ANTI-
DOMESTICAÇÃO
Texto de Manuela Carneiro da Cunha
El Chaco, série de desenhos de Efacio Álvarez e Richart Peralta, integrantes do coletivo Artes Vivas
Ao abrirem mão de fazer de seus interesses o “princípio organizador primordial”, os povos amazônicos dispensam a subjugação da terra e convivem como iguais com seres humanos e não humanos que também constroem a paisagem da floresta – escapando assim da própria domesticação.
Muitos povos indígenas das terras baixas da América do Sul costumam considerar que a floresta é cultivada. Não necessariamente cultivada pelos humanos atuais, mas, sim, por outras “pessoas”, animais, espíritos e guardiões, ou até mesmo plantada e cuidada por outras plantas. Em certo sentido, é como se a agricultura fosse a norma, sendo a vida selvagem residual. Assim, a noção Wajãpi de espaço humano fica restrita às roças e aos pousios desse povo, enquanto a floresta é feita por outros seres que cultivam o próprio alimento. No universo indígena Jamamadi não existem plantas silvestres, pois tudo é cultivado, ainda que por algum “outro” cultivador. Os Jarawara têm uma visão semelhante, embora admitam algum grau de natureza selvagem remanescente. Vários povos indígenas amazônicos creditam às cutias o cultivo da castanha-do-Pará. Muitas vezes, a floresta é reconfigurada como um jardim plantado pelo próprio Criador.
Isso pode estar correlacionado com a ausência intrigante, notada com frequência entre os povos indígenas e os seringueiros amazônicos, de um termo geral para designar o reino Plantae. Uma planta, para humanos, é literalmente aquilo que humanos plantaram. Mas os animais e outros seres também plantam e, por isso, têm as próprias plantas – isto é, as plantas que cultivam. O conhecimento das preferências alimentares dos animais é verdadeiramente enciclopédico. A planta de um animal corresponde, grosso modo, a seu alimento, embora esse alimento possa ser comestível para vários outros animais e para os humanos. Assim como muitos animais desfrutam do que é produzido em jardins humanos, os humanos também podem comer o que foi produzido por animais: alimentos selvagens. Em certo sentido, portanto, todo ser senciente pode ser um jardineiro ou um agricultor.
A agricultura amazônica é um tema de pesquisa entusiasmante e, embora ainda existam alguns debates em torno de questões regionais, há hoje um reconhecimento geral de que a Amazônia é um importante centro de domesticação de plantas. Recentemente, até mesmo o arroz do Guaporé foi acrescentado à enorme lista de plantas domesticadas na Amazônia. Pesquisas arqueológicas encontraram evidências de vários grandes sítios em que se constatou a prática de formas de agricultura intensiva de longo prazo no meio da floresta. Essas pesquisas enfatizam a admirável contribuição indígena para a agrobiodiversidade, tendo registrado um número impressionante de variedades de batata-doce, cabaça, feijão, amendoim e, claro, de mandioca.
Como Claude Lévi-Strauss apontou bem cedo no Handbook of South American Indians, de 1950, os indígenas conheciam e confiavam nas plantas cultivadas tanto quanto nas selvagens. No mito comumente chamado de “A origem das plantas cultivadas” entre os Ramkokamekra-Canela, dos Timbira Orientais, a Estrela-Mulher não apenas oferece aos índios as sementes das plantas, instruindo-os sobre seu cultivo, como também apresenta a eles os alimentos silvestres comestíveis. Antes da Estrela-Mulher, as pessoas comiam “madeira podre”. É como se, entre os dois modos de obtenção de alimentos, tão nitidamente distintos para nós, nunca houvesse existido uma separação.
