CAPACIDADES
EXTRA BOTÂNICAS
Texto de Karen Shiratori e Emanuele Fabiano
Reviravolta de Gaia, ações públicas fotografadas por Isadora Fonseca
O que é uma planta? Organismo fotossintetizante, molécula, mercadoria, cantos, imagens, experiência onírica, espírito… As perspectivas indígenas mostram que não basta pensar as plantas desprovidas das relações que as constituem.
Em uma praça do município de Chinchón, perto de Madrid, está o busto de uma mulher sobre um bloco de mármore; a cabeça está coberta com discrição por um véu e o seu olhar austero mira ao longe. No pedestal que a sustenta, está afixada uma placa em bronze na qual é revelada a identidade da homenageada: “O povo de Chinchón à Dona Francisca Enriquez de Rivera, Condessa de Chinchón, vice-rainha do Peru, descobridora da Quina, em 1629”; em seguida, há a data de sua inauguração em 15 de março de 1997. Segundo o mito que lhe conferiu fama, a vice-rainha havia adoecido, durante a sua estadia em Lima, de uma febre intermitente, e ao saber da notícia, Don Juan López de Cañizares, o Corregedor de Loja (distrito atualmente parte do Equador) foi acudi-la, pois ele próprio havia sido curado de uma febre semelhante. O remédio milagroso que salvou Don Juan foi administrado por um padre jesuíta que, por sua vez, havia aprendido como usá-lo através de um tal cacique indígena. Detalhe relevante para a eficácia e confiabilidade do remédio: antes, o indígena havia sido convertido ao cristianismo.
De acordo com a teoria galênica em voga, a vice-rainha sofria de uma doença conhecida na época como febre pútrida que, em intervalos regulares, acometia os enfermos. Entendia-se que esta classe de doença era provocada pela péssima qualidade do ar de áreas insalubres como as cidades europeias e as áreas pantanosas, por isso era genericamente referida por “mala aria”. Tal enfermidade, que até então não conhecia cura, afligia toda a Europa há séculos e não tardou para atravessar o Atlântico. A condessa, após ser curada pela planta então desconhecida, passou a promover o seu uso nos hospitais de Lima. O sucesso do novo tratamento impulsionou o comércio transatlântico do medicamento e a sua difusão pelo mundo.
Na tortuosidade desta história, cujos desdobramentos prosseguiram pelos 470 anos seguintes, destaca-se um pó amarelento de gosto extremamente amargo e adstringente gerador de inúmeras controvérsias políticas e científicas, disputas comerciais e diatribes religiosas. Conhecida por seus muitos nomes, pó-da-condessa, pó-dos-jesuítas, cortiça dos jesuítas, pó do cardeal, árvore de Loja, bois de fièvres, bois des Indes, cascarilla, quarango, quinaquina, kin-kina, cortiça peruana, Loja, china, china-china, china-canna, cortiça febril, genciana índica, antiquartanario peruano, palo de calenturas, gannanaperide, dentre outros, a planta, hoje chamada de quina, foi amplamente difundida devido às suas virtudes antipiréticas.
Como uma de suas identidades sugere, a árvore de Loja provém da região de mesmo nome localizada na depressão de Huancambamba, corredor criado por uma interrupção ecológica e geográfica nos Andes que permite a comunicação entre leste e oeste, favorecendo a mobilidade de espécies entre a costa, a floresta amazônica e as montanhas. Devido a suas características biogeográficas, esta região facilitou a difusão de plantas tais como o sacha tomate ou tomate de árvore, a batata e a quina. Um século depois de seu “descobrimento”, quando a cortiça de quina se impôs como remédio indispensável em diferentes farmacopeias, Loja se transformou no mais importante centro mundial de produção e comercialização deste medicamento. Não obstante sua prolongada exploração unicamente nesta região, os nomes que fazem referência aos povos indígenas de línguas quéchuas desapareceram da literatura e já não há quem os pronuncie: yarachucchu ou ccarachucchu.
