AQUELES QUE
ANDAM JUNTOS
Texto de Oreme Ikpeng
FenoFasicus, ilustrações de Dedê Paiva
Quando foi transferido para o Xingu em 1967, o povo ikpeng não imaginava que um dia seria necessário plantar a floresta de volta. Com seu conhecimento, as mulheres ikpeng hoje coletam, vendem e plantam sementes, criando outras economias com a floresta em pé.
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As formigas yarang saem todas juntinhas, buscam folhas, sementes e galhos, vêm com tudo na cabeça, levam para casa e beneficiam. É assim que fazem essas formigas, conhecidas na língua portuguesa como cortadeiras ou saúvas, e também as mulheres yarang que compõem a Rede de Sementes do Xingu. O nome Mulheres Yarang foi escolhido entre yarang, rere e kurigre – rere é morcego e kurigre é esquilo na língua ikpeng.
O Movimento das Mulheres Yarang começou em 2009. Eram apenas 15 coletoras na época, em sua maioria mulheres mais velhas. Coletaram mais de 500 quilos de sementes de 40 espécies. Ainda não estavam muito organizadas, mas, agora, mais de dez anos depois da fundação do movimento, já são mais de 3 toneladas de sementes florestais coletadas e mais de 1 milhão de árvores plantadas.
Atualmente, são 74 coletoras yarang que vêm entregar as sementes coletadas, mas na verdade são muito mais pessoas, porque a comunidade toda participa – os maridos, as filhas e os filhos. As sementes das coletoras são exclusivamente para reflorestamento, não são para cosmética nem para alimentação. Comercializamos sementes também para artesanato e cosmética, mas temos protocolos para que as sementes das indígenas sejam exclusivamente para o reflorestamento.
Nas aldeias, conversamos sobre reprodução, qualidade e logística das sementes. Em 2020, a Rede de Sementes do Xingu ganhou o Ashden Awards, prêmio internacional para soluções climáticas. Fomos reconhecidos internacionalmente como a maior rede de sementes do Brasil e estamos ajudando a formar outras redes, como a Rede de Sementes do Rio Doce, no norte de Minas Gerais.
A Rede de Sementes do Xingu ultrapassou fronteiras e hoje vai da Bacia do Xingu à Bacia do Araguaia, e também atende a demandas em Goiás. Hoje temos mais de 500 coletores: coletores urbanos, não indígenas que moram na cidade, coletores de pequenas agriculturas familiares, coletores de assentamentos e coletores indígenas. Cerca de 60% dos coletores são mulheres. Nossos clientes ou parceiros são, principalmente, pessoas envolvidas com barragens e aqueles criadores de gado que compram as sementes e reflorestam. Quem desmatou é o cliente que compra as sementes e que agora está reflorestando – e pagando às coletoras. As Mulheres Yarang falam que o trabalho com sementes independe da questão financeira, pois, se pensassem só em ganhar dinheiro, não iriam coletar, porque o pagamento não é mensal, é anual. As Mulheres Yarang e a Rede de Sementes do Xingu integram e sustentam uma economia com a floresta em pé.
A maioria das Mulheres Yarang não fala português, por isso falo por elas, com a permissão delas. Ouço as mulheres na condição de filho, sobrinho, genro. Não sou chefe das mulheres, elas é que são minhas chefes, o meu trabalho existe porque o trabalho delas existe. Eu sou apenas a voz, mas acredito que, num futuro próximo, estará aqui uma mulher ikpeng no meu lugar. Hoje sou eu quem faz a ligação, a tradução para o português. Por exemplo, na matemática, o Ikpeng conta um, que é nane, dois, que é arak, e quando é três, falamos arak-ewari-wïngpe, ou seja, “uma dupla e um sem par”, na tradução. Quando falamos quatro, é arakne, ou seja, “dois pares”; cinco seria arakne-nane-ewari-wïngpe, “quatro pares e um sem par”. Quando passa de dez, já é muito, itïng. Quando pergunto sobre o preço da semente, elas dizem: “Isso aqui é yawuga”. Yawuga é o mico-leão-dourado, que está lá na nota de dinheiro. Se as sementes são yawuga, valem o equivalente a 20 reais. Se equivalem a uma onça, o valor é 50 reais. As coletoras não falam “50 reais”, elas falam akari, que é onça, ou yawuga, que é mico.