Povos coletores atuais, como os Nukak Maku, cultivam mandioca para ocasiões especiais, sem deixar que esse cultivo prejudique sua mobilidade. Um número significativo de ex-agricultores, como os Parakanã do Oeste, os Guajá, os Sirionó e os Aché, voltou à prática da coleta. Por outro lado, algumas sociedades de língua Jê, como os Ramkokamekra-Canela e os Krahô – considerados “marginais” no Handbook of South American Indians, de 1950, por sua parca afinidade com a prática da agricultura –, atualmente se transformaram em jardineiros dedicados. Os períodos de deslocamentos, caminhadas e expedições sazonais são apreciados até mesmo entre sociedades que praticam a agricultura de forma mais consistente.
Existem inúmeras evidências ao redor do mundo de plantas que são cultivadas como “pessoas”, que requerem formas de atenção e de bajulação especiais. As mulheres Achuar dedicam às suas plantas atenções maternas extraordinárias, enquanto as mulheres do Rio Negro se esforçam para deixar suas pequenas mandiocas felizes nas roças, proporcionando a elas espécies companheiras que toquem músicas e penteiem seus cabelos.
O povo Krahô parece levar a independência e as demandas desses cultivares ainda mais a sério. Suas plantas têm vontade própria e exigem atenção especial. Quando descontentes, os tubérculos de batata-doce migram por conta própria e se estabelecem em hortas de agricultores mais cuidadosos. No entanto, esse tipo de relacionamento com as plantas cultivadas dificilmente é visto em termos de uma dependência implícita na domesticação. O que para nós aparenta ser domesticação não é visto dessa maneira por eles. Não há nenhuma forma de subjugação (ideológica, pelo menos) implícita.
Quanto à domesticação de animais, os povos indígenas amazônicos são famosos por seu amor por animais selvagens como bichos de estimação, bem como por evitar sua domesticação. Domar é uma coisa, domesticar é outra, bem diferente. Além disso, nas culturas amazônicas, bichos de estimação, assim como qualquer criatura que tenha sido alimentada, de forma geral não devem ser comidos.
Mesmo que a Amazônia seja atualmente reconhecida como um grande centro de “domesticação” de plantas, é como se as populações amazônicas mantivessem uma possibilidade virtual, se não real, de escapar de serem completamente domesticadas, pois a agricultura e a pecuária vão nos dois sentidos: elas fixam e amarram o domesticado tanto quanto o domesticador. É verdade que sociedades forrageadoras costumam ser desprezadas pelas sociedades mais sedentárias das terras baixas. Os agricultores Ka’apor e Guajajara no estado do Maranhão desprezavam os Guajá antes deles se estabelecerem em aldeias; da mesma forma, os Hupda (Maku) são desprezados pelos Tukano, mais sedentários. E, no entanto, os próprios Tukano desfrutam de mobilidade sazonal para pescar ou forragear. As sociedades de língua Jê do Brasil Central, apesar de toda a sua atividade agrícola atual, não abriram mão das expedições sazonais.
Será que haveria algo como um cardápio (por assim dizer) disponível para os habitantes neotropicais das terras baixas, em que se estabeleceria um gradiente que vai da sedentarização total a opções de mobilidade? Em defesa dessa concepção, podemos ressaltar que muitas sociedades nômades parecem dividir seu espaço regional com sociedades mais sedentárias. É como se sua contiguidade espacial formasse, em conjunto, uma unidade relevante, de maneira mais ou menos análoga à articulação da coexistência entre os Jivaro e seus vizinhos.
O termo “domesticação”, bem como a expressão “processo de domesticação”, é usado livremente com base em definições mais ou menos rigorosas. No entanto, muitos cientistas naturais argumentarão que a domesticação é aquele estado de coisas que exige que a vida e a reprodução de uma espécie sejam estritamente dependentes do cuidado humano. O que temos, portanto, é uma noção de sujeição absoluta do domesticado ao domesticador. A volição, as demandas e até mesmo a iniciativa das plantas na ideologia da agricultura das terras baixas amazônicas dificilmente se ajustariam a tal definição. O que quero dizer é que os povos indígenas, apesar de todas as suas façanhas naquilo que chamamos de domesticação de plantas, podem não se enxergar como domesticadores.