Em contrapartida, para esta árvore, Lineu criou um gênero botânico novo: Cinchona, aparentada da família das Rubiáceas, como o café; todas as suas espécies (Cinchona ledgeriana, C. officinalis, C. calisaya e C. pubescens) têm em comum a presença de quinina, alcaloide central na formulação de muitos fármacos modernos. É evidente que a nomenclatura científica criada no século XVIII conserva seus vínculos com a colonização, enraizados em seu mito de origem como descobrimento de uma condessa europeia. Tanto neste mito quanto em suas variações, o que não muda é a marginalização e o paulatino ocultamento da contribuição indígena.
A quina é apenas um dos inúmeros casos de como a botânica está entre os conhecimentos científicos que garantiram o exercício e a expansão do poder colonial. Identificar, reconhecer, nomear e classificar produzem novas taxonomias às custas dos nomes e de seus correlatos modos locais de conhecimento. Como organizar o caos botânico e conferir ordem ao Novo Mundo? A empresa colonial depende da elaboração de uma nova linguagem a ser aplicada em outra escala de diversidade e extensão, aquela das Américas e, ao mesmo tempo, deve lidar com a variabilidade dos nomes locais. Assim, esta nova linguagem opera também por simplificação, a fim de evitar que a profusão das plantas e a instabilidade de seus nomes imponha caos à ordem almejada e, ao mesmo tempo, possa se enquadrar nas categorias epistêmicas oriundas da botânica europeia. Toda a ciência colonial opera através de apagamentos.
O empalidecimento dos nomes fratura o vínculo entre os seres e o seu território. De fato, essa política onomástica colonial é um instrumento de controle do imaginário, das populações e da natureza. Um dos primeiros gestos da colonização, portanto, é renomear lugares, plantas, animais e pessoas, deslegitimando os nomes atribuídos pelos povos nativos e convertendo-os em objeto exclusivo da ciência e propriedade da Coroa. “Descobrir” é um ato de apropriação, um procedimento graças ao qual não só territórios, mas também minerais, aves, insetos, peixes, plantas e pessoas se tornam mercadorias disponíveis porque despojadas de si mesmas.
A dificuldade da nomenclatura em garantir uma descrição precisa, somada aos desafios técnicos do envio de amostras da flora, indicam o quanto a comunicação entre o próximo e o distante, o Novo e o Velho Mundo, constituíam um dos eixos centrais da empresa colonial. Sem um rótulo latino, esses seres nada comunicavam e, portanto, não poderiam ser cultivados e aclimatados nos jardins botânicos e herbários e tampouco teriam serventia à ciência ocidental.
A necessidade de mobilizar estes novos “produtos” de lugares remotos (colônias) para as capitais europeias encorajou a criação de técnicas que possibilitaram seu deslocamento. Essa mesma necessidade produziu representações que reposicionaram o conhecimento local num sistema científico com pretensão de universalidade. Tal como as plantas foram arrancadas do seu local de origem para serem metodicamente levadas e transplantadas alhures, os nomes indígenas e os conhecimentos ligados a estas espécies foram extraídos e apropriados como matéria-prima para a ciência colonial. Contudo, conforme desenvolve o historiador Samir Boumediene em seu livro de 2016 A colonização do saber, nem todas as plantas e nomes podem ser transferidos através dos mares. A construção erudita do mundo nunca suprime as mediações, o atrito, as resistências epistêmicas e materiais que dão consistência ao mundo, produzindo uma imagem fraturada da natureza. Eis as origens não ocidentais da modernidade. As Américas desempenharam, neste sentido, um papel central na constituição do mundo, dos corpos e dos conhecimentos naturais europeus, ou seja, sempre foram boas para pensar, embora não o bastante para que se lhes reconhecesse o valor científico.
