BAIRROCASTELO.ORG
Texto de Luiz Felipe Quintão e Silke Kapp
Intervenções em espaços públicos nas cidades brasileiras, quando não informais, são tradicionalmente monopolizadas pelo Estado. A partir de uma demanda diagnosticada – ou forçada por um interesse particular com influência suficiente –, o poder executivo providencia o desenvolvimento de projetos técnicos bem como a sua realização. Eventualmente isso se dá em parceria com a iniciativa privada, mas raramente com a população local. Um corpo técnico e a própria administração pública detêm o poder de decisão, enquanto a participação das pessoas supostamente beneficiadas se dá, no máximo, sob a forma de referendo, como é o caso do Orçamento Participativo. Dificilmente há um compartilhamento efetivo das decisões sobre a conformação e o uso dos espaços públicos.
Resultam desse processo espaços que atendem mal às demandas locais, são pouco apropriados pela população e cuja manutenção e transformação dependem inteiramente do próprio poder público. Estabelece-se um ciclo vicioso: por um lado, o Estado parte do pressuposto de que os cidadãos devam utilizar o espaço público segundo o roteiro prescrito por projetistas e planejadores, interditando a apropriação criativa como se fosse sempre vandalismo ou perturbação da ordem; e os cidadãos, por outro lado, não se identificam com o espaço público nem se sentem co-responsáveis pelo seu desenvolvimento futuro, restringindo-se a esperar pela próxima intervenção realizada na mesma lógica da anterior.
Em contraposição a essa prática, foi criado o experimento bairrocastelo.org, uma interface digital acessível via web que propõe formas efetivas de estimular a discussão sobre o entorno imediato dos usuários e incorporar a participação da população na produção dos espaços públicos.
A interface oferece um ambiente de troca de ideias e informações que, além de ser atualizado pelos participantes continuamente, também é reprogramado e ampliado em suas funcionalidades conforme as demandas que a própria participação gera. A escolha do bairro se deu pela disponibilidade de acesso à internet para boa parte dos moradores e a existência de uma demanda real de melhoria do espaço existente.
O bairro Castelo, em Belo Horizonte, foi urbanizado na década de 1970 e, inicialmente, ocupado apenas por residências unifamiliares de classe média. Nos últimos anos, embora não tenha sofrido alteração nos parâmetros urbanísticos, tornou-se alvo de empreendimentos imobiliários de pequeno e médio porte, com a construção de dezenas de edifícios multifamiliares e consequente incremento populacional. Esse processo trouxe a valorização das áreas de lazer no interior dos condomínios em detrimento da deterioração das áreas públicas, da diminuição da socialização no bairro e do esvaziamento das ruas, contribuindo para a sensação de insegurança dos moradores. Apesar da disponibilidade de espaço – lotes vagos, praças, largos canteiros centrais e até um grande parque de preservação ambiental – não há efetivamente bancos, jardins, abrigos, brinquedos ou outros equipamentos e oportunidades de uso público.
Baseado em alguns projetos e iniciativas similares tais como os websites Cidade Democrática e Criticar Belo Horizonte, ambos plataformas de discussão, e os websites Voice of Kibera e PortoAlegre.cc, que utilizam tópicos de discussão georreferenciados, criou-se um website estruturado em um banco de dados relacional exibido sobre a plataforma de mapas da Google.
A primeira versão da interface inclui textos, tutoriais em vídeo, cadastro e o mapa propriamente dito. Os usuários podem criar novos pontos em locais do bairro que consideram pertinentes ao tema atribuindo-lhes títulos, imagens e textos. Podem também inserir comentários em pontos já cadastrados, similares aos comentários em postagens de blogs. Os pontos não se restringem a espaços formalmente considerados públicos, mas são caracterizados a partir de quatro opções: residencial, comercial, espaço vazio e outros. Dessa forma, os usuários podem, se quiserem, apresentar-se como moradores ou lojistas, chamar a atenção para lotes vagos, etc.