A mandioca, também conhecida como aipim e por tantos outros nomes, tem inúmeras virtudes: ela cresce em solos pobres, como os latossolos amazônicos; pode ser bastante precoce (sua maturação ocorre em seis meses) e muito longeva (dura até dois anos, a depender da variedade); e não requer arranjos de armazenamento, pois permanece acondicionada no próprio campo. Hoje a mandioca, que é nativa da Amazônia, tornou-se alimento de subsistência para cerca de 800 milhões de pessoas, principalmente na África.
A mandioca é cultivada em países tropicais ao redor do mundo por meio de um sistema conhecido como coivara. Trata-se de um sistema agrícola em que os campos são abertos por meio de queimadas e são cultivados de forma descontínua, com períodos de pousio que são sempre mais longos do que os períodos de cultivo. O pousio – ou seja, a regeneração – é parte integrante do sistema. No entanto, as definições comuns de coivara costumam se ater exclusivamente ao uso do fogo, obliterando a importância dada ao pousio.
Este seria um modelo bem genérico e rústico do sistema agrícola indígena na Amazônia: a cada ano, pelo menos um novo roçado é aberto para o plantio de mandioca, milho, abóbora, abacaxi, batata-doce, banana e de muitas outras plantas. A vegetação primária ou secundária é cortada e queimada e as toras grandes são deixadas no local. No ano seguinte, o roçado ainda estará produtivo, com variedades que podem amadurecer mais lentamente; no entanto, as ervas daninhas e a vegetação secundária já estarão presentes, tornando a capina uma tarefa árdua. No terceiro ano, com a diminuição da fertilidade do solo, a capina e o cultivo são interrompidos, mas não as visitas ao roçado e os direitos sobre ele.
Em muitas sociedades neotropicais, há um manejo elaborado de roçados e pousios que tem início antes mesmo do plantio de qualquer espécie. Esse manejo começa com a abertura de uma nova roça, e perdura por muito tempo após a última colheita. Árvores frutíferas e outras árvores úteis, toleradas ou protegidas no processo de derrubada, crescerão no terreno, competindo por luz com a vegetação secundária de crescimento mais rápido. As árvores úteis compreendem não apenas as que dão frutos comestíveis para os humanos, mas também as frutíferas apreciadas pelos bichos (e que atraem a caça quando seus frutos estão maduros), aquelas que atraem pássaros que dispersam sementes, e várias outras espécies de plantas usadas em construções, com fins medicinais e para tantas outras finalidades.
O geógrafo William Denevan sugere que o cultivo da mandioca se difundiu quando os machados de aço se tornaram acessíveis no período colonial. A derrubada de árvores era muito mais cansativa quando os machados eram de pedra, mas devemos lembrar que havia outras técnicas indígenas pré-coloniais para derrubar árvores, como a retirada de um anel de casca em árvores adultas, que causa sua morte. A queda das árvores mortas acabava por derrubar algumas outras, abrindo uma clareira na floresta.
De qualquer forma, o manejo exigia a abertura de pelo menos uma nova roça por ano e levava os grupos (assim como leva, ainda hoje) a se mudar de um lugar para outro de tempos em tempos, pois as roças passavam a ficar muito distantes das aldeias. Outros fatores, que incluem o esgotamento da caça, as disputas políticas, as escolas e as instalações de saúde e de administração pública permanentes, que funcionam como atrativos, precisam ser levados em consideração quando analisamos esses deslocamentos. Mas quaisquer que sejam as outras razões, as hortas por si só funcionam como indutoras do movimento territorial.
Os colonos do interior adotaram rapidamente o cultivo da mandioca (enquanto os colonos urbanos tentaram se ater um pouco mais a uma dieta seletiva, composta por trigo, vinho e azeite). Os jesuítas chegaram a enviar cartas a Roma perguntando se a comunhão com mandioca seria aceitável. Fato é que os colonos que tinham escravos abraçaram o cultivo itinerante em uma escala muito maior. Até hoje, essa mudança de escala é uma das principais causas do enorme desmatamento na região, embora na época, ao contrário do que acontece hoje, esse desmatamento não causasse preocupação. O que preocupava as autoridades eram os colonos que se deslocavam demais, que não assentavam de fato e que não produziam o que se esperava deles – ou seja, assentamentos: campos cultivados permanentemente, que levariam a casas e aldeias permanentes.
