APAGAMENTOS
Texto de Renata Marquez
White noise, animação de Angela Detanico e Rafael Lain
Os mecanismos do progresso foram capazes de produzir uma grande ficção. Ficção da exploração inesgotável da natureza, ficção da aceitação da desigualdade entre os homens e ficção da ilegitimidade dos modos utilizados, por certos grupos, para compreender o mundo. Mas, enfim, estamos falando de realidade ou de ficção?
Essa dúvida não consegue ser resolvida porque a ficção está presente nos próprios processos de produção do real. Se a ficção é o motor do pensamento, o real é a sua criação mais trivial. E se o real é moldado pela simulação, podemos vislumbrar vários reais possíveis, através de outras ficções imagináveis que, apesar dos seus limitados portes e aportes, desafiam o otimismo do progresso. Há cerca de um século, esse otimismo difunde globalmente a lógica da aceleração econômica e tecnocientífica, indício ainda operante em pequenas e grandes obras dos dias de hoje.
A ficção centenária do progresso baseia-se na estratégia de provocar sucessivos apagamentos. Esses apagamentos obedecem à vontade utópica da tabula rasa ou tábua rasurada, isto é, ao desejo de se rasurar o mundo existente para escrever ou desenhar sobre ele como sobre uma folha de papel em branco: intervir numa superfície, apagando o relevo das formas alheias ou a intenção da sua remoção e substituição por um modelo alienígena. A tábua rasurada negligencia violentamente qualquer preexistência, seja ela representada por humanos, não humanos, ocupações territoriais ou modos de vida em grupo.
A genealogia do apagamento in progress tem o início de sua história na operação de excluir algo ou alguém do mapa. A Europa construiu, desde o século XV, o abismo entre o Velho Mundo e o Novo Mundo, enfraquecendo qualquer possibilidade de coexistência. Apagados como seres humanos contemporâneos, os nativos das Américas habitavam um território considerado “grau zero” ou “estado de natureza”, lugar no qual se enxergava enorme riqueza de recursos naturais e se negociava o insaciável ímpeto de exploração e produção em massa de inexistências humanas.
No entanto, o ataque crítico à ideia hegemônica de progresso, que reconhece a esgotabilidade dos recursos naturais, a coexistência de distintos mundos, a prática da troca entre modos cognitivos diversos e a busca da ampliação da noção de crescimento a partir de outros valores que não exclusivamente os econômicos, produz fissuras visíveis na estratégia da tabula rasa da modernidade quincentenária. Se, por um lado, a fábula do progresso impera no imaginário social, na mídia e nos planos de governo, por outro, as fissuras da tabula rasa deixam emergir arqueologias digitais que contam histórias a partir de outros pontos de vista e fazem brotar, da sua própria tecnologia reconquistada, outras fábulas possíveis.
Angela Detanico e Rafael Lain produziram “White noise”, um vídeo de 4 minutos que explicita a estratégia da tabula rasaatravés da ferramenta digital de manipulação de imagens posta a operar num ritmo frenético. A manipulação das imagens confunde-se com a manipulação de territórios e de pessoas. A visão totalizadora do mapa e do plano de (des)ocupação reflete a magnitude do desejo de exploração e domínio da natureza. O gesto de derrubar uma floresta ganha o caráter pueril de se apagar uma área selecionada à distância, aleatoriamente, mas que, assustadoramente, é acelerada pela velocidade do loop das imagens no vídeo.
Pouco a pouco, o processo digital apaga cada matiz da imagem, enquanto a trilha de fundo reproduz também o ruído branco sonoro. “White noise”, ou ruído branco, é um sinal aleatório feito pela combinação simultânea de sons de todas as frequências. Por conter sons de todas as frequências, o ruído branco é usualmente empregado para mascarar outros sons.
Os satélites popularizados pelo Google Earth são responsáveis por disponibilizar imagens do mundo às quais nada escapa; onde, em princípio, tudo está visível. A obsessão pela visibilidade produz uma coleção de dados que supostamente produziriam conhecimento para saciar cada espírito científico, transferindo a exploração de terras desconhecidas para a exploração de imagens reconhecidas.
Mas que máscaras são criadas nesse poderoso processo de visualização? Quanta coisa acontece sob a seleção do cursor famigerado que não se vê, não se escuta e não se preserva, prestes a desaparecer num piscar de olhos e num selecionar de botão? Os dados estão visíveis no Google Earth, mas não vemos o ato político no qual cada matiz é apagado da imagem, ou seja, não vemos o ato mesmo no qual cada fragmento verde desaparece do território.
Somos reposicionados na condição de exploradores, à maneira dos naturalistas de séculos atrás. Somos transformados em naturalistas que desnaturalizam as imagens e que vagueiam na sua superfície técnica com desconfiança da sua verdade, pois não há uma chave prévia para o entendimento daquele fenômeno que se explicita pela primeira vez. Então, de qual linguagem estamos falando? Chegamos ao bívio que separa o caminho da arte do caminho da ciência e vemos esse bívio se desfazer e se transformar num emaranhado de trilhas: usar a arte para falar de ciência e usar a ciência para falar de arte.
O “Dialeto”, de Marcelo Drummond, é, por sua vez, também uma forma de inversão do efeito tabula rasa: o poder de definir as metas e os meios do mundo, comumente encontrados na linguagem técnica e (curiosamente) abstrata dos diagramas, é subitamente deslocado para o meio digital, num silêncio perturbador sobre os resultados e as estratégias. O que fazer? Como fazer?
O apagamento executado sobre as imagens selecionadas na Internet é, em si mesmo, um novo dialeto que se pronuncia contra a hegemonia do conhecimento científico e, subversivamente, contra uma ordem imposta lá de longe. Não se estranha, frequentemente, o diagrama como-ordem, mas estranha-se imediatamente o diagrama-saqueado. O apagamento autoritário da tabula rasa é transformado em apagamento como direito à ação que preenche e não extermina. A redução da complexidade do mundo à linguagem dos números é apagada também através de um comando de seleção do computador, que liberta os diagramas para falarem outras línguas e evidencia a utopia de controle do mundo. A ciência mercadoria, exportadora de modelos de gestão, é destronada pela abstração gráfica da arte – uma outra linguagem epistemológica possível.
“Dialeto” abre espaço para a variedade geolinguística, dá lugar discursivo à autonomia no processo de tomada de decisões e funciona conceitualmente, como potência, como um hacker nos planos de gestão. Imagens analíticas, feitas para guiar uma decisão ou um raciocínio, são transformadas em figuras enigmáticas e inocentes, meros brinquedos de governo, mapas
de-lugar-nenhum, registros da metafísica criminosa do mundo. Se os números de fato não dizem tudo, a ausência deles nesse novo Dialeto diz muito sobre a sua feliz incapacidade de explicar o mundo e o seu caráter de ficção.
Renata Marquez
Editora da PISEAGRAMA.
Angela Detanico e Rafael Lain
Artistas, trabalham e vivem em Paris e São Paulo.
Como citar
MARQUEZ, Renata. Apagamentos. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 2, p. 26-27, abr. 2011.