COMIDA PÚBLICA
Texto de Neide Rigo em conversa com Bianca Chizzolini e Karen Shiratori
Natureza-morta, série fotográfica de Ines Linke e Louise Ganz (thislandyourland)
As PANCs, por sugerirem outra relação com o território, desafiam a lógica da comida como mercadoria – e desafiam as pessoas que só sabem cozinhar aquilo que é comprado.
Meus pais e avós cresceram na roça, lugar de onde brotou, desde menina, minha curiosidade pela comida, especialmente pelas plantas de comer. Quando visitava meus avós, antes mesmo de entrar em casa, ia para o mato ver o que tinha nascido nos carreadores de café: beldroega, major gomes, serralha, almeirão roxo. Já na periferia de São Paulo, cidade onde nasci e morei, as vizinhas tinham coisas plantadas no quintal – e que hoje chamamos PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais) –, como orelha de padre e taioba. Então, foi no contato com esses jardins periféricos, com a roça da família e nas minhas andanças de pesquisa que fui formando aos poucos meu repertório alimentar, e que ainda sigo aprimorando. Atenta ao que as pessoas comem, como preparam seu alimento e quando o fazem, cultivo um interesse mais antropológico que nutricional pelas plantas comestíveis.
Outro momento importante de aprendizado, experimentação e divulgação foi o das pesquisas que realizei para a coluna semanal que escrevia para uma revista de grande circulação. Cada coluna era dedicada a um ingrediente e então, ao longo dos mil números que escrevi, ao longo de 20 anos, pude conhecer muitas plantas, mas várias delas destoavam da linha editorial da revista. Em busca de outros espaços de escrita, criei em 2006 um blog no qual poderia falar de plantas comestíveis negligenciadas, e também de coisas que minha mãe me contava e de coisas que eu mesma conhecia. Pude reunir informações perdidas ou pouco valorizadas a respeito dessas espécies. Se, a princípio, achava que ninguém iria conhecer esses ingredientes menos comuns, logo passei a receber comentários de leitores saudosos de plantas e comidas da infância, memórias transmitidas pelas mães e avós.
Certa vez, escrevi sobre o jiquiri, uma erva que minha mãe comia quando criança. De repente, muitos me escreveram contando que suas mães antigamente também comiam jiquiri, mas que a planta parecia ter desaparecido porque nunca mais tinham ouvido falar dela. Duas pessoas foram até o Paraná, na cidade onde minha mãe morava, buscar mudas de jiquiri. Outra planta que, para mim, é carregada de memórias é a araruta, porque minha avó carregava um saco dessa planta sempre que mudava de sítio. O provimento da família era um saco de araruta levado nas costas para alimentar a família no café da manhã com biscoitos e mingau, isso porque o trigo era artigo raro. Do rizoma da araruta Maranta arundinacea, da família das marantáceas, se extrai uma fécula finíssima que, muitas vezes, é confundida com a da mandioca. Só que a araruta resulta numa goma menos visguenta, mais macia e deixa os biscoitos mais crocantes. Às vezes, especialmente no inverno, encontro ararutas no bairro da Liberdade, em São Paulo. Os vendedores dizem que é batata chinesa, um nome genérico para várias raízes e tubérculos nos mercados asiáticos.
Já em outro trabalho de pesquisa, na cidade de Lábrea, município do sul do estado do Amazonas, à beira do rio Purus, realizei uma oficina de formação de merendeiras sobre comida e biodiversidade local. Para encontros como esse, voltados para a alimentação escolar, nunca levo utensílios nem ingredientes de minha cidade. Mais ainda, eu nunca levo a oficina pronta, o que é difícil para os organizadores dos projetos, que ficam inseguros sem saber exatamente o que vai acontecer… Assim, proponho usar os utensílios e os ingredientes locais, pensando em valorizar a produção regional, resgatar hábitos e culturas alimentares que contribuem para fortalecer as comunidades tradicionais e diversificar a alimentação nas escolas. Quanto aos ingredientes, uso os que forem da época, além daqueles que podem ser coletados nos quintais e roças. Reunidas todas essas plantas, fazemos a montagem de uma mesa farta, diversa e colorida que, muitas vezes, surpreende os participantes que são moradores da região.
Numa dessas ocasiões, em Acrelândia, no estado do Acre, os integrantes da oficina custaram a reconhecer que a abundância sobre a mesa vinha de seus quintais. Os moradores compravam frutas refrigeradas no mercado – maçã, pera e uva, porque era o que tinha nos mercados – e ignoravam as variedades dos jardins locais; o consumo de temperos prontos, confirmando uma intuição que eu tinha nessas atividades, substituía, por exemplo, o urucum e outros temperos naturais.
