
A MEMÓRIA
DAS PLANTAS
Texto de Edilene Machado Barbosa e Marcos de Almeida Matos
Híbridas hídricas, série de aquarelas de Efe Godoy
Ela sempre me escreve mensagens longas e, nessa última vez, em 26 de setembro de 2021, contou um caso interessante. Acho que depois disso ela ficou sem acesso à internet, viajando para o alto Envira. Ela parou alguns dias na aldeia, que fica bem em frente ao município, e foi de lá que me mandou este e-mail.
Deixa eu te contar o que aconteceu na sexta-feira passada, daquela conversa que te falei. Eu madruguei de novo, e mesmo sentindo o meu corpo muito leve e a cabeça escancarada pela noitada de ayahuasca, aceitei o convite da velha para ir à beira do rio Envira para conferir se as linhadas deixadas na tarde anterior tinham fisgado alguma coisa. Ainda quis levar caderno e lápis para, quem sabe, anotar alguma ideia ou pelo menos fazer outro croqui, mas fui desencorajada de um jeito meio engraçado: “Larga isso, menina. É de tanto escrever que você esquece o mais importante. Cabeça de papel, letra morta; escreve, que assim não precisa saber mais nada!”. Varejamos então até o poço. De costas para mim e de frente para o rio, ela conferia os anzóis vazios um tanto decepcionada e, entre uma reclamação e outra, começou a explicar outra vez o assunto da conversa de uns dias atrás.
Antes aqui era bom de peixe. Agora acabou. Espantaram tudo. A gente vê o tempo todo as pessoas pegarem as coisas sem ninguém lembrar mais de onde vieram. Por isso que vai acabando, vai deixando de funcionar. O que era para guardar a pessoa perde. Pegam árvore e fazem ela virar celulose para depois fazer papel e vender no supermercado, mas ninguém lembra mais que aquilo, um dia, foi árvore. Daí, usam papel até para limpar a bunda. De árvore vira papel morto, lixo, sem valor. Ao contrário. Que nem o lápis, que também já foi planta. As pessoas esquecem o que as plantas ensinaram antes.
Os velhos, desde o tempo em que viviam no igarapé Paturi, contam que certa vez uma mulher viu como seus parentes se transformaram em plantas. Assim eles contam. As pessoas estavam muito preocupadas, porque sempre matavam caça e comiam. Anta, veado, macaco preto, porquinho. Olho, coxa, braço, bunda. Daí vinha doença-dor, dor de olho e dordói, dor de dente e dor no ventre, vento errado e caído, dor na barriga, enxaqueca. Por isso os antigos quiseram virar as plantas que curam. Todos foram se transformando, cada um com um nome, cada um de um tipo. Apenas aquela mulher não quis virar. Com muita idade e ideia, ela ficou para ver quem seria quem.
Um homem virou planta de banho, shinã, planta com cheiro de pensamento bom. Porque o cheiro, às vezes, é a ideia da planta que a gente tem que entender. Outro virou arbusto-planta de emplastro, de amassar e colocar na ferida. Outros viraram plantas de tomar feito chá. Outros, ainda, viraram planta de defumação, feku niti. E a velha olhava e pensava: ‘Minha família não é mais gente humana. Minha família agora é floresta’. Ela andava pela mata observando, ia se lembrando e dizendo: ‘Esse mato não é remédio forte. Esse outro mato é, é nuin, que serve para coceira’. E assim foi. Depois de um tempo, ela quis comer carne, mas estava sozinha. Ela então começou a pegar o sangue das caças que guardou nos ocos de taboca. Cada pedaço desse sangue, porém, começou a se transformar em pessoa. Sangue de anta virou gente. Sangue de veado virou gente. A mulher então pensou: ‘Minha família virou erva-floresta, mas o sangue virou gente’.
