AMAZÔNIA
ANTROPIZADA
Texto de Eduardo Viveiros de Castro
Por volta do século XVI, a região amazônica do Alto Xingu abrigava aldeias com até 500 mil metros quadrados, habitadas por até 5 mil pessoas. Tais núcleos se organizavam de forma circular em torno de grandes praças, interligadas por estradas que chegavam a 5 quilômetros de extensão e 50 metros de largura. Esses complexos incluíam outras estruturas artificiais, como represas, pontes, fossos, aterros e lagos. Algumas aldeias eram fortificadas, com paliçadas e valas de até 5 metros de profundidade e 2,5 quilômetros de extensão, cuja função, supõe-se, era a defesa contra os ataques de outros povos indígenas.
O ápice dessa estrutura regional no Alto Xingu, que era multiétnica e multilinguística, se deu por volta da época do “descobrimento” do Brasil. O início da decadência, marcada por acentuada queda demográfica, ocorreu entre 1600 e 1700, em função dos primeiros contatos – ainda que indiretos – com doenças trazidas pelos colonizadores.
Outras grandes formações socioculturais amazônicas, porém, desapareceram antes da invasão europeia. Na Amazônia Central, na região da confluência entre os rios Negro e Solimões, os estudos arqueológicos recentes vêm mapeando antigos sítios de ocupação de dimensões ainda maiores que as do Alto Xingu. O sítio Açutuba, próximo à cidade de Manaus, se estende por uma faixa de 3 mil metros de extensão por quase 300 de largura (900 mil metros quadrados), o equivalente a 90 quarteirões de uma cidade. Esses grandes sítios costumam estar implantados em áreas de “terra preta”, solo fértil resultante da acumulação de detritos criados pela atividade humana. A espessura das camadas de terra preta (às vezes de quase 2 metros), bem como a quantidade e natureza dos vestígios arqueológicos ali encontrados, sugerem ocupações muito prolongadas (de até 300 anos seguidos) por parte de sociedades populosas e sociopoliticamente diferenciadas.
Tais formações perduraram às vezes por séculos, sendo sucedidas por outras, de povos invasores ou migrantes, portadores de diferentes tradições culturais. A cultura açutuba ocupou a região próxima a Manaus por quase 10 séculos, até 1600 anos atrás. A ela se seguiu a cultura manacapuru, que perdurou por cerca de milênio na mesma região. Enquanto isso, uma cultura proveniente da Amazônia Oriental subia a calha do Solimões, varrendo ou absorvendo o que estivesse no caminho: a tradição chamada Guarita, fabricante de uma cerâmica semelhante à famosa cerâmica marajoara, que conheceu seu apogeu na Amazônia Central por volta de mil anos atrás. Esse é, em linhas gerais, o cenário mostrado nos estudos que vêm sendo realizados no Alto Xingu e na Amazônia Central por arqueólogos como Eduardo Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, e Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida-Gainesville. O trabalho desses e de outros pesquisadores confirmam e precisam as hipóteses que alguns especialistas haviam formulado já há algum tempo sobre a ecologia histórica e a fisionomia sociopolítica da Amazônia pré-colombiana.
Sem mata virgem
A partir dessas evidências, torna-se cada vez mais difícil defender a ideia, ainda corrente na opinião pública, de uma Amazônia intocada, coberta de matas virgens, habitada apenas por pequenas tribos esparsas por volta de 1500.
A pesquisa sobre o Alto Xingu, conduzida por Heckenberger em colaboração com antropólogos da UFRJ e com membros do povo Kuikuru, traz outros dados surpreendentes, como o fato de que, nas antigas áreas de assentamento ocupadas por esse povo, a floresta que ali cresceu ainda não atingiu seu clímax, mesmo depois de mais de 4 séculos desde o abandono dessas terras. Em estudo publicado em 2005, esses pesquisadores sustentam que, além da pesca – abundante na região, onde estão as cabeceiras do Rio Xingu –, o cultivo da mandioca era feito em larga escala, de modo a sustentar milhares de pessoas, o que teria imposto uma “dramática alteração humana da cobertura vegetal”.
A situação do Xingu talvez não tenha sido excepcional, como mostram os estudos na região de Manaus. A Amazônia é uma região ocupada milenarmente por povos indígenas e, secularmente, por segmentos da população nacional de origem europeia e africana, que se acostumaram aos ritmos e exigências da floresta. Antes da enorme catástrofe (a invasão europeia) que dizimou seus ocupantes originários, essa era uma região densamente povoada por sociedades que modificaram o ambiente tropical sem destruir suas grandes regulações ecológicas. A “mata virgem” tem muito de fantasia: como hoje se começa a descobrir, boa parte da cobertura vegetal amazônica é o resultado de milênios de intervenção humana: a maioria das plantas úteis da região proliferou diferencialmente em função das técnicas indígenas de aproveitamento do território e porções importantes do solo amazônico (no mínimo 12% da superfície total) são antropogênicas, o que indica uma ocupação intensa e antiga. Em síntese, a floresta que os europeus encontraram quando invadiram o continente era o resultado da presença de seres humanos, não de sua ausência. Naturalmente, não é qualquer forma de presença humana que é capaz de produzir uma floresta como aquela. É importante observar que as populações indígenas estavam articuladas ao ambiente amazônico de maneira muito diferente do complexo agroindustrial do capitalismo tardio. Em outras palavras, para a floresta amazônica, muito Kuikuru não é a mesma coisa que muito gaúcho.
Presentes
Os 100 ou mais séculos de presença indígena na Amazônia nos deram presentes como a castanheira, a pupunha, o cacau, o babaçu, a mandioca, a borracha, dezenas de espécies de madeira de lei, águas limpas e abundantes, uma fauna rica e uma variedade de outros componentes da economia tropical. Não vai ser incendiando milhões de hectares de floresta para plantar soja ou fazer pasto, roubando milhares de toneladas cúbicas de madeira nas barbas dos agentes fiscalizadores ou poluindo rios inteiros com o mercúrio dos garimpos que se vai “desenvolver” a Amazônia.
Nesse momento em que as megaplantações de soja se aproximam de Santarém (PA) ou transformam o Parque Indígena do Xingu em uma ilha verde cercada por um oceano de palha encharcada de agrotóxicos, parece que está na hora de dar uma paradinha para pensar. De fato, as pesquisas têm mostrado que a “floresta virgem” da Amazônia nada tem de virgem, pois, há milênios, os índios vêm sabendo estabelecer com ela uma relação mutuamente fecunda. E, afinal, para dizê-lo de maneira crua, o fato de uma pessoa não ser mais virgem não autoriza ninguém a estuprá-la, não é mesmo?
Eduardo Viveiros de Castro
Antropólogo e professor do Museu Nacional/UFRJ. Autor, dentre outros, de A inconstância da alma selvagem, publicado pela Cosac Naify.
Como citar
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Amazônia antropizada. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 6, p. 22-23, abr. 2013.
Este ensaio foi publicado originalmente no Almanaque Brasil Socioambiental 2008.