CONTORNAMENTOS
Texto de Renata Marquez
Congestionamento, Maider López
Se, no Brasil, vivenciamos a pregnância do paradigma desenvolvimentista nas propostas de transformação das cidades, tornam-se urgentes ações que sejam capazes de contornar o modelo de crescimento, de inventar novos modos para o fazer cotidiano e de devolver à cidade a noção de coletividade. A ideia dominante de globalização transforma perversamente o cidadão em consumidor – o que pode significar, num piscar de olhos, vagando entre um site e outro, o esquecimento da cidadania ou o enferrujamento da sua prática.
O que melhor encarna o paradigma moderno oferecido aos atuais consumidores da cidade? A construção em série de pistas insaciáveis para automóveis famigerados e os seus motoristas descontentes: viadutos, vias expressas, duplicações, triplicações, transposições, sinais icônicos – e anacrônicos – de progresso! Em Belo Horizonte, por exemplo, cerca de 28,5% das viagens diárias são feitas completamente a pé, o que é imediatamente interpretado pelos técnicos como falta de opção. Logo, em vez da tentativa estratégica de aterrissar o olhar do planejador e finalmente visitar os locais de fato por onde esses heróis anônimos da condição pedestre arriscam as suas vidas, os mesmos técnicos preferem apoiar a construção de mais vias para ônibus, carros e motos, cujas frotas cresceram em média, respectivamente, 8%, 26% e 74% entre 2001 e 2006.
Contornar é inventar novas rotas. Contornar é procurar outros caminhos e outras saídas. As táticas de contornamento redesenham temporariamente o espaço. Elas implicam na articulação criativa entre uma ordem distante – o planejamento urbano – e uma ordem próxima, cotidiana, ou o que podemos chamar de prática espacial. Caminhar pela cidade, deslocar-se de bicicleta, compartilhar veículos motorizados, sonhar com a volta dos bondes elétricos e com o acesso prazeroso às regiões distantes da cidade, zelar pela pluralidade de ritmos, pela diversidade de opções e oportunidades e pelo espaço público como lugar-de-todos em vez de terra-de-ninguém.
A artista Maider López nasceu em San Sebastián, Espanha, em 1975. As suas propostas, pensadas para distintas cidades do mundo, modificam o espaço onde se inserem e envolvem as pessoas daquele lugar, oferecendo ensaios para pensar a prática urbana. Interceptando arte, arquitetura e espaço público, Maider – que nunca atuou no Brasil – distribuiu, no verão europeu de 2005, centenas de toalhas vermelhas para os frequentadores da praia de Itzurun, em Zumaia, criando, na imagem da paisagem de um vermelho-em-comum, a ativação de relações de proximidade na multidão. No mesmo ano, com Ataskoa, palavra basca para congestionamento, Maider anunciou uma chamada pública (na imprensa, rádios, folhetos e cartazes) para quem quisesse participar de um congestionamento na montanha, lugar um tanto improvável para tal ocorrência.
“Em 18 de setembro de 2005, 160 carros (cerca de 425 pessoas) se reuniram em Intza, Navarra. O congestionamento começou às 11:00h e terminou às 15:00h. Além dos 160 carros voluntários, participaram do evento uma equipe para direcionar o tráfego, organizar a alimentação popular, fotografar e filmar de cinco locais diferentes”, descreve Maider. Os carros eram distribuídos de acordo com a sua cor, formando um ritmo cromático coreográfico de deslocamento e estacionamento.
O congestionamento, uma situação continuamente vivida em grandes cidades do mundo – no Brasil, São Paulo é ainda a nossa ilustre campeã –, foi deslocado, isolado para estudo, reorganizado esteticamente e refuncionalizado coletivamente.Ataskoa produziu o desenho de uma paisagem artificial que contorna a própria ideia do congestionamento como problema de tráfego. O que pode ser feito no espaço-tempo de centenas de pessoas aparentemente juntas e relativamente imobilizadas? Se bastam 7 ônibus, 2 vagões dos 6 de um metrô típico ou 1 bonde com composição dupla para transportar 425 pessoas, que cidade poderíamos planejar?
Maider propõe a fabricação de uma condição especial de congestionamento – na qual normalmente somos impotentes reféns – para que sejamos os idealizadores ou os colaboradores voluntários. Propõe a ficcionalização de uma experiência maçante para que as suas implicações possam ser pensadas desde outras perspectivas e apontar para outras possibilidades de convívio.
Com Ataskoa, as pessoas do lugar se dispuseram a participar de uma coletividade instantânea e tiveram que, juntas, definir as regras do jogo segundo as quais tal situação poderia funcionar. Mais do que um congestionamento, Ataskoa é um contornamento que possibilita um lugar de festa em vez de um momento de fúria e tem a capacidade fabuladora de nos tornar capazes de imaginar e desejar outros futuros para as nossas cidades.
Renata Marquez
Editora da PISEAGRAMA.
Maider López
Artista que trabalha nas interfaces entre arte e espaço público. Vive em San Sebastián.
Como citar
MARQUEZ, Renata. Contornamentos. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 1, p. 35-37, jan. 2010.