Apesar de não falarem português e não estudarem, as mulheres ikpeng são muito sábias: não precisam de calendário nem fazem anotações. A ideia de que você tem que estudar para ser alguma coisa é uma ideia preconceituosa. Ninguém precisa estudar para ser alguém. Precisa estudar para se qualificar, mas dizer que precisa estudar para ser alguém é como se você não fosse nada. No conhecimento ocidental, a maioria das escolas e universidades é formadora de competidores de mercado, quando deveriam ser espaços para formar cidadãos capazes de se integrar em uma sociedade harmônica – não consumidores nem competidores de mercado. O sucesso desse projeto das mulheres é porque elas não levam só em consideração o money, levam em consideração outros resultados. Consideram a importância do que fazem não só para o Xingu e para seus povos. Vivem a alegria dos encontros e o convívio presente nas coletas feitas coletivamente.
São vários tipos de sementes: sementes que devem ser colhidas no pé, você sobe e colhe, e outras que você vai colher no chão; sementes que você já pega limpas e só passa na peneira; sementes que você tem que quebrar, tirar a polpa, secar. Olho de cabra é um exemplo de semente que só precisa catar e passar na peneira. Isso tudo não foi ensinado, a Rede de Sementes não tinha referência de onde pesquisar sobre o manejo, o beneficiamento ou a coleta de sementes, porque era uma coisa nova. Aprendemos com as experiências das Mulheres Yarang. Elas são cientistas que vão descobrindo e adaptando as coisas. Se uma semente está com caruncho, então temos que respeitar aquele caruncho, porque ele é o dono, em vez de ficar passando veneno. O que para os brancos é praga, para nós é o espírito dono. Porque toda vida é vida, e tudo tem seu dono. A gente nasce, vive, envelhece e morre. A árvore também nasce, dá fruta, envelhece e morre. É essa ciência que as coletoras respeitam.
Os animais participam também. O maior plantador, por exemplo, é a cotia. A cotia pega uma semente, enterra, pega outra, enterra. Vai enterrando, enterrando, enterrando, para depois voltar e pegar, mas, como enterra muitas sementes e depois não se lembra de onde enterrou, as sementes acabam nascendo e virando mais árvores para ela. Quando reflorestamos, temos que dar condições para que a vida prospere naquele lugar, plantar sementes que vão atrair passarinhos, morcegos, formigas, e eles farão a parte deles. Porque a floresta é dinâmica. O que é fraco morre, o que é forte cresce e o que morre vira adubo para outro. Nós temos sementes de árvores pioneiras, que crescem e morrem rápido, temos as secundárias, de árvores que duram mais tempo, mas que também vão embora, e depois temos o clímax, árvores centenárias, gigantes. Para uma área de reflorestamento virar uma mata, leva entre vinte e trinta anos. Em dez anos você já pode notar uma diferença; em quinze anos você vê que a terra fica melhor e as árvores estão mais altas, mas, para você ver uma mata mesmo, são necessários trinta anos, aí, sim, você reflorestou uma mata. E primeiro vêm os pássaros, os morcegos e os insetos e, depois, conforme a dinâmica, chegam os roedores e os macacos.
Enquanto os não indígenas precisam de calendário para marcar a colheita, a natureza fala conosco, ela dá sinais. Está falando a todo momento, mas só quem está preparado consegue ouvir. Quando me perguntam “Como é estar preparado para ouvir a voz da natureza?”, respondo que “Se esperar que a natureza fale bom dia ou boa noite, não vai ouvir nunca”, mas a floração de ipê indica a chegada de chuva, que para nós é época de queimar roça, e as borboletas amarelas voando é sinal de que chegou o fim da chuva e que vai secar.
