À MARGEM
DE ITAIPÚ
Claudia Washington
e Lúcio de Araújo
Deriva pelas margens do Lago Artificial de Itaipu, criado com o represamento do Rio Paraná em 1982, com águas espalhadas em terras brasileiras e paraguaias. Através de uma rede de encontros e histórias incontadas, o passeio é remontado neste diário de viagem.
Sobre o lago artificial de Itaipu, percebemos a dimensão noturna do monumento. Após sobrevoarmos quase toda a extensão do Paraná numa noite de lua cheia, chegamos a Foz do Iguaçu no início da madrugada. Já na casa de Juca conversamos a respeito de nossas intenções de deriva e rememoramos o encontro de um ano atrás. Juca vive com Teresa, dois filhos e os pais. À procura de um hotel, conhecemos Luis, um chileno que vive há doze anos no Brasil e quer trabalhar com conscientização ambiental contra o tráfico de animais silvestres e instruir as pessoas que possuem animais na zona urbana – citou como exemplo os cavalos sem ferradura que andam sobre o asfalto quente. De volta à casa de Juca, iniciava-se o filme Em busca da felicidade, acompanhado por rodadas de tomate, queijo e salame argentinos. No fim do dia, já no hotel, a porta do guarda-roupa revelou uma antiga anotação: “Estivemos passando a Páscoa de 98 em Foz e hospedamos neste hotel. Passamos vários dias se amando e se divertindo. A Helena é a mulher que mais amo nesta vida. Foz 12-04-98. Norberto”.
Fomos até a Vila C, criada na época da construção da Usina de Itaipu para abrigar os trabalhadores. É um dos bairros mais distantes do centro de Foz do Iguaçu e o mais próximo da hidrelétrica. Observamos a arquitetura padronizada das residências, com a estrutura do telhado abaulada como galpões. Em sua origem, uma mesma construção dividia-se em cruz, o que permitia abrigar até quatro famílias, mas, pouco a pouco, as construções se singularizam pelas ocupações. Entramos num bar, lá estavam Tekão, Juca, Gealmir, Aguirras e sua esposa, todos moradores da vila desde a década de 1970. Passamos cerca de quatro horas ouvindo suas histórias. A infância, o banho em água dourada – “Foz do Iguaçu não era nada” –, a construção de Itaipu, o caminhão pipa, o caminhão “pega-corno”, a valeta de cinco metros de profundidade que isolava a vila, a façanha da colheita de alface e o caminho para casa, as canções, mágicas e pinturas, a receita de sabão que a vila inteira faz e que causa coceira, a colher gigante entalhada em Caqui Chocolate e a intoxicação nas plantações do Paraguai. Na volta, passamos pelas torres de alta tensão que partem da Usina de Acaray, localizada no Paraguai. Vila C, apesar de ter surgido devido a Itaipu, é alimentada por energia paraguaia – segundo seus moradores, a energia mais cara do Brasil. À noite partiríamos para São Miguel do Iguaçu. No ponto, recebemos a notícia de que o ônibus havia quebrado, mais de uma hora de atraso. Depois de dez da noite, chegamos em São Miguel.
Acordamos cedo e Fátima nos levou até Sadi, pescador da região, que, antes disso, foi agricultor e comerciante. Quando chegamos, estava rodeado por três cães e colhia tomates-cereja. Comentou suas façanhas com os peixes: Armado, Pacu, Bagre, Traíra, Corvina, Peixe-Cachorro, Cará, Piabuçu, Surubi, Pintado, Tucunaré, Lambari, Tilápia, Palometa, Perna-de-Moça, entre outros. Algumas espécies têm reaparecido no lago. Em meio ao riso, jurou sobre a veracidade de suas histórias, apesar de pescador.
À tarde, fomos à aldeia avá-guarani Tekoha Ocoy, localizada no distrito de Santa Rosa do Ocoy. A estrada de acesso é curiosa, de um lado está a reserva indígena, do outro estão campos de soja, paisagem comum na região. Os colonos descendentes de alemães também preservam seus costumes – em Santa Rosa do Ocoy, um dialeto alemão é a língua corrente. No posto de saúde da aldeia fomos recebidos pelo cacique Daniel: segundo ele, a cultura e a língua de um povo são suas maiores riquezas e devem ser honradas. No entanto, hoje dão prioridade para o ensino da língua portuguesa. Para ser cacique, não há candidatura, a decisão é coletiva e, se a pessoa cumprir seu papel, permanece por tempo indeterminado. Com o surgimento do lago, visitar parentes e amigos do outro lado da margem ficou difícil, os encontros agora são esporádicos.
