ATLAS
AMBULANTE
Texto de Osmar Fernandes, Antônio Lamas e Robson de Souza
Meu nome é Osmar. Sou amolador de facas. Trabalho em Belo Horizonte há cerca de 17 anos. Vim de São Paulo, onde já fazia esse trabalho desde 1979. Conheci Belo Horizonte e descobri que aqui não tinha amoladores de rua. Então resolvi me mudar, fiquei um tempo e depois trouxe a família. Quando não amolo as facas, as tesouras e os alicates, amolo pelo menos os moradores, gritando que sou o amolador!
Aprendi essa profissão em São Paulo. É chamada de amolador de facas aqui. Em São Paulo é afiador e os espanhóis chamam de cuteleiro. Um senhor espanhol que veio da Galícia para o Brasil me ensinou. Ele era meu vizinho. Quando eu era menino, saía com ele, batia palma nas casas e perguntava se queriam o serviço. Até que, um dia, ele me disse que poderia fazer um carrinho para eu trabalhar também, como ele.
O meu carrinho é a minha empresa. Ele é todo de madeira bem antiga, com uma roda que é o aro e o pneu e com um pedal. Tem também um paninho que uso sempre para testar tesoura. Procuro colocar tecido fino, seda ou viscose. Gosto de tecidos coloridos para ficar mais bonito e uso até cortá-lo completamente. É um carrinho que, enquanto estou amolando, ele está parado. Acabei o serviço, eu viro e saio andando com ele. Ando, paro um pouco, grito, ando mais um pouco. Enquanto estou andando, não estou ganhando… Só ganho parado.
Ando uma média de 7 a 8 horas por dia. Trabalho durante o dia e tenho alguns lugares onde eu guardo o carrinho à noite. Geralmente é uma oficina mecânica, um estacionamento ou mesmo residências onde as pessoas já me conhecem há muito tempo. No Bairro Santo Agostinho, inclusive, tem a residência de uma senhora amiga que vou perder porque a casa dela foi vendida e será demolida, vai dar lugar a um prédio.
No meu itinerário, procuro passar em todas as ruas do bairro. Mas quanto mais prédio houver, maior a minha chance. Porque para percorrer 500 clientes num bairro de casas, tenho que andar 5-6 quarteirões. Já num local de prédio tem 500 moradores numa única quadra.
Aparece muito serviço para fazer em facas e tesouras antigas, tesouras forjadas mesmo. Vem uma senhora de idade e fala que a tesoura era da mãe ou da avó dela, e logo dá para deduzir que a tesoura tem mais de 100 anos. Segunda-feira vem mais alicates e sábado vem mais facas, aquelas trazidas pelos homens barrigudos que fazem churrasco. E agora tem aqueles mais jovens que gostam de fazer sushi e trazem aquela faca que só tem um lado do fio. Olho logo: esse é magrinho, é comedor de sushi! “Fez um dentinho, dá para tirar?” Dá! Porque para mim, quanto pior estiver, melhor é. Faca nova ninguém traz para amolar, gosto é de tesoura velha, faca velha. Mas quando é coisa de qualidade, até o foguinho que sai da tesoura tem mais intensidade, brilha mais.
O toque da gaita é o mesmo toque de todo lugar que tem amolador, em todos os países. Pessoas que vêm da Argentina, de Portugal ou de outros países já me falaram: “Estive lá e a gaita é essa mesma.” Quando cheguei a Belo Horizonte, o pessoal não conhecia a gaita – eu já gritava, pois em São Paulo é tudo no grito, não é mesmo? Mas, quando cheguei, tocava a gaitinha e ninguém sabia o que era. Aí acrescentei o grito que fazia lá em São Paulo e deu certo, hoje o pessoal já me reconhece. Os meninos gritam como eu, fazem propaganda para mim! É o dia inteiro menino e peão de obra gritando como eu!
É um trabalho gratificante, que faz parte da história do Brasil. Os mais antigos lembram que, quando eram jovens, tinha sempre o amolador na rua, que passava gritando. Como é um trabalho antigo, ninguém acha que tem futuro. Já tentei ensinar o ofício a outras pessoas – como vizinhos, por exemplo –, mas eles tiveram vergonha. Para mim é um trabalho bom, mas acho que essa profissão vai acabar porque não tem pessoas interessadas em continuá-la.
Meu nome é Antônio. Eu vendo biju há 19 anos, desde a última vez que voltei a trabalhar com isso. Quando eu tinha 18 anos, meu pai montou uma fábrica de biju. Eu e os meus irmãos vendíamos. Depois que meu pai faleceu, paramos com a fábrica e fomos trabalhar fichados. Depois voltei a vender biju em 1991. Se você fabricou o biju de manhã, sabe que à tarde está com o dinheiro na mão. Não sabe quanto, mas todo dia você tem algum. Se você tem disposição para trabalhar, você anda muito, mas compensa, é muito melhor do que trabalhar fichado. Somos cinco irmãos e um sobrinho que trabalhamos com o biju. Só meu sobrinho vende no sinal, os demais vendem andando na rua, como eu.