No Mercado Municipal de Lábrea, encontrei um tempero muito comum por lá, o arubé, sendo vendido em bancas junto com verduras, feijão da praia, pimentas e tucupi. O arubé de lá é um molho fluido, feito com a macaxeira pubada à qual se acrescentam pimenta-de-cheiro e pimentas ardósias, como são chamadas as pimentas ardidas, presença obrigatória em toda mesa para acompanhar peixes assados na brasa ou fritos. Minha primeira viagem para a Amazônia foi à Acrelândia e, embora eu tenha pesquisado muito sobre o lugar e os ingredientes amazônicos, quando cheguei lá era totalmente diferente. Isso porque Acrelândia também é povoada por pessoas do Sul e do Nordeste, então os hábitos alimentares e os ingredientes que as pessoas têm em seus quintais são distintos daqueles que eu imaginava. Era outra imagem da Amazônia. Na época do ano em que eu fui, quase não havia castanha. Em compensação, os quintais estavam cheios de caju, carambola e tamarindo!
Em outra oficina, realizada no sertão da Bahia, encontrei uma diversidade imensa, apesar de a Caatinga ser encarada como um bioma pobre, de escassez alimentar. Assim, ao reunir os alimentos da região, cujo conhecimento é negligenciado com frequência pelas gerações mais novas, que desconhecem muitas plantas comestíveis e perderam a cultura alimentar dos mais velhos, saltava aos olhos a grande biodiversidade. Uma planta do sertão da Caatinga, por exemplo, é a macambira, cujas folhas estão cheias de espinhos curvados. São muitas as armadilhas que defendem esse bioma frágil: são caboclos ou marimbondos raivosos que constroem suas colmeias nas forquilhas em pés de amburana e picam doído; as folhas espinhosas e peçonhentas da favela, com seu veneno que arde, coça e queima quando nos roça a pele; os espinhos grandes do mandacaru, que podem atravessar pés calçados; as agulhas invisíveis e certeiras de palmas, palmatórias e cachacubris; os pelos urticantes do cansanção e, finalmente, os maciços de macambira. A macambira tem um agravante: a intervalos irregulares os espinhos resolvem mudar a direção da curvatura, formando verdadeiras garras traiçoeiras. Se, por acaso, você se enroscar nos espinhos da macambira, solta-se de um, mas não escapa do outro. Quanto mais tentar se desvencilhar se orientando pela direção dos espinhos, mais aqueles contrários se afundam na sua carne, rasgando sem dó. Dizem que na guerra de Canudos, os soldados do exército eram atraídos pela tropa de Conselheiro para as moitas de macambira para que ali ficassem enganchados. É tão difícil escapar das unhas da macambira que gente ruim, falsa e sem piedade também recebe o apelido de “Macambira”. A macambira é também sinônimo de resistência, resiliência e sustento. O mocó de macambira é o broto dessa bromélia típica da Caatinga, de nome de batismo Bromelia laciniosa, mas chamada também de “pitó de macambira” ou “maçã de macambira” – por sua textura crocante. A receita mais tradicional para se apreciar um mocó de macambira é entrar na Caatinga, tirar o broto, descascá-lo e abocanhá-lo ali mesmo; mas tendo em mãos um bom tanto de mocós de macambira, pode-se fazer tudo o que se faz com os palmitos – saladas, recheios, sopas etc.
Observo com frequência, em diferentes contextos brasileiros, e especialmente entre as novas gerações, a supervalorização do repertório alimentar de São Paulo e do Rio de Janeiro em detrimento da rica cultura alimentar local e dos conhecimentos tradicionais. A formação de profissionais da gastronomia, por sua vez, repete esse mesmo padrão: o ensino culinário aborda mais a cozinha francesa do que a indígena e diz-se que a culinária brasileira não tem técnica, mas quase não se estuda a técnica de pubagem da mandioca nas escolas de gastronomia. Como pensadora da comida, me interessa o jiquiri tanto quanto o abacaxi; uma é negligenciada e a outra não, mas ambas são comestíveis. Além disso, o que é planta comestível em alguns lugares não é em outros. Uma parte da planta, bem como seu estágio de maturação, segue a mesma ideia: seu uso varia segundo os costumes alimentares de uma dada região e isso determina sua disponibilidade em feiras e mercados. Mamão verde, por exemplo, branquinho, que demora mais para amadurecer, não se encontra nas feiras de várias cidades, embora seja utilizado em alguns preparos tradicionais.
A criação do termo PANC por Valdely Kinupp e Irany Arteche despertou grande interesse por essas plantas e pelo termo, além de ter dado nome a práticas alimentares que já existiam; entretanto, e sem responsabilidade alguma por parte da dupla, a boa recepção foi seguida por uma espécie de gourmetização das PANCs. Com isso, muita gente passou a pensar “PANC é para quem tem dinheiro”, quando é justamente o inverso. As PANCs são um chamado para a autonomia alimentar, para a ampliação dos hábitos alimentares, para o resgate de conhecimentos que foram depreciados e esquecidos, são um convite para olhar ao redor. No livro Plantas alimentícias não convencionais (PANC) no Brasil, de Valdely Kinupp e Harri Lorenzi, há várias coisas que eu nunca vou comer provavelmente e, se comer, vai ser no sítio onde Valdely tem plantas amazônicas que não existem aqui em São Paulo. Quando eu for lá, vou comer e aí posso trazer para plantar aqui, mas não vou mandar trazer uma PANC de longe somente por um desejo meu de comer. As PANCs sugerem outra relação com o território, portanto não faria o menor sentido pensá-las sob a ótica da mercadoria. Eu vou comer o que cresce perto de mim, o que planto no sítio, o que trago de viagem ou o que as pessoas trazem de viagem para mim.
Há pessoas que ficam desesperadas por um ingrediente, por exemplo, buscam por beldroega para fazer um prato em épocas do ano em que ela não está disponível, ou ainda procuram por plantas em biomas onde elas não existem, relacionando-se com as plantas como um objeto de desejo e uma comida para pessoas abastadas. Essas plantas comestíveis, contudo, são o avesso daquelas apreciadas pelo mercado como comida: elas são comidas públicas e, por essa mesma razão, desafiam as pessoas que só sabem cozinhar aquilo que é comprado. Se houver um mamoeiro crescendo na rua, as pessoas preferirão comprar mamão a colhê-lo porque, muitas vezes, não sabem que podem participar da cidade plantando e colhendo em lugares públicos. E quando as coisas são transformadas em mercadorias, são acrescentados custos de transporte, embalagem, aluguel, mão de obra, enfim, o que vale menos nessa cadeia é o alimento. Nesse sentido, as PANCs são um caminho para se libertar das cadeias de produção.
No bosque atrás de minha casa, em um bairro residencial da zona oeste de São Paulo, há picão branco, picão preto, tanchagem e um uma quantidade razoável e diversa de PANC. Alimentar-se dessas ervas que brotam espontaneamente em frestas ou plantadas por pássaros e pessoas em praças e canteiros requer participar da cidade não apenas comprando; requer conhecer o que cresce ao redor de si mesmo, saber identificar as espécies, quando nascem e quando já estão disponíveis.
As plantas comestíveis públicas nos interpelam a respeitar sua sazonalidade, pois, não sendo um alimento cultivado convencionalmente, respeita-se mais o seu tempo de colheita e de produção. As PANCs fazem um convite à importância de saber identificar as plantas, saber quando nascem, quando estão disponíveis, aprender o que cresce no entorno de onde se vive, a olhar o que está ao redor.
Isso nos leva a pensar na prática de uma cozinha circunstancial, ou seja, uma cozinha sem programação e espontânea, feita a base do que está disponível em casa e com as ervas colhidas disponíveis no entorno. E muita gente faz isso no dia a dia, pois poucos têm tempo para grandes planos culinários. A inclusão de ervas não convencionais confere mais flexibilidade à substituição para o preparo de alimentos. Um exemplo, se durante a preparação de um prato não tiver salsinha, acrescento uns trevinhos ou salsa do Líbano. Assim, substituo, aproveito o repertório existente e brinco com o que for. Não me interessa dizer que cozinho apenas com PANC, trato as plantas por igual, pois o desejo de toda PANC é um dia deixar de sê-lo.