Na Amazônia, muitos colonos foram impedidos de plantar mandioca. As ordens eram que se dedicassem aos cereais, que eram muito mais desejáveis do ponto de vista do governo colonial, pois fixariam as pessoas em suas terras. A questão do assentamento– a fixação dos colonos em determinadas porções tituladas de terra e, mais ainda, a urbanização desses colonos – parece ter sido uma preocupação permanente do Estado colonial no século XVIII. Nesse período, no entanto, a mandioca já era popular em quase todos os cantos do território que hoje constitui o Brasil.
A agricultura de coivara ainda carrega uma má fama, em mais de um sentido. É verdade que sua designação anterior mais comum, “agricultura de corte e queima”, vem sendo lentamente abandonada e substituída por “agricultura itinerante”, uma designação mais politicamente correta. Até hoje, porém, há discussões sobre os impactos – positivos e negativos – da coivara. No Sudeste Asiático há uma disputa viva e continuada sobre a proibição geral da prática. Muitos povos tradicionais estão sendo pressionados a abandoná-la em favor das plantações de palma de óleo. Políticas estatais de vários tipos, incluindo a separação entre florestas e terras cultiváveis, têm contribuído para o declínio das roças de coivara na região.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) tem uma forte responsabilidade nessa frente. No mesmo ano em que publicou o notável trabalho do antropólogo Harold Conklin, de 1957, sobre a agricultura de coivara Hanunó’o, a FAO publicou uma acusação contundente sobre a mesma prática. Nela, a agricultura itinerante foi definida como “o maior obstáculo não apenas para o aumento imediato da produção agrícola, mas também para a conservação do potencial produtivo para o futuro, na forma de solos e florestas. Não apenas um tipo atrasado de prática agrícola … [mas] também um estágio atrasado da cultura de forma geral”.
Quase 60 anos depois, em 2015, no que parece ser uma mudança de opinião, a FAO, o Grupo de Trabalho Internacional para Assuntos Indígenas (IWGIA) e o Pacto dos Povos Indígenas da Ásia (AIPP) publicaram, em conjunto, um livro que defende a agricultura itinerante no Sudeste Asiático. O preconceito contra a coivara, porém, perdura. A partir de 1994, um programa de longo prazo, que durou pelo menos até 2004 e foi liderado por uma organização internacional de pesquisa agroflorestal, foi sugestivamente chamado de “Alternativas para o corte e queima”. O programa foi ricamente financiado graças à promessa de oferecer doses maciças de ciência dura e tecnologia agroflorestal. Uma de suas recomendações centrais era enriquecer os pousios, algo que um grande número de povos indígenas já faz.
A agricultura itinerante é amplamente praticada em países tropicais ao redor do mundo, com diversas variações. Em solos tropicais pobres, as cinzas da vegetação que foi cortada e queimada são usadas como nutriente. Embora as técnicas de plantio da agricultura itinerante tenham sido amplamente descritas, muito menos atenção foi dada às técnicas relacionadas ao pousio. É comum que se pense que os pousios são simplesmente abandonados devido ao excesso de ervas daninhas invasoras, mas eles acabarão resultando em uma floresta biodiversa e com alta biomassa. A coivara não é apenas um sistema de cultivo na floresta; ela é também, de maneira muito importante, uma tecnologia de regeneração florestal.
Em sua pesquisa sobre as “florestas culturais da Amazônia”, o antropólogo William Balée divulgou resultados muito interessantes sobre a importância da biodiversidade que pode ser encontrada em pousios maduros. Para mais além, arqueólogos e botânicos afirmam que uma parte significativa da Amazônia é antropogênica, com base na presença de espécies vegetais que indicam áreas de floresta secundária e na grande disseminação da terra antropogênica conhecida como “terra preta de índio”.