Andamos muito. Vamos supor: eu passei nessa rua aqui hoje. Às vezes eu nunca tinha passado nessa rua, mas, se hoje eu passo, eu vendo. A pessoa fala: “Moço, tem muito tempo que eu não compro biju, passe por aqui mais vezes”. Aí, o que acontece? Se sei que ela já comprou, eu passo lá mais vezes. Vou escolhendo as ruas assim. Acontece também de eu passar em ruas que nunca passei e conhecer novos clientes. Passamos numa rua e vendemos para um cliente e, às vezes, outro cliente está a uns dois quarteirões à frente. Aí precisamos passar nele também para ver se ele quer. Pode acontecer de passarmos e ele não estar lá ou, às vezes, não querer comprar no dia, mas, naquela rota para chegar naquele cliente, costumamos vender para outras pessoas que estão de passagem. Às vezes a pessoa passa perto de mim e fala: “Moço, há quanto tempo não vejo biju. Eu ainda era criança…” Aí eu falo o que os antigos me contam: que o biju existe em Belo Horizonte há cerca de 80 anos.
O biju é feito com farinha de trigo, açúcar e água, não tem mistério. Antigamente, o biju era feito no carvão, num fogão grande. A partir de 1991, começamos a fazer o biju no fogão a gás, regulando na pressão que queremos. Vendíamos biju na unidade em vez de no pacotinho fechado, só que tinha um problema: se fizesse frio, a gente fazia o biju de manhã e à tarde já podia jogá-lo fora se não vendesse, porque ele murchava. Hoje não, a gente põe no saquinho e fica fechadinho. E levamos os pacotes no tambor, porque o tambor vai guardá-lo para durar mais tempo. Hoje a gente faz o biju de manhã e pode vendê-lo com 5, 6 dias que ele ainda está torradinho. Antigamente, o tambor tinha uma roletazinha na tampa, mas dessa época não me lembro. Falam que eram números de 1 a 10. A pessoa pagava na época certa quantia (o dinheiro era outro, não é mesmo?) e rodava a roleta. O tanto que saía era o tanto que levava.
Tenho dois tamanhos de tambor. Um tambor maior para vender biju nos sábados, domingos e feriados, porque cabe uma média de 93 pacotes. E um outro menor, que carrega 64 pacotes, para trabalhar durante a semana. O tambor é feito com um tabuleiro de alumínio para bolo que vira uma tampa e um tambor de papelão. Não pode ser um material pesado, pois, como andamos em média 30 km por dia, não tem como carregar um material pesado.
É importante você saber como carregar o biju, pois ele fica todo empilhadinho e é muito frágil. Até o jeito de colocar o tambor na calçada para atender o freguês é importante. Porque, se eu colocar o tambor virado para lá, ele vai tombar e quebrar. Sempre coloco o tambor inclinado um pouco para o meu lado e vou tirando sempre do lado de lá. A cor azul do tambor vem da tradição de quando meu pai tinha a fábrica, porém era um azul mais forte um pouco. Depois que eu e meus irmãos remontamos a fábrica, resolvemos usar esse azul mais claro.
O biju tradicional é vendido com a ajuda da matraca. Sem a matraca, eu não vendo nada, fico sendo um vendedor sem o equipamento completo! A gente passa na rua batendo e o pessoal às vezes está lá no andar de cima do prédio, escuta e já sabe que é o vendedor de biju. O algodão doce é a buzina e o biju é a matraca… Essa aqui deve ter uns 2 anos. Esse ferro tem 19 anos, desde quando eu recomecei. De tempo em tempo tem que trocar a madeira porque ela vai batendo e soltando lasca.
No começo, eu batia a matraca de outro jeito, mas, como estava cansando muito a mão, mudei o jeito de bater. O barulho também depende da madeira. Se ela for mais velha e ressecada, o barulho fica mais agudo. Se for uma madeira mais nobre e verde, o barulho fica mais fraco, abafado. Tem cliente que desce do prédio porque já me reconhece pelo barulho da matraca, pelo jeito particular de bater a matraca. Cada um dos meus irmãos bate a matraca de um jeito diferente.
Meu nome é Robson. Sou vendedor de pirulitos. Quando eu era pequeno, com 10 anos, não gostava de sair com os pirulitos para vender. Mas, um dia, cheguei na vitrine de uma padaria e vi tantas coisas para comer que resolvi ganhar o meu próprio dinheiro. Então fui no caminho da minha mãe. Ela fez uma tabuazinha para mim e saí vendendo pirulito e puxa-puxa. Os outros moleques ficavam caçoando de mim. Eu chegava em casa chorando e falando que não ia vender mais… Até que fui perdendo o medo e comecei a sair para vender pirulito no tabuleiro, descendo morro e subindo morro.
