CARROCEIROS
Nian Pissolati
O som da engrenagem em movimento não é maquínico nem eletrônico. Não é estridente, tampouco ensurdecedor. É cadenciado, seu volume é restrito e insignificante. É um canto metálico, cinza, de correntes e parafusos em movimento. Ele vem do homem, do animal e da carroça no asfalto da cidade.
Nos dias de hoje, em diferentes cidades brasileiras, os carroceiros transportam entulhos de diversas qualidades – resíduos da construção civil, podas de árvores, restos de alimentos, sucatas e ferro-velho. Por vezes carregam móveis, objetos e realizam alguns serviços de mudança.
Contudo, o ofício dos carroceiros no Brasil remonta às tropas do período de colonização e sempre esteve ligado ao constante contato e troca, tanto comercial como cultural, entre pessoas e regiões. Pelas rotas comerciais, as carroças transportavam um sem-número de produtos, contribuindo para a prestação de variados serviços – de carregamento de tijolos para construção à venda de artesanato, de fretes de café para exportação à comercialização de mercadorias importadas que chegavam nos portos.
A construção de Belo Horizonte não teria sido possível sem os carroceiros. A parafernália necessária para a estruturação da cidade que chegava via linha de trem era distribuída em grande parte pelas carroças. Mas, se elas foram importantes no processo de organização urbana, a própria lógica de desenvolvimento das cidades acabou por tornar o lugar dos carroceiros cada vez mais marginal. Como todos os serviços tachados de informais, a atividade é facilmente qualificada como vadiagem e naturalmente estigmatizada.
Atualmente, o número de carroceiros cadastrados no município é próximo de 3 mil, mas sabe-se que, somados os não cadastrados, chega-se a pelo menos 11 mil. Eles são os principais responsáveis pelo transporte e destinação dos pequenos resíduos produzidos diariamente na cidade.
Ciclo
O bota-fora nunca é o mesmo. A cada hora, a cada dia, a paisagem se transforma. Ou poderia descrever-se exatamente o oposto. O bota-fora é sempre o mesmo: montes de lixo espalhados pelo terreno, caçambas cheias, engolidas por caminhões que rumam em direção ao aterro, enquanto outros derramam as caçambas vazias que, em algumas horas, voltarão a sair dali. É um ciclo constante, lento, mas incessante, de encher-esvaziar, juntar-levar, carregar-descarregar, sujar-limpar.
O nome bota-fora, cunhado popularmente, simboliza bem o significado do lugar para a maioria das pessoas: destino último dos resíduos provenientes da dinâmica da cidade. É ali, em meio às caçambas que não param de sair e chegar, que os carroceiros devem depositar seus carregamentos. Contudo, ao contrário de um fim, esses entulhos têm, ou deveriam ter, um destino diverso.
Em 1993, a prefeitura, por meio da SLU, criou o Programa de Reciclagem de Entulho da Construção Civil de Belo Horizonte.Além de progressivamente diminuir o despejo em terrenos irregulares e amenizar os problemas ambientais resultantes, o objetivo foi gerar material reciclado para uso em obras públicas, como bases de vias e calçadas, além de blocos e de peças para pavimentação.
O processo de criação dos bota-fora foi gradativo e atualmente existem 34 unidades em funcionamento na cidade. Ali o material deve ser separado e encaminhado para uma das três Estações de Reciclagem de Entulho de Belo Horizonte. Nessas unidades os dejetos da construção civil são transformados, como ocorre com a brita e a areia, que podem virar elementos construtivos sem função estrutural.
O funcionamento do ciclo depende dos agentes que recolhem e transportam o entulho produzido diariamente na cidade às URPVs (Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes), como também são conhecidos os bota-fora. Assim, em 1997, a prefeitura, por meio da SLU e em parceria com a UFMG, criou a terceira peça na lógica do processo: o Programa Carroceiros. Por um decreto municipal, o antigo inimigo ambiental e social era transformado no agente responsável pela destinação correta do entulho.
