
CASA
POTENCIAL
Texto de Ernesto Oroza
Fotografia de Roberto Andrés
Cuba é um dos países da América Latina com maiores índices de população vivendo em áreas urbanas. Havana abriga, de forma crescente, uma porcentagem elevada dessa população, mas, paradoxalmente, há um baixo índice de produção de novas moradias em relação ao crescimento demográfico. Onde e como a cidade abriga seus mais de dois milhões de habitantes?
Por mais de três décadas, os habitantes de Havana vêm intervindo, com seus próprios recursos, nos espaços públicos e privados para adaptá-los às novas necessidades individuais e familiares. As transformações mais comuns incluem a criação de novos pavimentos, fechamentos, divisórias, acréscimos e a invasão e ocupação de áreas comuns e de todo e qualquer espaço vazio. Com essas intervenções, aparecem novos acessos, janelas, aberturas, varandas, instalações de água e eletricidade, além de um repertório infinito de alterações, como a colocação de cercas que definam e protejam os novos limites de propriedade ou a conversão de espaços domésticos em bicicletários, cafeterias ou currais para animais.
Dois aspectos fundamentais têm radicalizado esse processo. Por um lado, a casa é praticamente a única fonte de recursos para sua própria transformação. O teorema arquitetônico: casa mais matéria-prima converteu a família numa célula produtiva no centro de um processo contínuo de transformação da cidade que tem sua origem no próprio lar. As intervenções têm estendido consideravelmente a superfície habitável de Havana e isso ocorre sem um significativo transbordamento do perímetro urbano, de forma que se pode dizer que a cidade cresce “para dentro”.
O segundo fato distintivo desse processo é a necessidade, com sua função estrutural na geração e regulação das transformações. Associo essas mudanças às produções naturais conhecidas como estalactites e estalagmites, cujas formas são resultado do movimento fluído dos materiais atraídos pela força da gravidade. Nessa arquitetura, o movimento irreprimível dos materiais compõe também um tecido de linhas e vazios, uma superposição de capas e estruturas, que se apoiam umas sobre as outras, como nos processos naturais. Esse movimento fluído responde a uma força tão poderosa e inevitável quanto à gravidade: a força da necessidade.
A urgência dá um álibi fundamental ao indivíduo. Cada impulso sexual ou fisiológico, cada nascimento e morte provocam o aparecimento de muros, pilares, escadas, novas janelas ou instalações. As casas modificadas em Havana expressam essa relação numa arquitetura da necessidade.
Esforço próprio é o termo utilizado pelos órgãos oficiais cubanos para nomearem as construções e transformações realizadas pelos cidadãos que buscam resolver as necessidades crescentes. Na última década, esses “esforços” se tornaram um fenômeno massivo com ampla repercussão demográfica, econômica, social e expressiva.
Com o programa das Microbrigadas, organizações voluntárias com o objetivo de construir, conservar e reformar habitações ou qualquer outra construção, o Estado transferiu à população a responsabilidade pela criação de seu habitat. Entretanto, como o modelo participativo direcionava energias pessoais em benefício da coletividade, o programa fracassou, transformando-se num processo silencioso e escorregadio que impulsiona cada indivíduo e sua família a buscarem benefícios próprios, com seus próprios recursos e responsabilidades.
Chamo de “casa potencial” um estado latente de consciência. Quando a urgência persiste, a casa potencial surge como uma maneira permanente de se ver o mundo, como uma perspectiva radical e pragmática: tudo será casa. E não se trata unicamente de um ideal, é astúcia, quase paranoica, para imaginar e coletar pela cidade tijolos usados, um tanto de cimento, possíveis janelas ou escadas potenciais. É preciso lucidez para entender quando é o momento econômico ou jurídico exato para construir a laje, ainda que a intuição diga que as paredes só virão dois anos depois.
A habitação potencial existe desde sempre e, por isso, há tantas casas acumulando tijolos debaixo das camas e atrás do sofá. Há também as que, antes de tudo – e talvez por muito tempo –, somente existiam como uma parede ou, com sorte, como um banheiro.