Essa gente foi crescendo, foi sendo parente também, e a velha mulher, que se lembrava de cada parente antigo que virou floresta, ia cuidando, curando as doenças de uns, envenenando outros. Porque ela também se lembrava muito bem dos parentes que se transformaram em poderosos venenos da mata. Se ficava com inveja ou com ciúme, ela envenenava e matava. Se não a respeitassem, ela envenenava. A única pessoa que a velha ensinava era uma neta que ela criava, menina filha de uma pessoa gerada do sangue. Ela ensinava remédio e ensinava veneno. E depois experimentava com ela, para ver se ela tinha aprendido tudo. Um dia, um genro seguiu a velha que tinha ido buscar barro para fazer pote, e por lá a atacou e a estuprou. Saiu correndo antes que ela percebesse que era ele, e depois espalhou que tinha sido gente morta que tinha feito mal. A velha era esperta e se lembrava dos venenos, e por isso colocou veneno na comida dele. No dia seguinte ele morreu, e todo mundo na aldeia ficou triste. A neta sabia o que a velha sabia, e por isso contou para as pessoas: ‘Meu pai morreu porque a vovó o envenenou. Ela é quem sabe botar veneno’.
A neta sabia o segredo da avó e sabia onde ela guardava o coração de quem morria de veneno, num cesto velho. Quando a menina contou o segredo da mulher, as pessoas ficaram com medo: ‘É melhor matar, antes que coloque veneno na gente’, disseram. E assim, depois da velha escapar muitas vezes, conseguiram matá-la. E a neta já tinha aprendido a chamar pelo nome cada parente antigo que se transformou em mato de remédio ou de veneno.
Esses parentes transformados, que têm nome de remédio ou de veneno, estão por toda parte. Quem conhecia encontrava com eles na cabeceira do Paturi, e também onde é agora a Terra Indígena Katukina-Kaxinawa. Quem conhece vê deles até em Rio Branco, ali onde ainda restou floresta. Hoje pouca gente sabe, porque é como a história da velha: para saber é preciso se lembrar de cada nome do antigo parente-remédio, de cada nome antigo do parente-veneno. Tem que lembrar o conhecimento que a velha passou para a neta, e que a neta passou para a neta dela.
Cada geração tem que dar um jeito de guardar na memória a relação que aquela velha tinha com seus parentes que resolveram virar floresta com medo das doenças, pois as gerações vieram do sangue, e quando as pessoas comem carne vêm de novo essas doenças. Quando a gente fica cheirando nosso corpo também: o cheiro do cocô que fica na roupa mal lavada da criança; o cheiro do sangue da mulher que menstruou; o cheiro da urina de quem mija sempre no mesmo canto; o peido dos pais que o bebê cheira quando dorme junto na rede. Isso tudo vem trazendo doenças de fraqueza também.
São os parentes que viraram planta que curam a gente e são eles também que ajudam a gente a lembrar. Porque para lembrar tem erva. Até para esquecer tem erva. Tem planta para ajudar na hora da caçada, para trazer a sorte e a certeza do momento certo. Tem planta para parto, para a criança sair fácil e forte, mas também tem para quem não quer mais ter filho. Tem para picada de cobra, picada de aranha. Para ferrada de arraia. Às vezes pega estrepada no pé e inflama: a planta desincha. Às vezes sonha mal, sente raiva, fica confuso demais: tem planta para isso também. Fica nervoso com os parentes, arengueiro, querendo bater na esposa. Também tem mato.
Tem mato e tem jeito certo de pedir. Porque, sendo parente antigo, ele não entrega sua força para qualquer pessoa e nem de qualquer jeito. Quem sofre de ver seu parente doente, quem tem medo de doença própria e dos outros, tem de um jeito ou de outro que recuperar a herança que a velha deixou: tem que lembrar de cada parente-veneno, de cada parente-remédio, e tem que lembrar como é que a gente pede, como é que a gente chama, como é que a gente fala na hora de tirar folha, de tirar casca de pau, de tirar raiz para raspar e pingar o sumo no olho.
Planta é viva porque é gente. Na hora que alguém vai tirar, tem que chegar perto com cuidado e falar para ela: ‘Eu vou mexer em você, minha filha está doente. Dá para ela sua força, dá para ela seu pensamento. Traz o espírito dela de volta pelo caminho’. Você tira a folha escondido, porque senão ela não se entrega, ela quer respeito, e só entrega para quem respeita. Quando a menina vai aprender a desenhar, tem planta certa para ensinar, para pingar no olho. Para pegar tem que pedir: ‘Estou mexendo em você para você dar o olho de desenho para ela. Dá para ela seu pensamento’. Essas plantas ficam no canto cerrado, no canto fechado da mata, onde gente não anda. Quando você chega, às vezes as plantas estão num canto sujo da mata, tem palha por cima, tem mato que já morreu. Você vai limpando, ajeitando com cuidado e falando do jeito certo, porque você está pedindo o segredo das plantas.