Ao rebatizar o mundo vegetal com sua mirada colonial, a botânica cria, conforme mostra a artista Giselle Beiguelman, nomes científicos e usuais que podem expressar preconceitos de teor misógino, racista e antissemita. As taxonomias modernas, assim, conservam o racismo colonial e científico. Classificar e nomear podem ser atos de dominação e controle. A Tradescantia zebrina, planta decorativa bastante comum, é vulgarmente conhecida como “judeu errante” (figura recorrente na propaganda antissemita durante o nazismo) ou o fungo Auricularia auricula-judae, literalmente “orelha-de-judas” são algumas das espécies presentes na exposição Botannica Tirannica, inaugurada em 2022 por Beiguelman, que revelam o compromisso discriminatório da taxonomia como ciência que impõem uma certa forma de ordenamento ao mundo, normalizando-o e subtraindo sua diversidade.
Contudo, o foco de Botannica Tirannica não se limita a mostrar o compromisso da botânica com a empresa colonial, pois as plantas são hábeis em abrir brechas e rotas de fuga. Com frases provocativas que acompanham a sequência das obras expostas, a artista estabelece uma tensão e um contraponto entre elas: “Toda erva daninha é um ser rebelde”; “A nomenclatura é um ritual de apagamento”; “A taxonomia é uma tecnologia de poder”; “Mais clorofila, menos cloroquina!”. Voltando à planta que nos serve de guia, importa relembrar que a cloroquina, um dia, foi um ser clorofilado e que este ocultamento deliberado é sinal de sua transformação em mercadoria.
Chama a atenção que, durante quase dois séculos, da árvore da quina apenas era conhecida a cortiça ou, tão somente, o pó produzido a partir de algumas de suas partes. Uma descrição da planta inteira tardou a ser feita. Os interesses comerciais esquadrinharam a planta em busca de suas partes rentáveis e os taxonomistas acabavam se confundindo porque dela só conheciam informações esparsas e desarticuladas. A árvore foi reduzida à cortiça e esta, ao pó. O passo seguinte foi a transformação da quina pulverizada em molécula.
Em 1820, uma dupla de cientistas franceses, Pelletier e Caventou, isolou do pó de quina um alcaloide cuja ação mostrou um inequívoco potencial antimalárico. O alcaloide foi batizado de quinina e, por diversos métodos, passou a ser extraído da planta e comercializado. Sempre permeado de disputas e controvérsias, o percurso até a determinação da fórmula molecular da quinina (C20H24N2O2) e, posteriormente, a sintetização da cloroquina, demorou ainda alguns anos. À semelhança da história de outros medicamentos, os experimentos conduzidos durante a fase de elaboração da cloroquina envolveram pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Pacientes em instituições psiquiátricas foram testados a partir de um procedimento chamado malarioterapia, criado pelo médico austríaco Wagner von Jauregg. Pessoas encarceradas em presídios na Austrália e trabalhadores de fazendas no Peru também serviram de cobaias para a cloroquina e suas variantes, como a hidroxicloroquina, cujos efeitos colaterais de grande toxicidade ainda eram ignorados.
A extração e a produção para o mercado europeu tornaram-se rapidamente tão lucrativas que o governo peruano proibiu a exportação de sementes de quina, a fim de manter o controle do mercado mundial. A extração e o comércio da planta tornaram-se valiosos de tal maneira que os ingleses e alemães estabeleceram plantações na ilha de Java e no Srilanka, graças a sementes contrabandeadas. Contudo, as espécies cultivadas pelos europeus tinham uma baixa percentagem de quinina, o que manteve a extração da árvore amazônica em Loja durante muitos anos. A forte procura do mercado e o monopólio peruano sobre a extração da planta produziram riquezas e abriram caminho para uma fase de extração predatória, que quase extinguiu as espécies nativas.