Seguimos até Ipiranga, pela primeira vez estivemos numa praia da Costa Oeste. Na estrada principal conhecemos Clarindo e sua esposa Maria, ambos pescadores. Para ele, a pesca não é um ramo de futuro, mas de sobrevivência. Ele nos explicou a diferença entre os termos: “associação” e “colônia” de pescadores. Numa colônia, receber salário no período da piracema e aposentadoria é direito garantido, numa associação isso não acontece. Maria é analfabeta por escolha do pai, até pouco tempo não reconhecia sequer as cédulas de dinheiro. Foi numa emergência que ela percebeu a necessidade de aprender a juntar as letras e as palavras. Hoje sabe assinar seu nome e é tesoureira da Colônia de Pescadores de São Miguel do Iguaçu. O seu maior prazer é jogar a rede de pesca.
Descemos a avenida principal com destino ao centro de Itaipulândia. No caminho, nos deparamos com uma casa ornamentada com garrafas pet. Batemos palmas até que um homem grande nos atendeu. Maximiliano nos falou de amor, da beleza feminina, de música, da infância e do poder político. Entre suas invenções estão: Brizola morto-vivo, aviões da Tam, Teixerinha, a santa de sutiã e o pescador. Por causa da dengue, restam poucos ornamentos, pois muitos foram retirados por ordem da prefeitura. Ele pegou o seu violão de embalagem tipo bombona cinco litros e cantou algumas canções italianas. Urbano nos apresentou a Casa da Memória – na entrada, ficava o boneco equilibrista, um brinquedo de madeira com sutil movimento. Nos fundos havia uma oficina com plantas medicinais e ornamentais bastante incomuns. Urbano falou sobre restauro, acervo, em como aprender a fazer fazendo. Detalhou cada planta. Ele inventa facas e coleciona moedas.
Enquanto aguardávamos o ônibus para Missal, conversamos com Ella, matriarca da família Münch. A sua história começou na fuga dos alemães da Rússia, deixando para trás os pertences e até os bebês no berço. Escapava quem conseguisse entrar no trem ou enfrentar a neve numa travessia de trenó por rios congelados. Dos navios lotados que partiam da Europa, muitas pessoas ficaram pelo caminho. Como consequência, a família de Ella possui parentes espalhados por várias partes do mundo. Teve até gente que nasceu na China. Ella nasceu no Brasil, cresceu abrindo clareiras na mata intacta e, por um tempo, viveu no Paraguai. Terminou dizendo “Vocês não acreditam, bem interessante é a vida da gente”.
Em Missal encontramos Ivo, o Preto. Ivo tem um restaurante onde trabalha com mais dois filhos, Ademir e Betão. Ademir lembra bem dos dias anteriores ao alagamento. Ele descreveu uma vila deserta: “era como se ninguém houvesse vivido por ali um dia”. Quando criança, presenciou a água subindo e sepultando tudo. Betão nos levou até Gisela, pesquisadora que falou sobre a presença britânica na extração da madeira que ajudou na reconstrução da Europa no pós-guerra e sobre a diminuição drástica da população nos anos da década de 1980. Terminamos o dia em Santa Helena.
Na prefeitura, conhecemos Cladir. Ela falou da mudança de clima devido ao surgimento do lago e da decepção de seu pai por ter perdido suas terras. Segundo ela, os royalties beneficiam pouco a população. Em sua sala, muitos mapas e alfinetes coloridos são usados para demarcar áreas de contaminação e casos de doenças animais.
Encontramos Natan na padaria, que comentou: o nome da cidade é Santa Helena, mas seu padroeiro é Santo Antônio, seu monumento é um Cristo, suas calçadas são em petit-pavé como na capital. A cidade importa modelos urbanísticos ingleses ou italianos e sua comida típica é o costelão gaúcho. Uma das diversões da cidade é o trenzinho, que apita para lá e para cá.
Partimos para Diamante D’oeste na intenção de visitar a comunidade guarani Tekoha Añetete. Na busca por informação sobre uma parada de ônibus, conhecemos Cândida, uma senhora cheia de histórias tristes sobre terras, grilagens, mortes e solidão. O seu desejo era vender tudo e ir para outro lugar. O conflito por causa de terras é marcante no Oeste do Paraná.