Às vezes, quem vai ensinar engana para ver se a pessoa pode mesmo aprender. Ela mostra outra planta, muito parecida com aquela, mas fraca, que não cura. Às vezes a pessoa pode até mostrar veneno falando que é remédio. Aí, você pega acreditando e se envenena pela própria mão. Por isso que é difícil de aprender: tem que fazer a velha querer ensinar, tem que dar um jeito de ela dividir aquele segredo, porque se ela não quiser vai dizer que não sabe e ninguém consegue tirar. A planta é do mesmo jeito: como você vai fazer para a planta lhe entregar o segredo dela se você não sabe como falar com ela, se ela não te gosta, não confia quando você se aproxima? Se, na hora de tirar, você rasga a folha, puxa de qualquer jeito, machuca ela? Planta não é máquina, não. E até motor, quando não quer funcionar, não liga!
Tem herança, tem lembrança dos antigos parentes que viraram floresta, tem a relação da primeira mulher com as pessoas-plantas, os jeitos de falar com cada planta, sabendo seu nome e respeitando seu pensamento. É por isso que nas aldeias do Envira as mulheres são as que mais sabem tirar remédio. Como era também a dona Nega, que vivia na cabeceira do Gregório, que conhecia e se lembrava dos matos que tirava junto com o velho Antônio Luiz. As mulheres são as parteiras-professoras que a gente chama de ‘pajés das ervas’.
Se é só mulher? Não. Homem tem o jeito dele de aprender. Lembra quando o Francisco Gomes contou? Que os antigos tiravam uma batata que era meio parecida com essa que dá na areia da praia. Ela é branca, amarga. Os antigos tiravam aquela batatinha e mastigavam, pedindo a sabedoria dela. Aí, o que a batata fazia: pedia a dieta. Ela só mostrava o segredo se a pessoa fizesse dieta. A pessoa tinha que ficar muito tempo se alimentando só com a bandinha da banana verde assada, só bebendo caiçuma de milho massa. Isso é comida de pajé, insosso mesmo, sem gordura nem sal nem doce. Nesse ritmo de aprender com a planta, eles ficavam no tapiri do roçado, longe de criança e de mulher e das famílias. E ela chegava no espírito, no pensamento do sonho, ensinando a rezar e a tirar planta-remédio. Dali ele podia sair para tirar mato para curar que as ervas iam se mostrar para ele, e ele ia saber o nome delas, ia saber como tinha que falar com cada uma. Podia preparar defumação para uma criança, e, quando a fumaça ia subindo, ele ia dizendo para o feitiço ou para a vingança que pegou o espírito da criança: ‘Esse não é o seu lugar, e lá não é o lugar dela. Pode sair, pode devolver. Ela vai parar de chorar, ela vai ter saúde’.
Repara, menina, que tem o jeito de aprender. É por isso que txaita diz que tem a pedagogia da planta. A planta ensina e também dela vem o remédio para aprender mais rápido. Tem a pedagogia do roçado. Toma sananga para tirar a preguiça; tira a preguiça dos meninos, para acordar cedo para ir limpar o roçado, deixar ele bem zelado para as plantas crescerem viçosas. Elas crescem e agradecem o zelo. Digo que agradecem porque dão fartura, a espiga do milho fica completa, sem banguela, com os bagos grandes; a macaxeira engorda debaixo da terra e fica boa de cozinhar; a batata doce solta rama, espalhando e crescendo também. Você leva seu filho, sua filha, eles vão vendo. Pegando a friagenzinha cedo, vendo o sol esquentar devagar a terra ainda meio preta dos restos da coivara. Comendo mamão antes que os passarinhos furem. Isso que diz que é pedagogia: fazer a gente crescer. A roça aprende como que faz para a gente limpar tudo para ela crescer bem, e a gente aprende como que faz para a roça dar só macaxeira grande e boa de fazer mingau, comer cozida, fazer caiçuma para animar as festas. Depois de um tempo, a gente deixa ali o mato crescer de novo, abre outro roçado. A capoeira diz para o chão como que ele fica bom para receber as plantas de novo. E o chão lembra o que é ser dono das raízes maiores outra vez.
