Carochas
na esplanada
Texto de Roberto Andrés
Aquarelas de Marco Antônio Mota
Vencedora do concurso para o plano da nova capital, a proposta de Lúcio Costa ficou conhecida como uma brincadeira. Com alguns croquis, um texto breve, lírico e cheio de ironias, sem nenhum desenho técnico ou detalhamento, o urbanista teria gasto 25 cruzeiros no material da proposta – e recebido 2 milhões como prêmio. Assim arrebatou o júri e construiu uma cidade, servindo-se de uma economia criativa digna dos grandes heróis brasileiros, herdeiros de Macunaíma.
James Holston, crítico das contradições e fracassos da cidade modernista, reconhece a disposição ao risco e à transformação embutida no projeto da capital. Originária de um gesto de invenção e malandragem, Brasília carregaria consigo um espírito capaz de suscitar a criação, a transformação radical, o salto para um futuro radiante. Seria um campo aberto para experimentações arquitetônicas, urbanas, educacionais, sociais.
Mas o Plano Piloto já nasceu congelado por legislações de Patrimônio que preservam as formas originais e eliminam a abertura para a invenção. Em nota recente, Holston reivindicou a “libertação do espírito de Brasília”, tristemente aprisionado entre regras obtusas de tombamento e especulação imobiliária voraz.
Já na década de 1970, Clarice Lispector descortinou a aura fantasmagórica de Brasília: paisagem da insônia, sem lugar para ratos, onde a alma não faz sombra no chão e cuja maior beleza são suas estátuas invisíveis. Em 2011, PISEAGRAMA 02 desvelou a profunda conexão entre o agronegócio e a modernidade tardia, dando materialidade à presença espectral da soja no eixo monumental do país. Servindo-se dessas experiências pioneiras, esse teste vocacional em múltipla escolha declara liberto o espírito da nossa cinquentenária Brasília.
( a ) Commodities
Com o país cada vez mais voltado para o superávit da balança comercial, e uma vez que a agroindústria venceu a queda de braço com a ecologia, não há mais espaço para desperdício com esplanadas ermas, áridas e perigosas.
É fato que elas sempre serviram mais à contemplação que ao uso. Criando vazios inabitáveis entre edifícios esculturais, com poucas árvores, um bocado de grama e outro de terra, sempre demandaram uma manutenção custosa, ofereceram poucos benefícios públicos e nenhum retorno financeiro.
Chegou a hora de equilibrar as contas do eixo monumental. Em 50 anos, foram necessários 50.000.000.000 litros de água e mais de 100.000 jardineiros para manter as esplanadas razoavelmente próximas do projeto original (carro, grana e grama bacana). Trata-se de um poço de déficit do Estado Brasileiro, que as gestões eficientes do século 21 trataram de exterminar.
A plantação extensiva de soja manterá o aspecto homogêneo do conjunto, que ganha apenas um pouco de cor, textura e altura. Os tratores serão guardados nos estacionamentos do Ministério da Agricultura, sem prejuízo ao trânsito no centro da cidade. A impossibilidade dos motoristas verem o conjunto arquitetônico, ponto polêmico entre técnicos e especialistas, foi tratada positivamente, já que a promenade arquitetônica motorizada era tão deslumbrante que frequentemente causava acidentes.
Oscar Niemeyer, no auge dos seus 103 anos, apoia o projeto e acredita que ele não fere os princípios norteadores do projeto original: “Estou seguro que meus colegas Lúcio Costa e Juscelino Kubitschek estariam em pleno acordo com o novo paisagismo da Capital, dentro do projeto mais amplo de consolidar o país como colhedor de bananas”.
O governo lançará em breve licitação para a exploração agrícola da esplanada dos ministérios. Os valores serão sigilosos, a fim de evitar que se formem cartéis malignos entre percevejos e deputados da bancada ruralista.
( b ) Tênis
Em uma cidade onde os sem carro debatem-se entre o pouco transporte público e a falta de caminhos factíveis a pé (e criam passagens tortuosas no mato, sob o sol esturricante, e arriscam a vida ao atravessarem as grandes avenidas sem faixas de pedestres), não se pode estar a tratar de calçados.
De fato não. Quando afirmava ser Brasília uma quadra de tênis, Clarice Lispector deveria referir-se (além da terra vermelha) ao mecanicismo da cidade, à sua relação produtivista com tempo e espaço, ao seu relógio preciso e marcado. Aqui, bate-se o ponto todo o tempo: no trabalho, em casa, no supermercado, no clube, no cinema.
Pode-se imaginar sua perplexidade, nos idos de 70, em visitar essa cidade recém-construída como um brinquedo funcional, mecanizado e previsível, com todas as atividades perfeitamente organizadas no espaço. Mais que dinheiro, tempo é ponto. A cada ação, um ponto positivo ou negativo e, assim, constrói-se o placar da vida.