A casa potencial sobrevive no contínuo de pequenos esforços construtivos que, ao longo da vida, engendram relações entre as necessidades e as acumulações, de materiais, tecnologias e ideias.
Havana se regenera a cada dia num processo que responde a gestos pessoais cotidianos múltiplos e abarca a cidade toda. A soma dos esforços das famílias para melhorarem suas condições de vida a partir de seus próprios recursos constitui uma forma especial de reurbanização e adaptação da cidade às cambiantes necessidades e possibilidades econômicas de seus moradores.
O urbanismo é uma das formas pelas quais o poder imagina, projeta e transforma a cidade. Em Havana, da forma como os habitantes, em família ou individualmente, imaginam, transformam e usam a cidade, prevalece a capacidade dos habitantes de reconhecer demandas e encontrar soluções imediatas que as satisfaçam, sem esperar e nem aceitar os ritmos ou pressupostos do urbanismo profissional. O urbanismo aqui é uma tarefa doméstica da família, como lavar a roupa ou procriar, e a cidade se produz de acordo com os ritmos biológicos e econômicos do lar. O resultado é uma cidade construída sobre as múltiplas – ainda que individuais – interpretações que os habitantes fazem de sua realidade e, posteriormente, pelo conjunto das ações cotidianas.
Se nesta arquitetura a casa é um diagrama da história e da vida presente familiar, a cidade emerge, consequentemente, como tradução do acontecimento coletivo da sociedade, fato que rechaça o papel figurativo e alienado da arquitetura profissional. No lugar dessa arquitetura, predominam práticas descentralizadas, desobedientes e pragmáticas.
A consciência de que há necessidade de água hoje e pelo resto da vida determina soluções com diversas temporalidades: uma imediata, quiçá provisória, e outra progressiva, possivelmente permanente. As mentalidades do imediato/provisório e o progressivo/permanente se combinam, criando sistemas paralelos, instalações acabadas e inacabadas, invisíveis e visíveis, legais e ilegais, caras e baratas.
Assim, os indivíduos convertem suas casas num sistemático meio de expressão e sobrevivência. O pragmatismo, a astúcia para que se evitem a pobreza e a picardia no trato com o espaço e os materiais convertem a casa numa declaração da necessidade manifesta.
Vivia com a mãe num espaço tão pequeno que não poderia ser considerado, legalmente, uma casa. Ampliou, construiu uma cozinha e melhorou o banheiro. Modificou a categoria do espaço e obteve um título de propriedade. Conseguiu uma licença para ampliar ainda mais a casa no terraço pensando na independência. Ao fazê-lo, teve que construir uma escada interior e começar os trâmites para o desmembramento da propriedade. A aparição de uma escada exterior antes do tempo seria considerada uma infração grave e poderia ser multado ou até mesmo perder o direito de propriedade que havia conseguido. Interpretou que a descrição da habitação e de suas partes depende do código cultural que compartilhamos e que a aplicação da lei depende desse código.
Então, o que é uma escada? Como descrevê-la? Seria possível construir diante da porta um objeto diverso do que se convencionou reconhecer como uma escada, mas que seja capaz de funcionar como tal? Algo como… materiais guardados de tal maneira que daria para subir e descer por eles? Um objeto de Ettore Sottsass, todos os livros de Samuel Feijóo, uma escultura de Franz West ou qualquer outra coisa?
Decidiu por um atalho conceitual: começou a construir a escada e esperou ser multado, ganhou tempo, a lei lhe exigiu parar imediatamente a construção do objeto até que formalizado o desmembramento. Passarão anos. Enquanto isso, usará a escada inacabada. Afinal, o que é uma escada acabada?
Ernesto Oroza
Artista, vive e trabalha em Aventura, Flórida.
Como citar
OROZA, Ernesto. Casa potencial. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-18, set. 2011.
Tradução de Wellington Cançado.