Na parada de ônibus, encontramos José. Atualmente agricultor, ele conta ter trabalhado como barrageiro em Itaipu. Mora em Vila Bonita, veio para o sul “caçar miora”. A sua recordação de Itaipu foi através de movimentos corporais, os necessários para que os barrageiros não se acidentassem no momento em que os caminhões despejavam concreto na construção. “Morreu muita gente naquele lugar”, afirmou José. A sua feição transpareceu a recordação e complementou: “Ser barrageiro é muito perigoso”.
Leomar nos levou à aldeia Tekoha Añetete a doze quilômetros da cidade. Ao chegarmos à aldeia, entramos na escola Kuaa mbo’e (Saber ensinar). Lá havia uma roda com vários caciques e membros de instituições como Itaipu, Funasa e prefeitura. Como é de costume nas aldeias, conversamos com o cacique a fim de obter a permissão para acompanhar a reunião, o que não foi possível. O cacique nos disse que se tratava de uma reunião fechada e nos explicou que existem grupos contrários à organização dos Guarani que, por isso, precisam se precaver.
Em Santa Helena, minutos depois de passarmos pelo procedimento padrão da Polícia e da Receita Federal, estávamos na balsa “Oro y Plata” a caminho de Puerto Indio. A bordo, caminhoneiros em busca de milho e soja. Durante a travessia, vimos um bosque de árvores mortas, fruto da inundação.
Em Puerto Indio, fomos recebidos por Steban, Carlos, Francisco e Gustavo. Depois de uns tantos tererês, Francisco, administrador do porto, nos convidou para almoçar com amigos campesinos – Sara, Pedro e Victor. Conhecemos um típico “almuerzo paraguayo”: mandioca cozida sem sal, ensopado de poroto e carne, manga e melancia de sobremesa.
Sara é estudante de engenharia ambiental e gosta de cartografia, que utiliza para visualizar e denunciar problemas ambientais, como a diminuição de nascentes d’água, áreas florestais e o crescimento da monocultura no Paraguai. Pedro luta por se manter no campo. Defende que terra não é mercadoria, é contra o uso de agrotóxicos e a monocultura, se vê ilhado pela vastidão de soja transgênica ao redor. Victor havia estudado plantas medicinais, o que ajuda em muito a comunidade, pois não há atendimento médico fácil na região. Gustavo nos levou de volta ao porto onde esperamos por uma carona até General Días – lá teríamos onde dormir.
João é um caminhoneiro que atravessa frequentemente a fronteira em busca de grãos e nos levou até nosso destino. Nas duas margens da estrada, há uma imensidão de soja, vez ou outra avistamos algum cilo, uma entediante paisagem. Descemos em frente à lanchonete do Lourival, nos fundos havia quartos para hospedagem. Com a voz mansa e em português, Lourival nos encaminhou ao último quarto vago. Ele nos convidou para entrar em sua casa de chão encerado, cortinas nas portas, bordados e crochês na lavanderia. Para quem vive sob a poeira vermelha levantada pelos caminhões que passam diariamente, é uma casa bastante limpa. Fomos até o mercadinho de seu irmão Américo, sua esposa era uma das pioneiras do lugar. Ambos comentaram sobre as dificuldades de viver no local, o analfabetismo, o passado: “General Días era tudo mato”.
Em Mbacarayu, conhecemos o fazendeiro Mário e seus filhos Ademir e Walmor. Mário é um “grande proprietário” de terras da região, açougueiro e também dono do mercado. Contou sobre sua vinda do interior do Paraná para aquelas terras, da perda dos primeiros 70 hectares que comprou com sua família porque caiu num golpe da colonizadora. Aguardamos até o início da tarde para visitar a Casa de Cultura; lá conhecemos Nidia, uma das poucas paraguaias do lugar que nos mostrou alguns livros de estatística e de poesias em guarani, coisa rara em meio a tantos livros em português.
Walmor e Mário nos deram uma carona até San Alberto. No caminho, perguntamos sobre o uso de agrotóxicos nas plantações. Eles não são contra, pois os técnicos das empresas químicas ensinam como utilizá-los corretamente. Para eles, a contaminação da água pelo veneno é tudo bobagem dita por gente que não entende das coisas – “o que polui a água é o esgoto que vem de São Paulo”.
