AUTOPARQUE
DE DIVERSÕES
Basurama
Ao longo do século XX, o modelo urbano caracterizou-se principalmente pelo uso progressivo e massivo do automóvel. Dentre cidades extensivas cujo objetivo final é de proporcionar mobilidade máxima para veículos deixando o pedestre em segundo plano, Lima, no Peru, não é um exceção. Um planejamento transbordado pela realidade, um crescimento informal indiscriminado e uma rede de transporte público deficiente acentuam essas características tornando o pedestre um elemento secundário e sujeitando o espaço público ao abandono e à degradação.
O trem elétrico de Lima começou a ser construído em 1986 como projeção de uma capital moderna, mas nunca foi terminado. Tornou-se uma promessa eterna e não cumprida de cada novo presidente e de cada prefeito eleito. Frustrada como aposta no transporte público, a estrutura de linhas abandonadas do trem elétrico era provavelmente o resíduo urbano mais interessante da cidade. Por sua forma – uma plataforma de concreto de 9 metros de altura por vários quilômetros de comprimento, sem que houvesse nenhum ponto para se subir até ela – mas também por sua história não concluída e pela situação indefinida que afetava quase toda a população limenha.
A plataforma elevada era interessante também por ser um espaço público em potencial, um grande passeio linear negado a uma cidade em que aqueles que escolhem caminhar acabam atropelados, ensurdecidos ou, no mínimo, contaminados pelos carros. No bairro de Surquillo, a parte baixa da plataforma acabava sendo um espaço público estranho: sua grama ficava cheia de casais e famílias que esperavam sua vez para serem atendidos em um hospital que há logo ao lado, protegidos do sol sob a sombra da plataforma. No resto de Lima, entretanto, os parques costumam estar cercados como fortalezas e são lacunas em vez de vazios urbanos que conectam lugares.
Uma imagem se repete por toda a cidade de Lima: o aço sai dos pilares das casas, assim como saía dos pilares do trem elétrico, apontando para o céu. Essa paisagem urbana é a formalização de um desejo comum, de uma sociedade que espera eternamente “continuar crescendo”.
ORUS Lima (projeto de Resíduos Urbanos Sólidos de Lima) consistiu na recuperação do espaço público gerado pelo abandono das linhas do trem elétrico. Sua condição de infraestrutura urbana já consolidada foi aproveitada como suporte para a instalação de brinquedos públicos: o Autoparque de Diversões.
O processo contou com duas linhas de atuação bem marcadas: o trabalho em rede com outros coletivos e a construção de baixo custo. Isso nos permitia aprender e pôr em prática técnicas construtivas e gráficas locais, adaptando-as a outros objetos, e também que o processo fosse compartilhado para que depois pudesse ser apropriado, repetido e melhorado pelos próprios moradores.
Foram convidados os moradores do bairro Surquillo e vários artistas locais. Em conjunto, foram idealizados vários brinquedos e intervenções no espaço. Eram mecanismos típicos de parques de diversões acionados, no caso, por pessoas e não por motores: o touro mecânico, as cadeiras voadoras, o barco pirata, os pilares coloridos, o ambiente de festa, o neon… e a possibilidade de completar, em uma tirolesa, o trecho interrompido da linha do trem elétrico. O convite era claro: “Suba no trem fantasma!”
Também foi impresso e distribuído na vizinhança o mapa-folheto Lima 2427, desenhado por Camila Bustamante, no qual era possível consultar a rede completa de linhas projetadas oficialmente para o trem elétrico.
Para a execução do projeto foram ativamente sugeridos a auto-construção a custos baixíssimos e o uso de materiais reutilizados, principalmente peças de carro e pneus, no intuito de gerar uma reflexão sobre o transporte público e o privado. Para dar visibilidade à ação, trabalhou-se com os formatos gráficos de impressão de cartazes típicos de Lima, apagando-se as letras e imprimindo somente as cores de fundo, que cobriram os pilares cinzentos de concreto. As cores vivas e fosforescentes mudaram radicalmente o aspecto do lugar.
Propor uma ação que pudesse ser permanente, autogerida e que pertencesse à cidade em um espaço que já funcionava como espaço público foi um desafio para nós e para a cidade. Era necessário, além de oferecer atrações divertidas, fornecer um espaço rico, complexo, resistente e de qualidade, sabendo que a vizinhança e as crianças são o público mais exigente. Apesar do projeto ter durado, já instalado, somente duas semanas – funcionando a qualquer hora do dia ou da noite –, a estratégia e a metodologia permaneceram.
Os coletivos locais que participaram e construíram o Autoparque criaram sua própria rede, se apropriaram do projeto e o replicaram em outros contextos sociais em Lima, fazendo adaptações de acordo com cada situação e trabalhando com a colaboração direta da comunidade. Foram feitas intervenções com material reciclado, com o nome de Parques Automontáveis, no bairro de Pachacutec-Ventanilla e no vilarejo de Cantagallo-Rima.
O projeto teve o apoio da prefeitura de Surquillo e contou com a participação da comunidade em vários níveis: do grupo de jovens ambientalistas aos idosos, do prefeito ao pessoal da limpeza, das lojas do entorno às borracharias que cederam o material.
O Autoparque foi desmontado pela prefeitura com a desculpa de que teriam início as obras de recuperação das linhas de trem. Isso não ocorreu, como era de se esperar. Certo tempo depois, tudo foi demolido.
Basurama
Coletivo de Madri dedicado à investigação das possibilidades criativas do lixo.
Como citar
BASURAMA. Autoparque de diversões. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 5, p. 50-51, jan. 2013.