Brasília é um sonho do progresso e do planejamento. Seria a cidade exaustivamente funcional, conhecida pelos comportamentos repetitivos e o cheiro de creme dental. Cinquenta anos depois, não há que se reclamar o fracasso da empreitada, as linhas arquitetônicas que se corroem na decadência do concreto. É que, no Brasil, o calor, o jeitinho, o coronelismo e o pagode acabam por amolecer as rédeas da razão estrita.
Foi assim que, para Brasília cumprir sua vocação produtivista, acatou-se ao pé da letra a sugestão da escritora. A profusão de quadras de tênis em todo e qualquer espaço vazio da cidade cria uma frequência de produção implacável que elimina de vez qualquer possibilidade de respiração fora dela. Se em Brasília não pode nascer samba, é o quicar das bolinhas que dá a cadência industrial do ritmo de vida.
( c ) Aeroporto
A forma de avião, para ser vista do avião, foi já no início maculada pelas primeiras cidades-satélites. Brasília, do alto, tornou-se um avião com um puxadinho. Eis que o puxadinho ficou maior que o próprio avião, conformando uma espécie de antiavião, uma imagem que, de tão pesada, pode tudo, menos se sustentar no ar.
Mas a vocação para aeroporto, também deflagrada pelos olhos mediúnicos de Clarice Lispector, funcionou de vento em popa. Residindo na cidade de terça a quinta, uma penca de deputados, senadores, chefes de gabinete, assessores, jornalistas, prefeitos, candidatos, coronéis, cabos eleitorais, candongueiros e puxa-sacos aterrissam e decolam todo o tempo. Mais que dormitório, a cidade é um grande saguão de aeroporto.
Os vidros, os edifícios brancos, a homogeneidade do conjunto, os vendedores de souvenires, tudo tão genérico – só falta ofree shop. Ao andar na cidade, ouvem-se os alto-falantes anunciando fria e cortesmente a partida dos aviões. Os carros, com trajetos repetitivos e afoitos, transportam as bagagens. Os engravatados vão e vêm.
Para facilitar a vida dessa turma passageira, o aeroporto foi instalado na área central, onde não falta espaço. As pistas estão no gramado do eixo monumental e as companhias aéreas, nos saguões dos ministérios, dos palácios, do senado e do congresso. Faz-se check-in ao lado do gabinete, e a porta da rua já é o portão de embarque.
Com a economia de tempo nas idas e vindas ao aeroporto, o turno no Legislativo passou a se concentrar nas quartas-feiras. A maior vantagem é que os petranheiros não correm nenhum risco de encontrar pessoas comuns, já que não circulam mais pela cidade. Consolidou-se o projeto esconde-político de Brasília: se já era difícil abordá-los nas avenidas, a cem por hora e por trás do vidro fumê, agora eles simplesmente saem da toca direto para o avião.
Da janelinha, na quarta à tarde, pede-se ao último que sair que apague a luz.
( d ) Zoológico
51 anos passaram e o vento virou. Brasília sacrificará seus filhos pródigos para redimir-se de sua história antipública. O eixo monumental não tem soja, nem quadras de tênis, nem pistas de pouso, nem grama: ali foram instalados, em cubos de vidro sob o sol escaldante, os gabinetes de ministros, senadores, intrujões, caramujos, araras, marandubas, andrôminas, carochas e até da Presidenta. Às claras, com telhado de vidro, ficam à vista e ao alcance daqueles que pagam seus salários. Desfrutam do calor árido da esplanada, o que sempre foi privilégio de poucos e teimosos passantes, vendedores ambulantes, manifestantes melancólicos, índios ou sem-terra.
As duas metades da laranja viraram equipamentos de lazer. A que abre para cima, anfiteatro arborizado, a outra, tobogã de 360 graus. O formigueiro onde se escondiam os políticos tornou-se um shopping popular (camelódromo) dos mais frequentados. De um lado, os ministérios são habitações populares e, do outro, abrigos para turistas, como casas de romeiros. Por falar em turistas, eles não param de chegar, dado o sucesso colossal do atrativo (responsável pela alta audiência do Big Brother Brasília 23) “ver os políticos trabalhando, ao vivo e a cores”.
Clarice Lispector também sentiu não haver zoológico em Brasília. Perguntava das girafas. Pena ela não ter vivido para ver a cidade tornar-se um grande safári, onde os turistas passeiam em ônibus de dois andares, sem medo de encontrar à solta uma alcateia, ou uma vara, de pemedebistas.
Marco Antônio Mota
Artista convidado a produzir aquarelas a partir do texto.
Como citar
ANDRÉS, Roberto; MOTA, Marco Antônio. Carochas na esplanada. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 3, p. 08-13, jul. 2011.