A importância política da quina é tamanha que está no escudo da bandeira nacional do Peru. Foi apenas na segunda década do século XX que o controle do mercado mundial da quina passou para as mãos dos alemães, que nessa altura tinham conseguido suplantar a produção latino-americana. A eclosão da Segunda Guerra Mundial implicou no crescimento exponencial da procura pela planta, um instrumento imprescindível para o avanço militar em regiões da África e da Ásia onde a malária era endêmica. As plantações indonésias na ilha de Java, controlada pelo Japão, já não podiam abastecer os países aliados e a necessidade de sintetizar um alcaloide tornou-se uma prioridade estratégica. A quina vai à guerra.
Quase 500 anos de controvérsias marcaram o ciclo colonial e extrativo da quina com disputas religiosas, a apropriação de saberes indígenas, o contrabando de sementes, as fraudes e os equívocos taxonômicos, a elaboração de medicamentos para malária (enfermidade mais mortífera da história), o estabelecimento de plantations na Ásia e sua exploração predatória em diferentes partes da América do Sul, a repartição da África tropical por países europeus, o desenvolvimento da indústria química de corantes e os empreendimentos farmacêuticos nazistas, em suma, a criação de instrumentos de exploração de corpos e territórios. Um capítulo recente das polêmicas envolvendo a substância, em uma de suas versões sintetizadas pela indústria – a hidroxicloroquina –, ocorreu durante a pandemia de Covid-19 e teve no Brasil seu principal arauto, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Propagandeada como tratamento precoce, a hidroxicloroquina, associada ao antibiótico azitromicina e ao antiparasitário ivermectina, seria a panaceia para enfrentar a emergência sanitária e tentar garantir a sobrevida de um governo fascista em franco declínio.
Embora especialistas de diferentes países recusassem, de forma veemente e embasada, o uso de tais medicamentos para o tratamento da Covid-19 por não terem eficácia comprovada e, mais ainda, por serem potencialmente tóxicos, o então presidente, apoiado por uma classe médica politicamente alinhada com a extrema direita, estimulava, receitava e distribuía no Sistema Único de Saúde (SUS) de diferentes estados, mas também no sistema privado, o tratamento sem eficácia.
Ao minimizar a gravidade da doença e do avanço da pandemia no país, seus pronunciamentos convertiam a hidroxicloroquina em instrumento político fascista e ferramenta populista: “Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, Tubaína”. A produção do medicamento no país ficou a cargo do Laboratório Químico Farmacêutico do Exército, apoiado pelos respectivos laboratórios da Marinha e da Aeronáutica, com o objetivo de produzir em larguíssima escala a hidroxicloroquina para o uso em todo o país. De 250 mil comprimidos produzidos a cada dois anos, cujo uso era destinado sobretudo ao tratamento da malária, a produção superou 1 milhão de comprimidos semanais, distribuídos no SUS e nos DSEI, Distritos Sanitários Especiais Indígenas.
A estratégia genocida do bolsonarismo, no seu modo de conduzir as ações de enfrentamento à pandemia, é notável pela recusa em levar adiante medidas efetivas de prevenção em contextos indígenas, como a criação de barreiras sanitárias, a expulsão de garimpeiros, a proteção dos territórios contra a grilagem, a distribuição de água potável e o incentivo do uso de equipamentos de proteção individual, dentre tantas outras medidas preconizadas pela Organização Mundial da Saúde. Através de redes de desinformação e ódio, foi disseminado o uso da cloroquina acompanhada de fake news que distorciam o efeito benéfico das vacinas contra o coronavírus que ocasionariam toda sorte de transformações teratológicas, implantariam chips, causariam outras enfermidades ou mesmo levariam à morte. Dentre os agentes de campanhas contrárias à imunização estavam os missionários proselitistas evangélicos, presentes entre diferentes povos indígenas, que pregavam o exercício da fé como alternativa eficaz contra a Covid-19. Assim como no seu mito de origem colonial, a conversão religiosa garantiria a eficácia do remédio.