Em busca de um mapa da região, entramos numa escola. Lá conhecemos Amancio, que nos falou da influência do Lago de Itaipu e de sua pesquisa sobre questões culturais e ambientais na região de San Alberto. Em sua casa, tivemos um bom exemplo da mistura das culturas: a esposa Gracinda é brasileira; a filha Beatriz, paraguaia. Embora falem muito bem os três idiomas, Amancio e Gracinda conversam entre si em guarani; Beatriz prefere falar com o pai em castelhano; já, entre elas, a comunicação é em português.
Em Minga Porã ou Lindo Mutirão, município cuja história é a da resistência de um povo frente à radical mudança cultural que se estabeleceu desde a Revolução Verde, vive Anunciación, atual coordenadora das mulheres da Asagrapa, uma associação de agricultores campesinos que luta por uma vida sustentável. Ela nos recebeu em sua casa e explicou como se organizam e participam das decisões. A sua família é uma das pioneiras em Minga Porã, chegaram a ser presos na ditadura por protestarem em prol da emancipação político-administrativa da cidade.
À tarde, fomos de táxi comunitário até Salto del Guairá, com quatro passageiros no banco de trás, três na frente e um no porta-malas. Na rua do porto acontecia uma alegre festa paraguaia ao som de uma banda tradicional – todo mundo dançou. De manhã, partimos em direção a Guaíra. Durante a travessia, passamos sobre as Sete Quedas. Já em solo brasileiro, fomos até a Casa do Artesão, onde conhecemos Margarida – segundo ela, os habitantes de Guaíra sentem a perda das quedas do Rio Paraná, provocada pela formação do Lago de Itaipu.
No dia seguinte, encontramo-nos com Ana, que trouxe uma sacola cheia de personagens lendários de Guaíra, pequenos bonecos feitos com palha de milho. À medida que os colocava sobre a mesa, contava histórias dos trânsitos dos povos e das cidades.
Guaíra, por sua localização estratégica, sempre foi lugar de passagem. Encontra-se aproximadamente na metade do Caminho Peabiru. Já a histórica Vila Rica, construída pelos jesuítas, foi várias vezes destruída por bandeirantes ou opositores. Cidade nômade, passou por sete lugares diferentes até se fixar no Paraguai. Alguns de seus personagens são: Aleixo Garcia, o primeiro homem branco a passar por Guaíra, devorado na região de Assunção tempos depois, e o “fofoqueiro” guarani – um informante –, importante membro da aldeia que deixava pequenos objetos pelos caminhos, objetos que funcionavam como símbolos compreendidos por seu povo.
Das submersas Sete Quedas, mencionou o som que elas proporcionavam: para os Guarani, tratava-se da voz de Tupã. Com o surgimento do Lago, seu deus se foi. À tarde, visitamos o “escritório” de Frei Pacífico, artista e ambientalista da região que reflorestou uma ilha durante quatorze anos. Suely, sua esposa, nos serviu suco do abacaxi cultivado em sua horta. Pouco depois, fomos até dona Lucila, uma paraguaia conhecida por suas histórias e por ofertar um lanche à comunidade após as três horas da tarde – pão caseiro recém-tirado do forno, chipas e cozido paraguaio.
Chegamos a Marechal Cândido Rondon no início da tarde. No caminho até a casa de Marly, caiu uma pancada de chuva. Em busca de abrigo, entramos num armazém de queijos produzidos na região. Lá conhecemos os Vinciguera, nome de origem italiana surgido durante a viagem de navio ao Brasil. Escapar da guerra foi o modo de vencê-la. Armínio e Ivani falaram sobre os ciclos de exploração da região: laranja Pepu, madeira, hortelã, erva-mate e soja. Comentaram também sobre o lendário Allica, senhor temido na região – na época do “mensu”, ele jogava seus cobradores Rio Paraná abaixo.
Marly mora numa casa de madeira que foi transportada de Porto Mendes antes do alagamento. Naquele tempo, era comum o uso de caminhões adaptados para levar casas inteiras de um lugar a outro. Depois de criar suas duas filhas e após a morte do marido, Marly decidiu fazer faculdade. Há dois anos, formou-se em Letras. Hoje leciona em escolas públicas e dá aulas particulares de alemão em sua casa. Falou da vida comunitária da colônia à margem do Rio Paraná e do isolamento na cidade. Segundo Marly, para os colonos que trabalhavam na lavoura, a mudança foi radical e desestruturou famílias inteiras. Descendente de alemães e Guarani, Marly nos mostrou muitas fotos de família e objetos antigos – seu desejo é transformar o lugar num museu da família.