Foi em 2002 que as lideranças, os caciques e a comunidade xinguana começaram a perceber as mudanças dos sinais, no clima, no ciclo das chuvas, na umidade cada vez menor, na vazão prolongada e nas novas praias que apareciam no rio, na cor da água que foi de transparente para turva. Antes eram seis meses de chuva e seis meses de seca, mas agora são oito meses de seca e quatro de chuva. E toda a comunidade percebeu também o aparecimento de doenças que não havia antes.
Para debater esses problemas, no mesmo ano, aconteceu o 1º Encontro Nascentes do Xingu, na cidade de Canarana, no Mato Grosso, com a participação do governo do estado, das universidades, de agências governamentais como a Agência Nacional de Águas (ANA), do Ministério da Agricultura e das prefeituras dos municípios em torno do Xingu e, principalmente, com a participação de ONGs como o Instituto Socioambiental (ISA), um parceiro histórico do Xingu. Como as cabeceiras e as nascentes do rio estão fora do Território Indígena do Xingu, tudo o que acontecia lá fora vinha para o Xingu. Era época de modernização de produtos e commodities do Mato Grosso, que estava se tornando o maior produtor de grãos e, ao mesmo tempo, o maior desmatador do Brasil. Então a proposta era que pensássemos uma possível solução para refazer a floresta.
Em 2007 surgiria a Rede de Sementes do Xingu. Era a hora de iniciativas e a maior delas era o reflorestamento. A Rede de Sementes do Xingu foi apresentada na ocasião do 2º Encontro de Nascentes do Xingu e da 1ª Feira de Iniciativas Socioambientais, em 2008. Fizemos a campanha Y Ikatu Xingu, que na língua kamaiurá significa “Salve a água boa do Xingu”, com o objetivo de reflorestar cabeceiras e nascentes de rios, especialmente do rio Xingu. Onde pegar as sementes, se o Mato Grosso estava desmatado, se era o maior produtor de grãos, o maior produtor de agrotóxicos? Os próprios indígenas começaram, então, a coletar as sementes para a campanha de reflorestamento.
Além do reflorestamento, a coleta trazia também o apoio à renda com a comercialização das sementes, que começou a ser necessária. Antes, as comunidades do Xingu não precisavam de dinheiro porque as coisas ocidentais estavam distantes. Agora que precisamos, como conseguir dinheiro de forma sustentável? Era uma iniciativa muito inovadora, mas inicialmente tivemos certa desconfiança: quem vai comprar as sementes? Quem vai querer reflorestar, se é muito mais lucrativo desmatar tudo e plantar soja?
Existem muitos proprietários rurais ignorantes que pensam que reflorestamento é bobagem, que mudança climática não existe, mas há também aqueles que aceitam isto como exigência do mercado: “Estou produzindo comida, então tenho que aceitar as exigências do mercado”. Como por meio de mudas era muito caro, nasceu a ideia do reflorestamento com muvuca. Adaptamos as ferramentas antes utilizadas para a plantação agrícola e diminuímos, assim, os custos. Muvuca é uma gíria carioca que quer dizer bagunça ou multidão, e muvuca, para nós, da Rede de Sementes do Xingu, é a mistura de várias sementes na areia, para reflorestamento.
O Território Indígena do Xingu, também chamado de Terra Indígena do Xingu ou Parque Nacional do Xingu, compreende dezesseis povos indígenas, cada um com sua língua, cultura, suas tradições e religiões. Atualmente, chamamos de Território Indígena do Xingu porque são várias terras coladas no Xingu: temos a Terra Indígena Naruvôtu, a Terra Indígena Batovi, a Terra Indígena Wawi, a Terra Indígena Capoto Jarina… São 120 aldeias, com mais de 8 mil xinguanos. O Xingu foi criado em 1961 e corresponde à primeira terra indígena demarcada no Brasil, são 2,8 milhões de hectares. Quando se fala do Xingu, refere-se ao Alto Xingu, mais conhecido e famoso, embora o Xingu seja dividido em quatro regiões: o Alto Xingu, o Baixo Xingu, o Leste Xingu e o Médio Xingu. Eu estou no Médio Xingu. O Alto Xingu é o mais aberto e acessível, com mais trânsito de não indígenas. As demais regiões são mais isoladas e muita gente não as conhece.