O tabuleiro é como coração de mãe: tem 100 buraquinhos, mas, se eu quiser colocar até 500 pirulitos em pé, amontoados, é possível. O cone é feito enrolando papelzinho por papelzinho, no dedo. A forma é o próprio papel, que é o papel manteiga. Depois de enrolar, é só despejar a calda um por um. Quando o líquido começa a ficar duro, eu coloco os palitinhos. Minha mãe me contava que, no seu tempo, ela usava folha de bananeira para fazer os cones. Enrolava a folha de bananeira, colocava a calda e o palito de bambu. Mas o mundo vai girando e a tradição das coisas vai se perdendo, o mundo vai ficando mais moderno. Então já não uso palito de bambu, e sim palitinho de plástico. Já a forma de chupeta é pronta, consegui comprar no Mercado Central, onde ainda se acham algumas peças antigas, apesar de estar tudo acabando hoje em dia.
Nos circos e nos parques de hoje, se chegar na porta para vender pirulito, não vão permitir. “Porque aqui já vende outras coisas, você vai atrapalhar.” Paro na porta e rapidamente chega um camarada de smoking dizendo para sair. Falo para ele que isso é coisa antiga, coisa de circo… Nos circos o que mais tinha era isso, em circos e em cinemas… Hoje, experimente parar na porta de um cinema! Dentro de meia hora chamam a fiscalização para pegar a sua mercadoria. Isso é encarado como se fosse um DVD pirata! Pirulito vende muito bem, só não há liberdade para trabalhar.
Descobri que, à noite, as criancinhas acima de 40 anos são as que mais gostam do puxa-puxa. Aí comecei a passar em mesa de bar, oferecendo às pessoas. Muita gente no começo me ridicularizava: “Vendendo pirulito de noite?” Até hoje falam: “Você tem que vender tira-gosto, vender amendoim…” Mas isso já tem! E não troco isso aqui por picolé também não. Compra pirulito aquela pessoa que quer, que gosta e lembra da infância. É uma coisa diferente e não há concorrência.
Comecei a andar à noite e consegui algum dinheiro. Comprei uma casinha, vamos dizer que não é bem uma casa, é um barraco, um barraco que, devargazinho, vou arrumando, ajeitando. Depois vendo a casa, compro outra coisa, junto mais um pouquinho de dinheiro e vou chegando perto de onde eu costumava morar. Meu sonho é voltar para a região onde comecei a vender pirulito. Um dia tenho certeza que conseguirei voltar para lá.
Por coincidência, na minha casa tem um pé de limão. Acabei de colher cada limão grandão e, quando olho, ele já está cheio de pequenos limões de novo. Há muito tempo não sei o que é ter que comprar limão! É uma bênção e tanto, não? O que eu mais uso é suco de limão, para fazer a calda do pirulito, e já tinha um pé de limão no quintal da casa que comprei. Tenho também um pé de abacate que adoro tanto, um pé de acerola e um de goiaba. Então estou muito feliz, apesar de ser um lugar um pouco distante, mas é ótimo.
Saio de casa e pego vários ônibus, porque, se eu for me deslocar a pé de um bairro para o outro, quando chego aqui o movimento já acabou, não tem mais ninguém. Quando começa o pico do movimento nos bares, é num horário só, fica tudo lotado. Chego oferecendo nas mesas: Oh o pirulito puxa-puxa… Quanto mais chupa mais puxa…
Quem quer quer, quem não quer e não reconheceu, não adianta insistir. Quando a pessoa reconhece, já se levanta e compra. Não preciso ficar passando de mesa em mesa. É só parar na porta e apresentar o pirulito. Às vezes tem um casal sentado numa mesa, a menina com aparelho nos dentes e o rapaz ao seu lado. Aí eu digo: compra um para ela! Só que tem um porém: se tiver dentadura, obturação ou aparelho, não pode morder. Eles sorriem e, às vezes nem queriam, mas acabam comprando. Se alguém comprar também para levar para a sogra, ela vai correr 3 dias e 3 noites sem parar se tiver dentadura, porque se ela morder vai xingar muito a pessoa que lhe deu o pirulito. É divertido…
Osmar Fernandes, Antônio Lamas e Robson de Souza
Osmar, Antônio e Robson são trabalhadores ambulantes em Belo Horizonte. Estes depoimentos fazem parte do livro Atlas Ambulante, publicado pelo Instituto Cidades Criativas em parceria com a PISEAGRAMA em 2011.
Como citar
FERNANDES, Osmar; LAMAS, Antônio; SOUZA, Robson de. Atlas Ambulante. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 2, p. 54-59, abr. 2011.