No final da tarde chegamos a Porto Mendes. Como em outros lugares, persiste o esvaziamento populacional causado pelo alagamento resultante de Itaipu e pela mecanização e uso de venenos na agricultura. Ao visitarmos o museu local, deparamo-nos com bichos empalhados e objetos antigos, dentre os quais uma carroça com grandes rodas no estilo inglês – tratava-se de uma doação da família Allica.
Partimos para Puerto Adela numa barca com cinco pessoas – em outros tempos estaria lotada. Na chegada, percebemos algumas casas fechadas. Andamos cerca de quinhentos metros pelo único caminho e nos deparamos com o Destacamento da Marinha; lá buscamos informações sobre o vilarejo. Carlos nos atendeu e logo chamou seu superior, o suboficial principal Alfonso, “Jefe del Destacamento Naval de Puerto Adela”. Nenhum dos oficiais era morador da região.
Serviram-nos um “almuerzo paraguaio” – arroz altuko e marinera de pollo – preparado pelo chef Carlos. Um garoto chegou dirigindo uma moto, perguntamos sobre a escola da região, respondeu que há tempos ela fechara por falta de alunos. Na volta a Porto Mendes, Júlio nos levou até Iguiporã. Não demorou muito até tomarmos um ônibus para Pato Bragado.
Encontramos com Walter, pioneiro de Pato Bragado, para tomar um chimarrão. Contou que largou o comércio para abrir estradas, a fim de que os primeiros colonos se instalassem. Para Walter, o que falta hoje em dia é criatividade, as pessoas se contentam com empregos. A cidade precisa andar com suas próprias pernas, sem a dependência do dinheiro repassado por Itaipu.
Esperando o ônibus para Porto Britânia – porto remanescente da ocupação inglesa –, encontramos Dete e sua filha Lia, que também iriam atravessar a fronteira. A barca estava lotada porque, no sábado, muitas pessoas vêm fazer compras no Brasil. Na chegada a Puerto Marangatu, Lia nos apresentou Luiz, que nos levou até a venda de seu pai, Demétrio. Demétrio trabalhou muito tempo carregando gente de um lado a outro da fronteira. Numa dessas travessias, seu barco afundou com quatorze pessoas, dentre as quais quatro não sobreviveram. Na juventude, trabalhou com tipografia e, com isso, aprendeu muito da escrita guarani. Almoçamos e ganhamos sementes de poroto.
Logo depois, Luiz nos deixou na casa de Dete, fomos tomar um tererê. Encontramos sete mulheres à sombra das árvores – Valdete, Lia, Néia, Adriana, Kayla, Djenifer e Kyria. Chico também estava por lá. Valdete tem uma casa de bailes chamada Mania Open Show, onde também serve refeições para funcionários do silo ao lado. Já partiu dali três vezes, mas sempre retornou. Dete contou que seu marido foi indenizado por Itaipu pela inundação de suas terras. O pouco que restou estava logo ali do outro lado da estrada. Depois de ter recebido a “bolada”, ele deu no pé e a deixou com cinco filhos para criar.
Entre outras conversas, ficou claro que Marangatu é um lugar muito violento. Nos últimos meses, sete pessoas próximas de nossos recém-conhecidos foram mortas. Alguns chegaram a contar setenta mortes. Saímos de lá no meio da tarde. Pretendíamos chegar a Nueva Esperanza ainda naquele dia, mas, por ser domingo, seria difícil conseguir carona. Marangatu vive no isolamento, atualmente não há ônibus na região.
Na lanchonete do Baiano, esperamos por duas horas. Quando nossas esperanças já acabavam, Luiz apareceu para abastecer seu carro bem em frente de onde estávamos e atendeu prontamente a nosso pedido. Por uma estrada de terra esburacada, passamos por fazendas de cinquenta mil hectares pertencentes a um único dono e por reservas indígenas arrendadas para o plantio de soja.