Os irmãos Villas Bôas fizeram contato primeiro com os alto-xinguanos, que eram mais receptivos e não ofereceram muita resistência, ao contrário dos Xavantes, com quem foi difícil fazer contato, assim como conosco. Como Orlando Villas Bôas recebia apoio financeiro e equipamentos de não indígenas que queriam visitar o Xingu, os alto-xinguanos eram as pessoas que recebiam esses visitantes. No Alto Xingu foi mais fácil fazer estradas e já havia a pista de pouso. Havia também o ritual do Quarup, que ficou muito conhecido e trouxe a questão financeira, pois atualmente as pessoas que vão ao Alto Xingu pagam, gerando uma renda para o alto-xinguano. O Alto Xingu se tornou assim um lugar de mais acesso, uma comunidade sem muita restrição, enquanto para entrar nas outras regiões do Xingu tinha que ser objetivo: “O fulano vai entrar” e a comunidade tinha que aceitar ou não. A FUNAI também costumava acompanhar esses processos. Era difícil e, na verdade, ainda é difícil acessar o Médio, o Leste ou o Baixo Xingu.
Os Kawaiweté, os Kaiabi e os Yudjá foram para o Baixo Xingu, os Ikpeng e os Trumai, para o Médio, onde estamos, e os Kisêdjê Suyá, para o Leste Xingu, lugares que não tinham acesso fácil. Quando chegamos ao Xingu, já habitavam aqui os alto-xinguanos. Os povos que vieram trazidos depois fomos nós, Ikpeng, foram os Kaiabi, os Juruna, os Tapaiuna e os Panará, sendo que estes últimos conseguiram retornar para sua terra de origem. E nós, Ikpeng, éramos inimigos dos alto-xinguanos, geralmente atacávamos a aldeia deles. Paralelamente, os irmãos Villas Bôas perceberam que os Ikpeng e também outras etnias, como os Kaiabi, tinham facilidade para absorver as coisas, aprendiam rápido. E, do mesmo jeito que poderiam aprender coisas boas, poderiam aprender coisas ruins também. Então fomos reservados, isolados num local específico, que não permitia visitas.
O primeiro contato do povo Ikpeng foi em 18 de outubro de 1964, às dez horas da manhã. Um avião sobrevoou a aldeia e filmou o contato. Não eram só brasileiros que estavam no avião. O contato do povo Ikpeng foi patrocinado pelos belgas. O rei da Bélgica, Leopoldo III, veio visitar o Xingu e participou junto com os irmãos Villas Bôas do contato com algumas etnias, dentre elas, a Ikpeng. Morávamos na margem do que hoje é o Parque Nacional do Xingu, fora dos seus limites, no rio Jatobá, um afluente do Xingu. Chamamos a nossa terra de Roro-Walu, ou “Rio do Papagaio”. Como o Xingu já tinha sido demarcado como terra em que ninguém podia mexer e os territórios em torno dele já tinham sido loteados e leiloados para grandes fazendeiros, o governo mato-grossense, na época do Governo Militar, deu uma advertência para os irmãos Villas Bôas para fazerem contato conosco e nos levarem para o Xingu. Como precisavam de recursos para fazer contato, entraram os belgas, que cederam as aeronaves e os recursos para a compra de materiais a serem oferecidos a nós. A condição era de que um cineasta belga fizesse a filmagem do contato.
Os irmãos Villas Bôas disseram que os Ikpeng eram um povo nômade, guerreiro, que não ia ceder fácil, que ia lançar muita flechada, mas eles não se intimidaram. O próprio nome Ikpeng quer dizer “bando”, ou “marimbondos bravos”, ou “aqueles que andam juntos”. Os Ikpeng eram como marimbondos que atacam juntos e vão atrás de você; se você encontrar um ninho e mexer com eles, eles vão atrás de você aonde você for! Antes do contato, costumávamos invadir outras aldeias para intimidar os outros a não se aproximar do nosso território, daí o receio do Orlando Villas Bôas de os belgas levarem flechadas.