Como forma de divulgação dessa interface, 6000 panfletos informativos foram distribuídos nas caixas de correio em mais de 80% das residências do bairro. Considera-se, normalmente, que essa modalidade de divulgação tem um retorno de 2 a 5%, o que equivaleria a uma quantidade de visitas no website entre 120 a 300. De fato, houve 200 visitas na primeira semana após a distribuição dos panfletos e foram inseridos 6 novos pontos, acompanhados de cerca de 40 comentários. Os comentários demonstraram a insatisfação referente à falta de espaços públicos tanto para a prática de esportes quanto para recreação e descanso. Alguns moradores propuseram melhorias concretas: pista para caminhada, ajardinamento, faixas de pedestres, pista de skate e aparelhos para ginástica, sugerindo parcerias com os lojistas para viabilizar tais iniciativas.
No entanto, o comportamento predominante tende a ser o de reclamação, sugestão ou reivindicação, sem o salto para algum engajamento concreto. Esse fator se dá em grande parte devido à concepção generalizada de que o Estado seria o único responsável pela configuração do espaço público, cabendo aos cidadãos apenas a participação compulsória nas eleições e o pagamento de impostos. A outra instância que se imagina ser capaz de interferir no processo são empresas com interesses comerciais. A ação dos cidadãos ou de uma coletividade auto-organizada não parece estar no horizonte de possibilidades. Ao mesmo tempo, o repertório de sugestões levantadas é bastante restrito a equipamentos e usos já existentes na cidade e notoriamente pobres em relação a uma apropriação mais criativa. O desconhecimento e a falta de experiência de outras formas de uso do espaço limitam a imaginação coletiva e individual.
A interface foi então aprimorada, gerando uma segunda versão, com o intuito de facilitar a navegação e estimular as discussões para além das reclamações. Criou-se a opção em formato de blog, alternativa à visualização baseada no mapa, e inseriram-se exemplos de ações independentes, realizadas por cidadãos em outros locais no Brasil e no mundo. Ampliaram-se as funcionalidades para a elaboração de propostas de uso e desenho dos espaços a partir de opções sugeridas, inicialmente, pelos próprios moradores.
A proposta inicial do bairrocastelo.org, com sua escala de vizinhança, era estimular a articulação para o uso e apropriação dos espaços urbanos reais, além de incentivar discussões críticas e moradores mais atuantes. Isso, no entanto, significa também a imprevisibilidade. Não se sabe, de antemão, o grau de adesão que será alcançado, quais os dispositivos e o tempo necessários, nem o momento de conclusão efetiva. A comunicação, aqui, não é um instrumento subordinado a prazos e etapas com a função de coleta de dados ou informação de resultados, mas sim a essência de um processo que deveria, no melhor dos casos, continuar a existir sem estímulos externos, capaz de produzir ações contínuas no espaço urbano.
O papel do arquiteto é questionado nesse processo. Em vez de autor e criador de resultados espaciais e construtivos, ele passa a figurar como projetista da própria interface que apoia o processo e disponibiliza o conhecimento técnico. Cabe ao arquiteto encontrar, para cada caso, a medida suficiente de instrumentos, informação técnica e apresentação de possibilidades para estimular o engajamento sem predeterminar os resultados.
Sobre o papel do Estado, todas as nossas estruturas burocrático-administrativas são organizadas para processos de resultados e prazos determinados (embora eles quase nunca sejam cumpridos de fato) enquanto processos abertos e contínuos estão restritos à chamada “informalidade”. No entanto, os espaços urbanos, sobretudo os predominantemente residenciais, poderiam ser abordados pelo planejamento urbano de uma maneira menos determinista. Assim, por exemplo, a Prefeitura poderia definir os limites – espaciais, funcionais, orçamentários – para a ação das coletividades locais, sem definir os conteúdos dessa ação. Ao mesmo tempo, o fortalecimento de instâncias locais, tais como as associações de moradores e redes de vizinhança possibilitaria uma gestão mais flexível dos recursos públicos e uma descentralização das responsabilidades e decisões espaciais.
Luiz Felipe Quintão
Arquiteto e urbanista formado pela UFMG, é pesquisador do grupo MOM (Morar de Outras Maneiras).
Silke Kapp
Arquiteta e urbanista, é professora da Escola de Arquitetura da UFMG e coordenadora do grupo MOM (Morar de Outras Maneiras).
Como citar
KAPP, Silke; QUINTÃO, Luiz Felipe. Bairrocastelo.org. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 4, p. 30-31, set. 2011.