De acordo com uma pesquisa realizada na Escola de Veterinária da UFMG, em 2004, os bota-fora recebiam por dia uma média de 2.000 toneladas de resíduos, sendo que 68% eram trazidos por carroceiros, 26% por automóveis e 6% em carrinhos de mão. Além de solucionar a coleta e o transporte do entulho, a prefeitura conseguia realizar uma economia significativa. Segundo dados levantados pelo próprio Programa, a retirada dos entulhos nos bota-fora custa à prefeitura uma média de 4 dólares a tonelada, enquanto em locais clandestinos o serviço chega a 15 dólares a tonelada.
Além das lógicas econômica e administrativa, o Programa Carroceiros tem uma tônica de mobilização social. Apesar dos esforços permanentes de seus coordenadores e de algumas pessoas envolvidas com o projeto, essa área de atuação tem perdido força gradativamente. Desde o início dos anos 2000, sucessivos mandatos tentam conduzir BH pela lógica das chamadas cidades-empresa. Nesse contexto, são insistentes as tentativas por parte da prefeitura de inserção de uma série de ofícios à categoria prematura de artigo de museu, como se a existência deles só pudesse constar no imaginário de uma cidade de outro tempo.
Carregamento
Há um ritmo cíclico nas coisas, uma realidade mais ou menos vertiginosa de transformação. Essa máxima que aprendemos sobre a natureza também se aplica à cidade. Também nela quase tudo pode ser reaproveitado ou transformado.
No contexto urbano, todos aqueles que têm o lixo como material de trabalho e fonte de renda estão em contato com aquilo que de alguma maneira foi considerado inútil, velho, sujo ou perigoso, e que, para a maioria das pessoas, desaparece ao entrar num saco azul ou numa caçamba.
Para os carroceiros, trata-se do início de um processo. São inúmeros os alimentos que chegam ao bota-fora e são compartilhados entre eles e seus animais: frutas, verduras, pães, biscoitos, sucos. Há também uma série de objetos que serão reutilizados ou que ganharão novos usos: um pedaço de ferro que servirá de amolador para as ferramentas de manutenção do arreio e da carroça; madeiras que se transformarão no telhado de uma casa temporária num terreno vazio; bolsas que serão presentes para as namoradas; sofás que serão desmembrados para virar assentos de carroça; centenas de eletrodomésticos que chegam ainda funcionando ou que, estragados, guardam em si a grande joia dos lixões, o cobre. As podas de árvores, quando devidamente separadas, também poderão ser reutilizadas.
As pequenas invenções cotidianas não acontecem só no bota-fora. A cidade guarda em si uma série de objetos vivos, diariamente achados e transformados. Esse ciclo natural das coisas – um processo muitas vezes esquecido nos espaços urbanos – define a relação dos carroceiros com a cidade.
Taíde, fazedor de carroça
A velocidade dos carros e o fluxo constante nas rodovias, vias e avenidas, que marcam o compasso da Região Metropolitana de Belo Horizonte, não estão aqui. Na periferia de Betim as casas sem reboco e as ruas recém-asfaltadas convivem com outros ritmos. Em uma delas está a oficina do Taíde, onde foram construídas muitas das carroças que circulam em Belo Horizonte. Mais do que local de trabalho, o lugar é uma espécie de refúgio para seu dono e ponto de encontro com amigos. Ali, sossegado e concentrado na feitura dos veículos, Taíde passa todos os seus dias e algumas noites. Além das ferramentas e da desordem organizada típica das oficinas, o lugar tem uma pequena casa que funciona como depósito de materiais e local de descanso. Há ainda um pequeno curral, onde seu amigo Geraldo guarda um cavalo.
Os cantos do terreno abrigam as peças, separadas por tipos e funções. Numa sala estão os varões, extensões de madeira comprida, que, colocadas à frente da carroça, ligam o veículo ao animal. As outras peças de madeira, já cortadas em tamanhos específicos, estão em outra área coberta do terreno: esqueleto, corrimão, ripa lateral, banco, tampa traseira eassoalhos. Essas peças, montadas juntas, formam o corpo da carroça.
Próximo à marcenaria está a serralheria, que abriga materiais e ferramentas para construção das ferragens da carroça: eixo, triângulo, molas, jumelo, alavanca de freio, estribo. Por fim, uma pequena sala guarda dezenas de pneus, de várias marcas e épocas. Quase todo o processo de fabricação é realizado por Taíde. Ele só não participa diretamente do corte de determinadas peças de madeira, da filetagem de algumas ferragens e das pinturas de ornamentação.