O povo Ikpeng, também conhecido como Txicão, nome dado pelos sertanistas, foi descrito pelo antropólogo francês Patrick Menget como “um povo que tem fala forte e provocante, e que para muitos pode parecer arrogante, […] um povo que reconhece, no sentido da guerra, um meio de reprodução da vida social”. Os Ikpeng, porém, cederam. O avião pousou no campo trazendo machados, chapéus, camisas, e os Ikpeng acabaram cedendo. E depois de três anos no nosso território, fomos transferidos para o Xingu. Era novembro de 1967.
Deixamos para trás nossos túmulos, nossos lugares sagrados, nossos rituais, nossa agricultura, e viemos para cá, nos instalamos no Xingu. No início do contato éramos cerca de 60 indivíduos. Ficamos doentes, com doenças que não conhecíamos, trazidas pelos não indígenas, doenças que a nossa medicina não curava porque eram doenças europeias. Como no Xingu estavam nossos inimigos históricos, no início eles não aceitaram muito a ideia. Agora, depois de mais de 30 anos, já há casamentos entre as etnias, nos respeitamos, somos mais amistosos. Inicialmente, como tínhamos conflitos, foi bem difícil conviver, era uma coisa nova para todos. Orlando Villas Bôas teve muito trabalho para deixar a gente em ordem. Fomos para o Médio Xingu, onde a população aumentou, e hoje somos mais de 500 Ikpeng, falantes da língua ikpeng, do tronco linguístico karib. Hoje temos consciência da parceria, já vivemos em comunidade, já falamos que somos “xinguanos”.
Nós, os Ikpeng, começamos a flexibilizar e a interagir mais com o mundo externo a partir de 2012. E atualmente recebemos visitas, estamos mais acessíveis, já existem estradas no Médio Xingu e os municípios ficaram mais próximos. A fama do xinguano é muito grande, sempre tem alguém que quer conhecer mais e, apesar de ainda não ser fácil, não é tão difícil como antes. Até falam que viajar para a Europa é mais barato do que vir para o Xingu, pela logística, porque não tem estrutura, não tem transporte como ônibus ou carro. Quem faz esse trabalho são os freteiros, então fica caro vir para o Xingu.
Após 57 anos de contato, agora lutamos pelo direito de retornar ao nosso território original. Estamos na Justiça para demarcar de novo a nossa terra, mas nosso território hoje é pasto, um lugar cheio de soja, de milho, de madeireiras, com pouco mato. Cerca de 90% da mata já foi destruída, e teremos que fazer um projeto de florestamento para recuperar e poder deixar o território do jeito que ele já foi. Foi feito o estudo antropológico, o mapa com os limites do território, o relatório necessário para o reconhecimento legal como terra indígena. Quando os fazendeiros ficaram sabendo que queríamos a terra de volta, começaram a nos intimidar e ameaçar. Ficaram sabendo porque o Tribunal Federal da 1ª Região de Brasília votou a nosso favor na demarcação, e os fazendeiros não querem mais que a gente passe por lá. A briga agora é no Judiciário em Brasília.
Na cultura ikpeng, nunca se pensou que seria necessário, um dia, plantar a floresta de volta. Olhávamos o infinito-floresta e falávamos: “Isso não vai acabar, nós somos a floresta, e a floresta somos nós. Se a floresta acabar, a gente acaba”. Coletar é, portanto, uma missão; reflorestar é uma missão.
Em 2018 houve uma expedição às áreas que estavam sendo reflorestadas. Participou uma representante do Movimento das Mulheres Yarang. Ela ficou muito feliz de ver que suas sementes realmente estavam sendo plantadas e que estavam virando floresta! Visitamos várias áreas diferentes, áreas que estavam bem no início do processo, e outras já com vinte anos de idade, onde você via a diferença, encontrava pássaros, marimbondos, buraco de tatu…, realmente se percebia que o lugar estava voltando ao normal.