Terras pretas de índio são solos altamente férteis, produzidos por restos antrópicos – incluindo restos de alimentos e carvão pirogênico – com idade entre 4 mil e 10 mil anos. Elas são frequentemente consideradas um modelo para o desenvolvimento da fertilidade do solo nos trópicos. As terras pretas de índio podem estar presentes em áreas bastante extensas, e essa presença dá sustento à argumentação de arqueólogos de que existiram na Amazônia populações que praticavam uma agricultura de alta densidade. O que podemos concluir, nesse sentido, é que as pessoas veem (a derrubada de) árvores, mas ao que tudo indica não veem (a regeneração de) florestas.
Entre os povos indígenas amazônicos, os direitos dos humanos sobre a floresta certamente não se baseiam numa ideia de domínio. Tudo tem seu próprio “mestre/dono” ou sua própria “mãe”. Os Wajãpi, por exemplo, consideram que o domínio humano se restringe às clareiras e roças que cultivam, que por definição são transitórias. Todo o resto tem seus próprios mestres. Porcos selvagens e antas são obtidos como presas apenas por meio de transações xamânicas com os mestres/donos específicos de cada um desses seres. Além disso, em toda a Amazônia (e habitantes recém-chegados, como os seringueiros, aprenderam a se comportar da mesma maneira) carcaças e restos de caça devem ser tratados com “respeito” e não devem ser descartados com descuido.
Entre os moradores da floresta, há inúmeras regras e proibições que restringem o uso dos recursos. Não há nada parecido com a necessidade de “subjugar e cultivar a terra” que desponta nos tratados de John Locke, que, aliás, nunca reconheceu qualquer agricultura entre os povos “americanos”. Na Amazônia indígena é certo que as pessoas têm vários direitos sobre suas plantações, seus campos e seus pousios, mas eles não se desdobram em direitos de propriedade sobre a terra.
O antropólogo Philippe Descola argumenta que os amazônicos nunca domesticaram porcos selvagens porque os porcos selvagens, como todos os outros animais e reinos da natureza, têm seus próprios donos. Entendo que podemos estender esse argumento: parece que os humanos amazônicos abriram mão de dar primazia aos próprios interesses, bem como de fazer desses interesses o “princípio organizador primordial” da floresta. Nesse sentido, seu objetivo nunca foi colonizar a floresta.
Se a domesticação é, antes de tudo, um modo de habitar o mundo ocupando-o, numa perspectiva interespécies toda ocupação humana é um ato de colonialismo. O espaço que se ocupa é sempre um espaço previamente ocupado por outros domesticadores, sejam eles insetos, animais, plantas ou árvores, como nos explica o antropólogo Ghassan Hage. Nas palavras de Hage, “o que define a domesticação humana generalizada é o ato de ocupar um espaço declarando o próprio interesse como princípio organizador primordial. Nesse sentido, a relação com os ocupantes anteriores daquele espaço se estabelece de acordo com a maneira como seu ser pode ser aproveitado para o avanço de nosso próprio ser. Qualquer um ou qualquer coisa que atrapalhe é excluído ou exterminado”.
De acordo com o biólogo Charles Clement, a domesticação da paisagem pelos ameríndios torna essa paisagem “mais produtiva e agradável para os humanos”. E quanto a todos os outros seres sencientes? Os povos indígenas das terras baixas amazônicas, com sua teoria do cultivo generalizado, supõem que esses outros seres também estão organizando a terra para torná-la mais produtiva e agradável para si mesmos.
O que diferencia as práticas ameríndias da domesticação humana no sentido proposto por Hage é que os ameríndios se abstêm de fazer de sua organização da terra o “princípio organizador primordial” da floresta. Em suma, pode-se dizer que eles não sujeitam a floresta à domesticação humana generalizada. Os povos indígenas, sem dúvida alguma, tornaram a floresta mais favorável à vida humana, mas não colonizaram a floresta.