Se o Brasil foi um caso extremo da disseminação oficial e do uso da hidroxicloroquina, certamente não foi o único. Também no Peru, o Estado teve um papel inegável na difusão de tratamentos sem eficácia durante a pandemia, discurso apoiado por grupos evangélicos que chegaram a inocular milhares de pessoas com ivermectina com a promessa de cura. Na contramão do negacionismo estatal e do extremismo de grupos proselitistas religiosos, muitos povos indígenas desenvolveram protocolos de cuidado fundamentados em concepções distintas daquelas da biomedicina acerca do adoecimento, da cura e das práticas terapêuticas. Conforme documentou a antropóloga Luisa Elvira Belaunde, as plantas da floresta ajudaram os povos indígenas a enfrentar a pandemia nas cidades peruanas. Foi o caso dos Yanesha, ao recorrer ao uso da cortiça de quina, alternativa também bastante difundida na Amazônia brasileira, e do matico, pelos Shipibo-Konibo.
A planta, não apenas o exemplar biológico, mas também com suas capacidades extra botânicas, em oposição à sua versão industrial sintética, contraefetua o mecanismo negacionista estatal e desvela a origem indígena e vegetal do medicamento reduzido à molécula-mercadoria. Se a indústria transforma a quina em hidroxicloroquina, os povos indígenas desintetizam as moléculas recuperando sua face vegetal e, mais ainda, humana. O curto-circuito não se interrompe aí. Algumas nomenclaturas regionais de povos indígenas e comunidades tradicionais se valem de nomes de medicamentos: há a planta do anador e da dipirona, a cloroquina do mato, a insulina, etc.
Se as plantas deixam de ser traduções fitoquímicas de suas propriedades terapêuticas, também a origem ou as causas das enfermidades não se reduzem a uma simples sequência de eventos biológicos. Às vezes chega em sonhos, avizinhando-se como um monstro escuro. É assim que descrevem os doentes de Covid-19 tratados pelos voluntários do Comando Matico, coletivo composto por artistas, comunicadores e ativistas indígenas do povo Shipibo-Konibo que, durante os primeiros meses da pandemia, se auto organizaram a fim de enviar folhas da planta matico ou cordoncillo (Piper aduncum) para amigos e familiares que vivem no bairro shipibo de Cantagallo, em Lima, no Peru. Distantes de suas comunidades, sem espaços para cultivos de canteiros de medicinas, a população indígena dos centros urbanos se viu duplamente isolada: sem suporte do Estado para atender aqueles que caíam enfermos e sem as redes de parentesco que garantem os cuidados tradicionais com o uso de plantas e a intervenção xamânica.
A planta que dá nome ao coletivo protagonizou a reconstrução dos laços de cuidado que reconectaram a cidade e as comunidades a partir da agência vegetal. Ao contrário dos “mitos de descoberta” europeus, aqui é o matico que se revela aos humanos, mostrando-lhes um novo horizonte terapêutico e de resistência às estratégias estatais de extermínio. Então, o mito de redescoberta shipibo desfaz a versão segundo a qual um soldado espanhol chamado Matico havia descoberto a planta ao aplicar as folhas desta em suas feridas para estancar uma hemorragia. Matico ou “erva do soldado” desdobra-se em diferentes atributos extra botânicos, mostrando que “planta” não se limita a uma entidade da biologia, afinal, para que possam ser eficazes, é preciso que sejam combinadas com outros procedimentos, dietas e práticas de cuidado. Mais ainda, o matico revela sua identidade complexa na medida em que a cura depende da comunicação com a face humana desta planta.