Colher sementes para trazer para mais perto, para a nossa aldeia, é uma coisa que já acontecia, desde quando não tínhamos terra demarcada e podíamos migrar para qualquer lugar com mais recursos. Já reflorestar uma mata do zero é uma coisa nova, que veio com a ajuda das ciências de fora. Estudei agroecologia para poder ter mais conhecimento nessa área. Coletar sementes e plantar sempre foi uma coisa natural. Sem saber, as mulheres Ikpeng faziam isso. Já o reflorestamento em si é uma coisa nova no mundo, porque antes tinha muita mata e só agora precisamos reflorestar. Agora que vivemos em terra demarcada, temos que preservar e sobreviver naquele pedaço de terra. Se acabar, acabou. Precisamos manejar essa terra. Ficar trinta ou quarenta anos numa mesma área nunca foi e não é cultura indígena. Ficávamos no máximo cinco ou seis anos numa região e nos mudávamos, para depois retornar, porque, quando retornávamos, o mato já tinha se recuperado. Agora é diferente. Vivemos num lugar obrigatoriamente fixo, então precisamos remanejar o nosso território.
O Brasil do governo Dilma, em 2012, se comprometeu a reflorestar 12 milhões de hectares de floresta até 2030. Fizemos um estudo e precisaríamos de cerca de duzentas Redes de Sementes do Xingu para alcançar esse objetivo. Não nos limitamos apenas a nós, não queremos só a Rede de Sementes, não olhamos as outras redes como concorrentes, e, sim, como parceiras. Apoiamos o surgimento de novas redes de sementes.
Antes tínhamos preconceito diante de tudo que fosse de brancos, ligado a fazendas, a pequenos produtores rurais, todos eram considerados inimigos. Com nossos intercâmbios, percebemos que os brancos também estão sendo excluídos da sociedade. Os pequenos produtores rurais, por exemplo, não têm apoio do governo, que só apoia o produtor de grandes fazendas. Os assentados são pessoas que lutaram para estar naquele lugar. Isso nos aproximou, os conhecemos e eles nos conheceram, e a gente se conectou. Agora entendemos que nossa luta é uma coisa conjunta, que o sistema político é nosso inimigo. Temos esse intercâmbio cultural de diferentes atores que antes pensavam diferente, mas que hoje formam uma comunidade, com diversidade. Não é todo branco que tem a intenção de desmatar, desflorestar, expulsar.
O Xingu é uma ilha de floresta num mar de monocultura de soja, com chuva de agrotóxicos. O Mato Grosso é o maior produtor de grãos do Brasil e, ao mesmo tempo, o maior consumidor de agrotóxicos do país. Precisamos valorizar os trabalhos orgânicos dos pequenos produtores rurais, porque é possível viver de floresta em pé. Novas economias são possíveis. Temos que sair dessa mentalidade de Brasil colônia que nunca abandonamos. Continuamos com esse pensamento europeu de que precisamos produzir para enriquecer. Os insetos fazem parte da natureza como nós, e não como pragas que precisamos combater. Não sou contra a agricultura, mas, sim, contra como ela é feita, contra a desigualdade que ela causa. No Brasil não deveria haver fome. Precisar explorar os recursos para se desenvolver é um pensamento atrasado e destruidor. Temos que ter nossa autonomia, entender que isso é o nosso patrimônio. Temos que mudar nossos hábitos, nosso consumismo, pensar que a água não é inesgotável, que um dia vai faltar água. Nossa maior riqueza é a floresta em pé.
Oreme Ikpeng
Coordenador do Movimento das Mulheres Yarang, articulador do povo Ikpeng e conselheiro da Rede de Sementes do Xingu.
Dedê Paiva
Artista formada pela UFMA, ilustradora e designer de projetos culturais, educativos e de direitos humanos.
Como citar
IKPENG, Oreme. Aqueles que andam juntos. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 15, p. 112-119, dez. 2021.
Este número da revista teve como editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado.