CONDOMÍNIO
FAVELA
Texto de João H. Costa Vargas
Réquiem, desenhos de Sara Lambranho
Partituras criadas a partir do desenho de cercas e portões são tocadas numa performance. Na apresentação, os músicos recriam a composição que na liturgia cristã é executada em missas fúnebres.
Tudo começou com uma ideia inusitada: e se a favela fosse fechada com portões e câmeras de segurança? Condomínios das classes média e alta em todo o Rio de Janeiro – assim como nos grandes centros urbanos no País – são definidos com base em tais medidas de proteção. Por que então não adotar as mesmas estratégias em uma tentativa de limitar o abuso policial e o tráfico de drogas?
Os ativistas que pensaram nessa ideia nem sequer se preocuparam em consultar o resto da comunidade, pois estavam certos de que os portões e as câmeras seriam aprovados por unanimidade. Assim, foram em frente e instalaram os equipamentos de segurança em pontos-chave da favela do Jacarezinho. As câmeras, disse-me um dos membros da Associação dos Moradores, foram doadas por um “cigano que tinha ouvido falar de nosso trabalho”.
O experimento ousado teve vida curta. Os ativistas locais anteciparam as reações negativas contra o condomínio-favela, e pôr a ideia em prática foi uma medida calculada para criar um fato público-político revelador das condições péssimas existentes naquela comunidade pobre e marginalizada. A notícia correu rápido não apenas na cidade e no estado do Rio de Janeiro, mas também em São Paulo, onde, a despeito da violência urbana crescente, a fascinação histórica com as favelas cariocas gerou um artigo de página inteira em um dos principais jornais do país, a Folha de São Paulo.
Ainda assim, os ativistas na favela ficaram surpresos com a forma visceral com que a polícia, o público que não vive em favelas e os políticos, incluindo os de esquerda, reagiram contra a ideia, que viam como lunática. Nos dois maiores centros urbanos brasileiros, as questões essenciais por detrás das reações ao que ocorria no Jacarezinho revelavam um profundo desconforto: como um bairro pobre, majoritariamente negro, poderia ter a ousadia de monitorar e restringir o trabalho da polícia? Como a diretoria de uma associação de moradores, que muitos acreditavam ser controlada por traficantes de drogas, poderia desafiar aqueles que a haviam colocado no poder? Como uma favela poderia se comparar aos condomínios cercados da elite?
No dia 28 de julho de 2001, O Dia, o jornal de maior circulação no Rio de Janeiro, relatou em sua primeira página que portões instalados recentemente isolavam o Jacarezinho do resto da cidade. Uma grande fotografia colorida ilustrava a notícia: nela havia um homem jovem, de costas, segurando a mão de uma menina ao atravessar um portão de folhas de metal cor de cobre com cerca de 3,5 metros de altura. A passagem semiaberta do portão revelava uma das vielas estreitas da comunidade onde quatro crianças brincavam no chão acimentado, entre casas e prédios baixos. A legenda da foto, curta e em negrito, dava o tom do artigo que aparece nas páginas internas do jornal:
“Jacarezinho fechado a cadeado. Inspirada nos condomínios da Zona Sul, segunda maior favela do Rio instala portões nas vielas e câmeras de vídeo em pontos estratégicos. Só que o inimigo é outro: os abusos da polícia, segundo as lideranças. Iniciativa é polêmica por deixar os traficantes ainda mais protegidos em seus guetos.”
O artigo de página inteira, ainda que não criticando abertamente o trabalho dos ativistas do Jacarezinho, iniciou e alimentou a controvérsia ao dar detalhes extensos sobre a história dos portões e de seu impacto sobre a polícia e os traficantes de drogas.
A nova liderança local, eleita em janeiro de 2000, prometia começar um novo capítulo na forma como as favelas se organizam e se relacionam com a sociedade em geral. Antônio Carlos Rumba Gabriel, também conhecido como Rumba, presidente eleito da Associação de Moradores, garantiu que iria colocar o Jacarezinho de volta no cenário político da cidade, recuperando dessa forma uma longa história de mobilização. A comunidade era conhecida, durante a ditadura militar dos anos 60, como “Moscouzinho”. O nome refletia o grande número de esquerdistas e organizações políticas clandestinas que operavam na área, protegidas pela vantagem geográfica advinda da topografia ondulada – a qual proporcionava fácil vigilância dos pontos mais altos da comunidade – e pelo labirinto de ruas estreitas que tornava o acesso difícil aos carros da polícia.
A gestão de Rumba começou com impacto na mídia e no cenário político local. O jornal eletrônico Notícia e Opinião, um fórum conhecido em que questões políticas contemporâneas eram debatidas por políticos, artistas, intelectuais e ativistas, deu ampla cobertura à agenda da nova gestão. Ameaçando “descer o morro e tomar o que é nosso”, os ativistas demandavam o fim da brutalidade policial, mais e melhores programas sociais com foco em saúde, educação e capacitação para o trabalho, e transporte público. Em suma, demandavam cidadania plena. Rumba e seus colaboradores queriam para a favela aquilo que era tido como seu direito e faziam alusões à ajuda que conseguiriam dos traficantes armados para alcançar seus objetivos, caso suas demandas não fossem atendidas.
Embora alguma atenção tenha sido dada às demandas de cidadania daquelas novas vozes políticas vindas do Jacarezinho, a maior parte do noticiário da imprensa, dos intelectuais e dos políticos focalizaram sua atenção na sugestão de que o movimento da comunidade teria a ajuda dos traficantes de droga e de suas armas.
O Dia insistia no tema. Embora o artigo de página inteira incluísse a declaração de Rumba afirmando sua independência dos traficantes de drogas, e que isso era também verdadeiro em relação às câmeras e aos portões, a conclusão trazia uma descrição do evento com as seguintes frases:
“O problema é que até uma criança que acredita em Papai Noel sabe que nada acontece em uma favela sem o consentimento dos traficantes. As câmeras foram liberadas após seis meses de uma longa negociação. Os traficantes de droga estavam preocupados que isto os afetaria negativamente. É assim que funciona em uma comunidade localizada em meio ao fogo cruzado.”
Tornou-se claro, assim, que, até prova em contrário, ativistas da favela estavam ligados ao tráfico de drogas de quem, por um lado, recebiam contribuições monetárias e proteção armada e, por outro, cumpriam ordens e regras sob a ameaça constante e autoritária de achacamento e morte. Nesse sentido, a matéria de O Dia forneceu o modelo segundo o qual o jornal de maior circulação no Brasil, a Folha de São Paulo, escreveria sobre o ousado experimento. A matéria de página inteira da Folha trazia a manchete “Morro carioca cria o condomínio-favela”. Outra manchete em letras menores dizia “Violência: Associação de Moradores do Jacarezinho coloca portões e câmeras para controlar a polícia”. De maneira significativa, entretanto, o primeiro artigo, no canto superior esquerdo da página, tinha o título “Líder nega laços com o tráfico de drogas”. O foco era em Rumba, que declarou:
“Eu nunca tive laços com os traficantes. Nós, presidentes de associações de moradores, vivemos em comunidades onde existe o tráfico de drogas e temos de conviver com isto. Mas nós não interferimos nas atividades deles e eles nos deixam em paz.”
A despeito de Rumba negar continuamente o envolvimento com o tráfico de drogas, esse veículo da mídia de São Paulo, assim como a polícia do Rio, prontamente formaram suas opiniões sobre o ativista político e seu grupo. Enquanto a Folha de São Paulo deu voz a Rumba em suas páginas para que ele contasse a sua versão, o tom geral da matéria contextualizava a perspectiva do ativista de tal maneira que seus laços com os traficantes de drogas tornavam-se praticamente inevitáveis.