Seu nome e seu uso medicinal estavam esquecidos havia muitos anos. O matico crescia como erva daninha por toda a cidade amazônica de Pucallpa, no Peru. São conhecidos dois tipos de matico, o primeiro possui a folha mole e tem uso medicinal; o segundo, por sua vez, possui folhas esponjosas e é conhecido como “matico do amor”. Seu gosto é amargo e seu uso é destinado à preparação de poções de sedução amorosa. A planta estava presente, porém, invisível. Dizer que foi redescoberta pelos integrantes do Comando Matico é uma forma de relatar que a planta se deixou encontrar, num momento de extrema vulnerabilidade para a população indígena desassistida pelo Estado em contexto urbano. Esse reencontro, durante a crise sanitária, é contado como um “despertar” ou uma aparição repentina, nos termos de Néstor Paiva, cofundador do coletivo: “Ha llegado nomás!”. Reconstrução e reapropriação de um medicamento indígena, matico requereu novas formas de aprendizado e experimentação em tempos de incertezas. A aliança entre o matico e os Shipibo é um ato político de autonomia e resistência à imposição biomédica de concepções de adoecimento e cura alheias aos modos de vida indígenas.
Foi com o primeiro paciente atendido pelo Coletivo Matico que Jorge Soria, seu atual coordenador, viu em sonho a forma humana do matico, que lhe revelava sua agência terapêutica. Com a aparência de homens diminutos, os espíritos da planta se vestiam com batas brancas como aquelas dos médicos e, em equipe, se juntavam na hora de diagnosticar e tratar o paciente. Em contraposição à compreensão terapêutica ocidental, a planta não cura por ação exclusiva de seus princípios ativos, ou seja, não é suficiente administrar a planta sem envolver em sua preparação e seu uso a prática de cuidado onírico, o uso de cantos xamânicos, a fumigação com o tabaco, os banhos com vapores, as massagens e uma dieta específica a cada paciente. Em suma, a agência vegetal não se limita aos seus princípios ativos, uma vez que, para serem eficazes, têm de agir em conjunto com a sua dimensão sonora e imagética, sua linguagem e seus cantos. O protocolo desenvolvido pelo Comando Matico, portanto, surgiu da premissa de que a Covid-19 não era somente uma condição biológica, mas também espiritual.
O que é uma planta? Organismo fotossintetizante, molécula, mercadoria, cantos, imagens, experiência onírica, espírito… O que a perspectiva indígena mostra é que não basta pensar as plantas somente a partir de suas características fitoquímicas ou morfológicas, isto é, desprovidas das relações que a constituem. Através da linguagem artística, o Comando Matico, em colaboração com o TAFA (Taller Ambulante de Formación Audiovisual) e a Associação RAO-MediCine, buscam explicitar as capacidades extra botânicas das plantas e as redes simbióticas que as sustentam, mostrando como o trabalho de cura é uma tarefa ecocosmológica de reorganização das relações mediadas pelas plantas. “Descobertas” e apropriadas pela botânica, transformadas em alcaloides sintéticos, as plantas regressam finalmente aos seus lugares de origem onde recuperam a sua antiga capacidade de interlocução. Neste movimento curto-circuitado de ida e volta, tradução, equivocação e apropriação, as plantas, de novo protagonistas, longe de se reduzirem a representações botânicas passivas e ressequidas de sentido, podem voltar a ser ouvidas, cantadas e sonhadas.
Karen Shiratori
Doutora em Antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ), é investigadora do projeto ECO (Universidade de Coimbra), do Centro de Estudos Ameríndios da USP e de Patrimoines locaux, environnement & globalisation. Co-organizou Vozes Vegetais (2020). Uma das editoras convidadas da edição especial Vegetalidades.
Emanuele Fabiano
Doutor em antropologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). É pós-doutorando na Universidade de Coimbra e membro do projeto ECO e do Laboratório de Antropologia Social (LAS).
Isadora Fonseca
Fotógrafa, graduada em Jornalismo pela FUMEC e pós-graduada em Arte Contemporânea pela Escola Guignard, UEMG. Publicou na Frieze Magazine, Folha de São Paulo, The Brazilian Report e National Geographic Brasil.
Como citar
SHIRATORI, Karen; FABIANO, Emanuele. Capacidades extra botânicas. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 148-158, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.