As PANCs também nos fornecem pistas de como aplacar a fome em alguns lugares que dispõem de grande variedade de ervas espontâneas. Muitas serviram como alimento de subsistência no passado, e não faltam relatos das gerações mais velhas que saíam para pegar uma verdurinha que nascia espontaneamente na roça. Plantas prolíferas em diversas cidades, porém pouco aproveitadas, como a jaca, poderiam ser mais aproveitadas como comida e como sobremesa. A jaca verde, assim como a banana verde, pode ser usada como legume. Há muitas PANCs. Para tudo o que tem no grupo das plantas convencionais, tem um equivalente entre as PANCs e muito mais. Quer dizer, para cada forma convencional há uma versão PANC dela, porque há partes e estágios que não são reconhecidos como alimento ou são subutilizados, como as folhas de brócolis, de repolho, de cenoura ou beterraba, geralmente jogadas fora. Contudo, não há vantagem alguma em alimentar-se apenas com PANC, pois sua disponibilidade é, por definição, ocasional e variável. As PANCs, portanto, serão mais bem desfrutadas se somadas ao repertório alimentar já praticado e não substituindo outras plantas, aumentando, assim, a biodiversidade de um prato.
Não é preciso saber cozinhar com elas porque acaba-se descobrindo modos de preparo por similaridade com outros alimentos, algo que se adquire com o uso, a repetição, a familiaridade e a constância com a planta no dia a dia, sem pressa. Para ter intimidade com uma planta a ponto de reconhecê-la, é preciso tocá-la várias vezes. Intimidade exige tempo. A tanchagem, por exemplo, quando está desenvolvida tem uma aparência, mas e quando ela é muito jovem? Ela é uma rosetinha quando está nascendo. Desacostumamos de treinar nosso olhar, de olhar e saber as diferenças. Assim como as pessoas são diferentes umas das outras, as plantas também o são.
Por fim, e não menos importante, aventurar-se no mundo vasto das plantas comestíveis exige estudo e maior conexão entre as pessoas, pois muito aprende aquele que pergunta a outras pessoas como comer essas plantas, tal como se fazia antigamente. As PANCs vão na contramão do conhecimento pronto e acelerado, da monocultura e da escassez, da terceirização do conhecimento sobre as plantas para a indústria alimentícia. É preciso ter paciência para aprender aos poucos, não se constrói um repertório sobre PANC somente comprando livros ou indo ao mercado.
A circulação de plantas entre os amantes do tema é algo bem comum e central para esse modo de conhecer as plantas – e conhecer pessoas por meio das plantas. Com frequência recebo mudas de pessoas que sabem do meu interesse pelas plantas comestíveis. Ao seu modo, elas nos falam sobre vínculos de parentesco, vizinhança, compadrio e amizade com pessoas vivas e com aquelas que já faleceram. Das plantas que cuido e pelas quais tenho muito apreço faço um backup, assim não as perco nunca.
Tenho uma pimenta que era da cronista Nina Horta e foi trazida do México por um de seus leitores. Como não tinha intenções de plantá-la, Nina me deu, pedindo que eu fizesse uma muda para dar a ela depois. Essa planta é a coisa mais linda: uma árvore de pimenta de cheiro que é preta quando está verde, imatura, e depois fica vermelhinha. Eu a chamo de Pimenta Nina. Tenho essa planta há alguns anos e já fiz backup com medo de perdê-la. Em 2019, antes de falecer, Nina pediu a Dulce, sua filha, que não deixasse sua pimenta morrer. Contudo, por ter ficado muito tempo no hospital com Nina, a planta acabou morrendo e Dulce ficou chateada. Porém, logo lembrei-lhe de que a planta não havia morrido, pois eu ainda tinha a original e poderia fazer outra muda para ela, era tudo a mesma pimenta.
Em 2008, como programação do Terra Madre, festival internacional dedicado ao Slow Food, propus uma atividade de caminhada pela cidade para o reconhecimento de ervas espontâneas e comestíveis, ao que dei o nome de PANC na City, city no sentido de cidade e de City Lapa, nome do bairro onde moro. Organizava esses passeios com a intenção de convidar as pessoas a prestarem atenção ao entorno de onde vivem, ao que brota em seus quarteirões, suas “aldeias”, quais árvores crescem nos canteiros e que matos brotam nas calçadas e frestas, olhar as copas, observar as florações. “Quais árvores crescem na minha rua?” é uma questão central.
A atividade consistia em algumas etapas. Primeiro, saíamos para caminhar pelo meu bairro em áreas onde eu já sabia previamente que encontraria PANC; ao longo do passeio reconhecíamos e colhíamos diferentes plantas comestíveis; depois voltávamos para minha casa, onde montávamos uma grande mesa com a colheita e eu identificava o que havíamos encontrado e, para finalizar, eu fazia um almoço (que deixava previamente engatilhado) com os ingredientes do passeio e outros trazidos do meu sítio, um verdadeiro banquete PANC.
