais e municipais. A informática adentrará cada vez mais os processos pedagógicos. As possibilidades de pesquisa ampla, trabalho colaborativo e expansão do universo cultural dos estudantes são evidentes e promissoras. Por outro lado, a pouca quantidade de material e metodologias de qualidade, somada a um certo deslumbramento com a tecnologia, pode fazer da informatização atabalhoada um tiro no pé do ensino.
Cada vez mais, trabalhos escolares e aulas expositivas convertem-se em slides, prática bastante criticada por Edward Tufte e Ruth Marcus. Ambos apavoram-se com a chegada do PowerPoint nas escolas. Criticam o fato de estudantes substituírem o exercício de escrita e reflexão pela itemização simplista, engajarem-se mais na forma do slide que na qualidade do conteúdo e modelarem seu pensamento com excesso de comercialismo.
Entra ainda na equação, no caso brasileiro, o PowerPoint caseiro. Fenômeno global, como o futebol, desenvolve-se com especial potência nessa terra de talentos. Flores e animais exóticos, mentiras políticas, pseudo-análises sociais, pérolas da autoajuda e piadas infames são apenas a ponta do iceberg de spams.ppt que circulam diariamente na Internet. Não deixa de ser plausível e incômoda a possibilidade de esse caldo ralo de cultura respingar no ensino.
Por outro lado, essa verdadeira manifestação pop via slideshow no cotidiano não deixa de ser a outra face da profusão de gráficos 3d, estatísticas duvidosas e tabelas indecifráveis nas instituições. Eis que, pela mesma ferramenta com que se fazem as apresentações mais aborrecidas, surge um acervo enorme de curiosidades e leviandades em geral. Atualizam-se, num clicar de mouse, os dois tipos sociais proeminentes no Brasil – as duas colunas máximas da opinião –, deflagrados por Machado de Assis no século 19: os frívolos, que não levam nada a sério, e os graves, que se levam a sério demais. Na era cibernética, ambos engrandecem as estatísticas de instalação de cópias pirata do Microsoft PowerPoint 2010™.
Roberto Andrés
Um dos fundadores da PISEAGRAMA, foi editor da revista de 2010 a 2020.Marcelo Drummond
Artista gráfico, professor da Escola de Belas Artes da UFMG, membro-fundador do Laboratório PIRACEMA de Design e integrante do Grupo GRAMMA.
Como citar
ANDRÉS, Roberto. A marcha poderosa dos pontos. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 2, p. 31-33, abr. 2011.