As sociedades indígenas das terras baixas amazônicas estritamente forrageadoras dependem da preexistência de florestas antropogênicas. Essas florestas enriquecidas são como as pegadas de seus antepassados. Ao que tudo indica, para levar um modo de vida totalmente coletor, convém contar com florestas previamente enriquecidas e/ou com vizinhos agricultores.
Será que o manejo e o enriquecimento de pousios na agricultura de coivara estão entre os principais mecanismos que possibilitam a existência de sociedades forrageadoras? A maioria das sociedades caçadoras e coletoras nas terras baixas amazônicas (se não todas elas) parece ter abdicado de um modo de vida agrícola anterior, como já sugeriu Lévi-Strauss. Em vez de ser uma involução ou necessariamente o resultado de algum desastre, o forrageamento só seria possível graças às práticas de manejo dos agricultores indígenas. É como se o tipo de agricultura que eles praticam – abrindo clareiras na floresta para o plantio das roças e enriquecendo os pousios – respondesse pela possibilidade de abandonar a própria agricultura.
O que decorre das peculiaridades da agricultura itinerante neotropical é que ela resiste ao chamado progresso – ou seja, àquela linha de “evolução” irreversível, tida por alguns teóricos como universal, que vai do forrageio à vida domesticada. As sociedades indígenas parecem ter concebido uma floresta que habitam com direitos não exclusivos. Assim como as outras espécies que habitam a mesma floresta, essas sociedades buscam favorecer os próprios interesses. Seu objetivo, aparentemente, é poder, conforme as circunstâncias históricas ou por mera escolha, voltar para uma existência de forrageio. Essas sociedades gostam de se deslocar caminhando em pequenos grupos familiares, bem como de cuidar de suas roças nas aldeias, mantendo a possibilidade de voltar ad libitum a diferentes formas de vida – ao prazer de pescar, caçar e comer frutos silvestres, ou ao entusiasmo de participar de belos rituais que reúnem grandes agrupamentos nas aldeias. Assim como antigos nômades podem se tornar jardineiros dedicados, os agricultores também podem se transformar em coletores itinerantes. Sua ciência, tanto quanto seus jardins bagunçados que imitam a floresta, contradiz o que pensávamos saber sobre a agricultura: que uma vez que a conquistamos, não há retorno; que o progresso corresponde à domesticação de plantas, animais, paisagens e, como resultado, dos próprios humanos.
Há, ainda, outras lições que podemos tirar dos modos de vida dos povos da floresta: o compartilhamento dos direitos sobre a terra com outros seres sencientes; a renúncia a uma hegemonia dos interesses humanos na exploração do território; o respeito a uma variedade de regras e restrições; a recusa à própria domesticação. Tudo isso pode muito bem ser a receita para uma vida boa em uma floresta viva.
Manuela Carneiro da Cunha
Antropóloga, foi professora da Unicamp e da USP e é professora emérita da Universidade de Chicago. É autora de Direitos dos povos indígenas em disputa (2018), Índios no Brasil: História, direitos e cidadania (2012) e Cultura com aspas e outros ensaios (2009).
Efacio Álvarez
Artista indígena Nivaclé de Yiclôcat, Chaco Paraguaio. Faz parte do Coletivo Artes Vivas, com o qual participou das exposições Trees, Fondation Cartier Pour L’Art Contemporain (2019), Im Wald, Schweizerisches Nationalmuseum (2022) e Alive – more than human worlds, Museum der Kulturen Basel (2023).
Richart Peralta
Artista indígena Nivaclé de Campo Alegre, Chaco Paraguaio. Faz parte do Coletivo Artes Vivas, com o qual participou das exposições Trees, Fondation Cartier Pour L’Art Contemporain (2019), Im Wald, Schweizerisches Nationalmuseum (2022) e Alive – more than human worlds, Museum der Kulturen Basel (2023).
Como citar
CUNHA, Manuela Carneiro da. Anti-domesticação. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 34-45, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.