As mudas também circulavam bastante nas atividades da PANC na City: cará-moela, batata roxa, cúrcuma, dentre muitas outras. Os participantes levavam o que havia de PANC no momento e depois costumavam me dizer como estavam suas plantas. Seguindo o fluxo vital da reprodução vegetativa e o poderoso espalhamento dessas ervas: vão-se as plantas, voltam as notícias. Nesses passeios se juntavam todo tipo de pessoas, amigos, gente simples e gente com saudades da roça. Juntos treinávamos bastante o olhar para as plantas e outros seres que nos acompanhavam, como as abelhas, pois nunca estávamos sozinhos. Há uma interdependência das plantas com outros seres. Os próprios cogumelos se conectam ao mundo vegetal também. Ainda conhecemos pouco sobre os cogumelos nativos, como a Auricularia, o Pleurotus, Favolus, dentre outros.
Não só de colheita de ervas espontâneas se faz esse manejo da cidade, é possível também ser uma agricultora de frestas. Certa vez, trouxe para a cidade um pé de almeirão de árvore que havia no sítio do meu pai e o deixei crescer até florescer e virar um pompom, como o do dente de leão, no qual se agrupam as sementes. Com a ajuda do vento, esse delicioso almeirão se plantou pelo bairro. Quando preciso de novas mudas recorro às frestas do meu quarteirão, onde encontraram morada e fincaram suas raízes. Tem uma tanchagem que cresce no bairro que deve ter saído do meu quintal, porque é de um tipo diferente daquela mais comum da folha comprida. Essa planta eu trouxe do bairro de Pinheiros, plantei e as sementes se espalharam, tornando-se uma planta espontânea por aqui. Antes, não tinha essa tanchagem na Lapa. Uma capiçoba que ganhei também passou a crescer no bairro com a ajuda do vento.
Nem tudo são flores, entretanto, na prática de uma cultivadora de praças e frestas. O que chamo de horta, alguns consideram um equívoco, algo que precisa ser ordenado, corrigido, podado e, sobretudo, gradeado, um espaço a ser cuidado por jardineiros profissionais. Muitos temem o espaço público. O paisagismo urbano, em geral, se apresenta como porções de jardins estáticos feitos de uma natureza distante e contemplativa, que as pessoas não devem tocar. As ervas espontâneas e as plantas comestíveis, por sua vez, contaminam a grama, no melhor sentido da palavra, ou seja, a contaminam com comida para humanos e insetos. A tanchagem, uma erva comestível, por exemplo, gosta muito de nascer na grama. Na cidade, contudo, ninguém deixa a grama florescer e perde-se a chance de oferecer grandes quantidades de comida para as abelhas. São as plantinhas das frestas, as mesmas que contaminam os jardins e que as pessoas acham que enfeiam a cidade, que dão néctar para as abelhas pequeninas e nativas que habitam as cidades. Esses jardins cuspidos, plantados por pássaros, trazidos pelo vento e pelas mãos de citadinos teimosos, compõem uma vida vegetal para ser tocada, comida, replicada e levada para casa, para fora dos limites do canteiro. Como costumo dizer: #menosgramamaiscomida.
Neide Rigo
Nutricionista formada pela USP, é pesquisadora de ingredientes brasileiros, influenciadora de alimentação saudável e especialista em PANCs. Autora do blog Come-se.
Bianca Barbosa Chizzolini
Antropóloga, doutoranda pela USP, é pesquisadora do ASA – Artes, Saberes e Antropologia e bolsista da Wenner Gren Foundation. Realiza pesquisas junto a artesãs zapotecas no México. Uma das editoras convidadas da edição especial Vegetalidades.
Karen Shiratori
Doutora em Antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ), é investigadora do projeto ECO (Universidade de Coimbra), do Centro de Estudos Ameríndios da USP e de Patrimoines locaux, environnement & globalisation. Co-organizou Vozes Vegetais (2020). Uma das editoras convidadas da edição especial Vegetalidades.
Ines Linke
Artista plástica, cenógrafa e professora da UFBA, coordena o grupo Urbanidades e participa do coletivo Thislandyourland.
Louise Ganz
Artista plástica e arquiteta, doutora em Artes Visuais pela UFRJ, é professora da Escola Guignard (UEMG). Participou de exposições na Bienal de Veneza, Bienal de La Habana, Museu de Arte da Pampulha, MAR e CCSP. Participa do coletivo Thislandyourland.
Como citar
RIGO, Neide; CHIZZOLINI, Bianca; SHIRATORI, Karen. Comida pública. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 104-113, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.