De Nueva Esperanza partimos para Hernandarias, conhecemos Miriam e sua família. Hernandarias é a cidade paraguaia onde Itaipu está instalada. Diferentemente do que ocorre no Brasil, a visita às instalações da usina é gratuita, o que nos incentivou a fazer o passeio pela hidrelétrica. Durante o passeio, assistimos a um vídeo institucional, na versão paraguaia, com o título “Itaipu Monumental”. Vários superlativos e recordes enfatizando a grandiosidade do projeto, o avanço tecnológico, melhoria no nível de vida, cuidado com a biodiversidade, prodígios da engenharia e geração de energia. Ao final do vídeo, entramos num ônibus que fez o percurso pela usina. Paramos na margem direita e de lá avistamos Ciudad del Este e Foz do Iguaçu lado a lado; entre elas, o que restou do Rio Paraná. Mesmo com algumas comportas do vertedouro abertas, o nível do Lago estava alto devido às intensas chuvas em São Paulo. Aliás, há quem diga que o aumento das chuvas em São Paulo é causado pela evaporação do Lago de Itaipu. Algum tempo para fotografar e partimos novamente, atravessamos o túnel que liga as duas margens e chegamos ao lado brasileiro da usina. O retorno foi por cima da barragem, quando então pudemos observar o gigantismo do Lago.
Na saída de Itaipu, fomos até as barracas de lona na beira da estrada. Soubemos que, por questões políticas, cerca de duzentas pessoas foram dispensadas da função que exerciam em Itaipu, principalmente trabalhadores de serviços de limpeza e segurança. O acampamento já completara um ano e, até aquele momento, nada havia sido negociado. Edgar foi demitido com vinte e oito anos de trabalho prestado.
À noite, Miriam nos contou sua história, imersa na promessa de progresso. Primeiro na Colônia Presidente Stroessner, onde foi morar com apenas nove anos, quando seu pai entrou no ramo de hotelaria. Depois em Hernandarias, no período anterior ao início da construção de Itaipu, momento no qual a construção de hotéis foi incentivada, uma vez que por ali haveria uma concentração de trabalhadores. Não foi bem assim. Pouco depois da finalização da primeira etapa de seu hotel, o presidente Stroessner ordenou que a base para os trabalhadores fosse transferida para a cidade que levava seu nome. Durante horas conversamos na penumbra, parte da iluminação não funcionava por conta da queda de energia, frequente na região. Além do problema de energia, poucas pessoas têm acesso à água potável e não há serviço de esgoto apropriado.
Pela manhã, a luz não havia voltado ainda. Partimos para Asunción, uma das primeiras cidades da América Latina. Em Asunción, ficamos na hospedagem de Angélica, uma casa centenária e bem cuidada. A presença de imigrantes brasileiros, chineses e coreanos é grande na cidade. Nas ruas, o guarani predomina e as “jujeras”, mulheres que vendem ervas preparadas para tererê, estão por todo lugar.
Partimos de Asunción em direção à antiga e nômade Villarrica, uma das primeiras vilas da América espanhola. No fim de janeiro, a cidade se prepara para o Carnaval; na praça, encontramos um grupo pintando tambores para o desfile, preparativos para que “las comparsas” tomem as ruas. Passamos pelo mercado popular e observamos a movimentação dos feirantes já no término de mais um dia de trabalho. Queríamos atravessar a fronteira ainda durante o dia. Fizemos mais uma caminhada pela cidade e descansamos numa praça de grandes árvores e muitos pássaros.
O percurso de Villarrica até Ciudad del Este foi um tanto sofrido. Num daqueles dias de sol nos quais é possível fritar ovos no asfalto, viajamos num ônibus lotado que, a cada minuto, parava para embarcar e desembarcar mais pessoas. Atravessamos a fronteira papeando com um taxista. Ele disse que um dos grandes problemas é a falta de conhecimento sobre a cultura indígena, o que gera conflitos. Em geral, as pessoas da cidade não consideram o fato de que, há menos de duas gerações, os índios, que hoje são pedintes nos terminais rodoviários e semáforos, eram coletores nas vastas matas paraguaias. Elas não avaliam ainda que a tradição e os costumes são difíceis de serem mudados em tão pouco tempo.
Claudia Washington e Lúcio de Araújo
Pesquisam deslocamentos territoriais e conceituais. O texto é uma versão resumida do capítulo Diário de Viagem, do livro Caderno de Viagem: Trânsito à Margem do Lago.
Como citar
ARAÚJO, Lúcio de; WASHINGTON, Claudia. À margem de Itaipú. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 7, p. 114-119, jan. 2015.