Taíde aprendeu sozinho a fazer carroças. “As primeiras carroças que fiz eu tirei medidas de outras. Eu mesmo peguei e fui fazendo, ninguém me ensinou. Uma vez eu levei umas molas para um senhor fazer. Ele, já velho de idade, fez as molas, mas ficou uma maior que a outra. Aí, para arrumar, tinha que pagar de novo. Eu falei, ‘não, eu mesmo vou fazer’. Foi assim que comecei”.Elenão sabe ao certo quando passou a dedicar-se exclusivamente à fabricação dos veículos. Há uns 14 anos ele sofreu um acidente numa carroça, quebrou o braço e largou de vez o ofício de pedreiro. Com o braço imobilizado por muito tempo, os filhos, então crianças, e a mulher ajudaram-no a terminar 7 carroças já encomendadas. Desde então, foi ganhando segurança e autonomia para criações e adaptações, e não parou mais. “As carroças minhas, todas elas, são pintadas. A maioria do pessoal já fala comigo, ‘a cor que você fizer é essa mesmo, porque as suas carroças são todas bonitas’. O que mais tem na praça é verde, vermelho e amarelo. Azul tem um bocado bom também. Agora, charrete é só vermelho, alumínio ou então preto”.
Taíde leva uma semana para construir uma carroça. Para instalar o freio, o tempo aumenta em mais um ou dois dias. A maioria de suas vendas é a prazo. “Hoje em dia, uma carroça financiada sai a R$3.250, com freio, pneu, tudo arrumadinho. A charrete é mais cara. A última que eu vendi foi R$4.500. E ela foi para perto do Padre Eustáquio. De Venda Nova pra cá… Pampulha, São Benedito… tudo tem carroça minha”.
Em Belo Horizonte, são raros os fazedores de carroça. Conta-se do Zé da Égua, que trabalha na região do Padre Eustáquio, e de Jésus, na Pampulha. No São Geraldo, Paulo, carroceiro e motorista de caminhão, fabrica algumas esporadicamente.“As coisas vêm tudo acabando… Mas essa é uma tradição que eu acho difícil acabar. Porque tem pessoas que hoje não tão querendo nada difícil, mas tem muita gente que continua gostando das coisas…”, diz o fazedor de carroça, enquanto pinta de azul uma peça de madeira.
Cenas num ferro-velho
Os golpes de machado são precisos. A cada nova investida o retângulo enferrujado vai se desmanchando. Isopor, gás, plástico, fios e metais vão saindo da carcaça de um freezer velho de bebidas. Em poucos minutos, todo aquele corpo pesado, há pouco transportado por Daniel e pela égua Serena na carroça, reduz-se a estilhaços. As mãos verdes dos dois homens que assumiram a empreitada são um indício de que acharam o que queriam, cobre. Por fim, separam ainda o motor, último pedaço de valor. Entre uma profusão de objetos cinza, verde e ferrugem, Daniel e os ajudantes caminham até o fundo do ferro-velho. Uma balança eletrônica registra o peso de 15 quilos para o motor e mais alguns outros para os fios retorcidos de cobre. O dono do estabelecimento anota os pesos e, com os dedos na calculadora, anuncia: 65 reais. Daniel recebe o dinheiro, separa 35 reais e entrega o resto aos dois rapazes.
Dentre as tantas relações que permeiam a vida do carroceiro, a rotina do ferro-velho é uma constante. A pouco mais de um quilômetro do bota-fora da Andradas, o estabelecimento é o destino certo não só dos carroceiros, mas de muitos carrinheiros da região e de pessoas que buscam ganhar algum dinheiro com objetos velhos ou quinquilharias que já não tenham serventia em casa.
Um dia antes, Daniel havia recolhido uma série de entulhos da casa de seu Pedro, cliente antigo dele e de seu pai. Recebera um pagamento justo pelas três viagens, mas seguramente poderia ter sido um pouco maior. Para compensar, combinaram que no outro dia Daniel voltaria para pegar o que havia sobrado: o freezer antigo e 15 chapas de metal, que em qualquer depósito seriam vendidas como rufos. O novo serviço, assim, transformava-se numa complementação do pagamento.