O artigo que se seguiu ao analisado acima começava com a frase: “Não é incomum líderes comunitários serem acusados de envolvimento, ao menos indireto, com o tráfico”. Para apoiar essa afirmação, a matéria citava Michel Misse, professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e fundador do Instituto de Segurança Pública. Misse argumentou que:
“A convivência é inevitável. Estas pessoas vivem onde o tráfico vive. Líderes comunitários têm que tolerá-los, senão eles são expulsos de suas comunidades. Há também o risco de assassinatos. E existem presidentes de associações de moradores que trabalham com os traficantes.”
Os comentários desse “especialista” forneciam suposta validade científica à suspeita expressa por políticos e pela mídia. Uma vez confirmada, a relação de Rumba com o tráfico pôde ser reconstruída a partir de eventos ocorridos muito antes dos portões e das câmeras terem sido instalados. Essa matéria em particular concluía lembrando aos leitores que, em maio de 2000, Rumba fora acusado de trabalhar para os traficantes. O contexto da acusação foi o seguinte: após a morte desnecessária e inexplicável de um jovem no Jacarezinho, a qual vizinhos disseram ter sido causada pela polícia, dois ônibus e um carro foram incendiados como sinal de protesto. Informantes da polícia revelaram posteriormente que a manifestação foi organizada pelos traficantes de drogas, e Rumba foi uma das pessoas acusadas de ajudá-los. É sugestivo que, enquanto o foco da reportagem era Rumba e suas ligações – não comprovadas – com o tráfico, perguntas sobre a polícia e sua participação na morte do jovem nunca foram feitas.
Deve-se enfatizar que o abuso policial contra moradores de favelas, em sua maioria pobres e negros, faz parte de um padrão histórico ainda em curso. No Rio de Janeiro, a polícia matou 900 pessoas entre janeiro e agosto de 2003, sendo que 75% dessas mortes ocorreram em favelas. Contrário à percepção pública e aos pedidos por uma maior militarização na “guerra contra o crime”, feitos frequentemente por funcionários públicos e setores organizados da sociedade civil, os índices de criminalidade violenta no Rio de Janeiro vinham diminuindo.
No clima de pânico moral, entretanto, os números de execuções por policiais cresciam de maneira alarmante. Enquanto 427 “suspeitos” foram mortos pela polícia em 2000, esse número subiu para 900 em 2002. É de conhecimento geral que os “suspeitos” são jovens negros mortos nas operações militares de rotina conduzidas pelas polícias nas favelas. Paul Amar lembrava que “tal tendência, caso continuasse, faria o número total de execuções policiais chegar a mais de 1.500 em 2003 só no estado do Rio de Janeiro, alcançando paridade com Bagdá … [que] sofreu cerca de 1.700 mortes de civis naquele ano da guerra de ocupação.”
Os casos constantes de abuso policial são parte de um padrão persistente e emblemático do racismo que permeia a sociedade brasileira. Se os jornais e os especialistas tivessem prestado atenção a tais padrões de abuso policial racializado, a justificativa dos ativistas da favela para os portões e as câmeras teria sido mais bem compreendida. De fato, restringir o uso da força pela polícia foi o objetivo principal do condomínio favela. Além do mais, as câmeras permitiriam a gravação de casos de má conduta policial, tais como extorsão, espancamentos e tiroteios – todos amplamente registrados por organizações nacionais e internacionais de direitos humanos e alguns órgãos de imprensa, mas raramente discutidos por “especialistas”, comentaristas e o público em geral fora das favelas. Esse material gravado constituiria evidência inegável em apoio às denúncias dos ativistas, as quais, segundo Rumba declarou, “não são normalmente levadas a sério”.
João H. Costa Vargas
Professor de Antropologia na Universidade do Texas.
Sara Lambranho
Artista, trafega entre o desenho, a instalação, o vídeo e a intervenção urbana.
Como citar
VARGAS, João H. Costa. Condomínio Favela. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 4, p. 12-13, set. 2011.