Com as ervas da floresta é do mesmo jeito. A gente aprende como chegar perto delas, como faz para vê-las, tirando os basculhos de cima com respeito, pedindo ajuda. A gente aprende isso e se lembra de que as plantas são pessoas, são os antigos que viraram. Já na rua, não. A pedagogia é diferente. Na rua a pessoa sente dor e compra remédio sem saber, mal e mal sabe ler o papel com a receita que pegou no posto. Ela não se lembra mais de onde veio aquele remédio. Ela não lembra mais qual parente-planta deu origem àquele remédio para ela tomar. Ela não lembra mais quem foi que guardou esse segredo. Quer dizer, ela lembra o nome da farmácia, o nome do laboratório que diz que é o dono. Ele diz que é dono, mas quem é o dono?
Foi Dunu que ensinou também. É outra história, deixa eu te contar, mas quem conta essa história direito mesmo é aquele que você chama de Pai João. Diz que um homem foi flechar curimatã. Por lá ele pegou no sono, cochilou encostado num pau. Sem que ele visse, uma cobra veio chegando. Ela começou a engolir o homem, ia engolindo e chamando outra cobra, que veio e começou engolir outra perna. Veio mais outra e começou a engolir o braço, e outra no outro braço. Enquanto isso, o homem não conseguia mais sair. O irmão dele deu falta e foi atrás. Quando achou o homem, ele estava lá, com as cobras por cima. O irmão chamou o pessoal e eles abriram as cobras e tiraram o homem dali, mas ele estava fraco, todo quebrado. Levaram ele para a maloca e ele ficou lá, deitado, mas no sonho as cobras ensinaram.
Dunu ensinou qual cipó era bom, uni de verdade. Ensinou qual folha dava miração boa, kene kawa. E ele, mesmo sem poder se mexer, ia dando as ordens e os parentes foram tirar. No mesmo sonho, aprendeu as medicinas que se usam para dar banho. Depois de tomar ayahuasca, lava a cabeça com barro branco de fundo do rio e toma banho com essas plantas de cheiro que tiram a fraqueza, que dão experiência boa. Aprendeu também as músicas que ele podia cantar para chamar a força, para equilibrar, para curar. Dunu sabia disso tudo, e passou para o homem, que passou para os seus parentes. E hoje nós sabemos. Chega. Bora quebrar o jejum e deixar de dar de comer pium na beira do rio?
Então a velha juntou as coisas no balde e fomos subindo o barranco. Enquanto voltávamos para a aldeia, eu ia repetindo mentalmente que não podia esquecer dessa conversa, tinha que chegar logo no meu quarto para anotar. E ela contou aquilo para mim, não para qualquer um que pudesse ler meu texto. Será que eu deveria pedir a ela para usar aquelas histórias no meu texto? “Ah! pode, faz o que quiser do que você lembrar. Coloca no papel, tem problema não. Papel também era planta, você está devolvendo. Isso que contei aí é história. Isso não é meu, então também não vai ser seu. Agora, das plantas mesmo, do segredo delas, eu não sei mostrar não. Quem sabe? Sei só isso aí que falei”.
Edilene Machado Barbosa Shanenawa
Bióloga e ativista indígena, é pesquisadora e mestre em Linguagem e Identidade pela UFAC.
Marcos de Almeida Matos
Professor da UFAC, é filósofo pela UFMG e doutor em Antropologia Social pela UFSC.
Efe Godoy
Artista visual transgênere nascida em Sete Lagoas (MG). Formada pela Escola Guignard (UEMG), participou de residências do Bolsa Pampulha, do EAC-Montevideo_UY e do Instituto Hemispheric NY University.
Como citar
BARBOSA, Edilene Machado; MATOS, Marcos de Almeida. A memória das plantas. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 142-147, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.