Algo parecido aconteceria poucos dias depois. Três homens na carroça, passando por pequenas ruas de General Carneiro, carregavam uma banheira antiga, com mais de 100 quilos de ferro e quase um metro e meio de cumprimento. O seu destino era o mesmo ferro-velho. O carregamento era uma espécie de agradecimento a seu Luís, dono da carroça, que, na semana anterior, havia vendido alguns porcos de seu Eulálio.
Há ainda os meninos do bota-fora, uma turma de uns 10 garotos, espécie de capitães da lata. De tempos em tempos, vários deles sobem com agilidade nas caçambas e, em poucos minutos, suspendem os braços – manchados de branco e até então mergulhados em restos de tijolos, computadores e cal –, trazendo à tona fios e mais fios de eletrônicos. O destino de tudo que juntam é o mesmo ferro-velho.
Capim
No período de chuvas, mais ou menos entre novembro e abril, é comum avistar carroceiros cortando capim em terrenos desocupados ou em alguma brecha de terra da cidade. “Hoje em dia está mais difícil, porque a prefeitura manda capinar e tem cada vez menos lotes vagos na cidade. Mas normalmente a gente pega nesses terrenos ou na beira do rio, antes que eles cortem”, diz Olavo, numa de nossas andanças.
Existe uma variedade de espécies de capim na cidade, cada uma com sua particularidade. “Capim, tem aqueles que o animal come. Por exemplo, de braquiária cavalo não gosta de jeito nenhum. Só vaca que come, porque é um capim muito duro, e vaca rumina, cavalo não. E é também um capim amargo, e cavalo gosta mais de coisa adocicada, tanto é que ele gosta de cana. Para alimentação, a gente usa o angola, lapiê, doce… O que mais dá na cidade é o colonhão e a caninha doce. Aquele do lado do Arrudas é colonhão. Tem dois tipos de colonhão, o colonhão folha larga e o colonhão navalha. Todos os dois o animal come. Todas essas variedades, só de ver eu sei qual é”.
O capim é um item essencial na alimentação dos animais, único que cresce na cidade e que ainda pode ser coletado sem custos. No período de chuvas, os carroceiros saem de duas a três vezes por semana para a coleta. Quando o corte não acontece em lotes públicos, a prática costuma funcionar por um sistema de trocas. O carroceiro corta o capim para seu animal, sem gastos financeiros, e o proprietário do lote tem seu terreno limpo, também gratuitamente. Os carroceiros estabelecem, assim, uma rede de relações na cidade, mapeada de acordo com a disponibilidade de capim. “A gente tem uns lugares na cidade, que a gente descobre… Até no fundo de umas casas pedimos pra cortar. É bom pra eles e pra gente. Tem várias casas que eu posso entrar e cortar capim, sem o dono estar lá, porque ele já sabe que sou eu”, explica Olavo.
“Agora em abril, por exemplo, você acha capim em muitos lugares. Mas, de junho em diante, quando chega a seca mesmo, complica”, diz. Quando o capim é escasso e os preços dos alimentos sobem, um animal chega a consumir, em um mês, o equivalente a 350 ou 400 reais. Isso corresponde a 300 quilos de farelo de trigo, 400 quilos de ração e 10 pacotes de feno. Para quem vive de uma renda mensal de aproximadamente 1.500 reais, são gastos significativos. “Quando está na seca mesmo, há muitos meses sem chover, o recurso é procurar todo lugar que seja brejado, porque aí tem capim o ano inteiro. Por exemplo, no Ana Lúcia, que é uma parte baixa da região, é muito úmido, então o ano inteiro a gente acha pelo menos umas pontinhas por lá. E tem uns outros recursos… igual o capim meloso, que é mais resistente ao tempo. Onde tem dele e ainda não foi cortado, a gente corta”.
Nian Pissolati
Artista, desenvolve pesquisa de mestrado com os carroceiros da região Leste de Belo Horizonte.
Como citar
PISSOLATI, Nian. Carroceiros. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 5, p. 55-57, jan. 2013.