CONTRA
A GRAMA
Texto de Wellington Cançado
A grama é, hoje, o elemento natural mais presente na paisagem urbana brasileira. Talvez devido ao caráter pretensamente cívico e politicamente oportunista adquirido ao longo dos tempos até se tornar o mais legítimo representante da natureza domesticada e da modernidade oficial.
Praças, parques, rotatórias, trevos, canteiros, rodovias, baixios de viadutos, jardins, afastamentos frontais, taludes, remendos, sobras: onde não está cimentado há verde-grama e qualquer empreendimento privado ou intervenção pública que se preze no Brasil adota a grama como “estratégia paisagística” predominante. Mas essa onipresença da grama só é aparentemente benigna, já que, por suas próprias características biológicas, a grama inibe o surgimento e o desenvolvimento de outras espécies, impõe à cidade e seus habitantes áreas verdes de alto custo e propicia espaços extremamente refratários ao uso público. Em outras palavras, a grama produz a menor diversidade ambiental e urbana com o máximo esforço.
Gramados verdinhos e bem cuidados encobrem contradições de vários tipos e acabam se tornando, a despeito do aspecto convidativo, espaços repelentes a formas básicas de apropriação e uso, além de substituirem ecossistemas existentes e homogeneizarem drasticamente a paisagem. E é nessa batalha cotidiana pelo gramado perfeito, altamente dependente do trabalho mecanizado e intensivo em água e energia que, paradoxalmente, cada vez mais é valorizado o esforço para mantê-lo intocado, “natural” e, principalmente, inacessível. Quem já não se sensibilizou com as recorrentes plaquinhas e seus aforismos infames “Não pise a grama. Colabore com o meio ambiente”?
Enquanto o privilégio de um gramado privativo é associado a um certo status de vida boa, com churrascos ensolarados, cachorros correndo livremente, crianças felizes brincando, amigos na piscina ou jantares sob a lua, os enormes tapetes verdes públicos parecem destinados simplesmente a contrabalancear a hegemonia do concreto e do asfalto com um pouco de permeabilidade e “vida”, mas como se todas as potências de seus similares privados tivessem sido exauridas pela mínima sociabilidade necessária para com os desconhecidos e pela privacidade devassada própria do convívio público. A grama urbana escancara, portanto, como o imaginário coletivo estabelece padrões de comportamento, atua no controle da diversidade biológica e social através da substituição massiva da flora nativa e investe voluntariamente na esterilização das relações humanas no espaço da cidade.
A utilização da grama e sua incorporação aos jardins e espaços públicos remontam ao século XVII e aos lawns ou gramados das propriedades inglesas – símbolos de riqueza – sempre verdes graças ao clima local, à grande incidência de chuvas e milimetricamente aparados graças ao apetite do rebanho.
A grama da pracinha na esquina é, portanto, parente distante desses jardins privados das grandes propriedades aristocratas e dos primeiros parques públicos ingleses inventados quando o potencial paisagístico dos gramados perfeitos começou a ser explorado cultural e socialmente. Depois de um longo período de gestação até a sua incorporação como protagonista nas proposições urbanas, o gramado moderno finalmente tomaria forma mais tarde, já no século XIX, com Frederick Law Olmsted, conhecido arquiteto e paisagista do Central Park de Nova Iorque e com Ebenezer Howard, inventor da Cidade-jardim, que estabeleceu novos paradigmas para as áreas verdes e espaços livres nas cidades europeias.
Tanto Olmsted, o precursor da moderna ideia de parque e responsável pela criação de inúmeras unidades de conservação americanas, quanto Howard, um reformador utópico obsecado com a separação das diversas atividades urbanas em zonas específicas entremeadas por cinturões verdes, influenciaram decididamente todo o urbanismo do século XX, desde seus primórdios nas concepções radicais das vanguardas e também por aqui, tendo seus fundamentos, na prática, vigentes ainda hoje no planejamento das cidades.
“Ah, finalmente um pouco de natureza” exclamou Henry Michaux, poeta e pintor belga, ao topar com um jardim público depois de desembarcar em Manaus no ano de 1939, vindo de uma longa expedição pela Amazônia. Um jardim nada mais é que uma microecologia produzida segundo os desígnios humanos, com recursos da natureza, pelo prazer do cuidado e do convívio diário com as plantas, fora do ambiente natural. Mas como bem advertiu o paisagista Roberto Burle Marx, não é possível reconhecer um “tipo estabelecido de jardim brasileiro tradicional, seja no plano urbanístico seja sob o ponto de vista dos modelos privados”, e mesmo que sempre tenha havido uma manipulação intencional da natureza com o objetivo de “embelezamento da vida privada, urbana e rural”, não se formou por aqui uma cultura do jardim como na Europa ou no Oriente.
Talvez pelo “excesso de natureza” a que fomos historicamente submetidos. Ou talvez por estarmos, como gostaria Mário Pedrosa, “condenados à modernidade” e ao seu desprezo constitutivo pela contemplação, pela ornamentação e pela inutilidade, características fundamentais do cultivo desinteressado e do deleite da natureza, próprios de qualquer jardim. Nem o gosto pela roça congênito dos brasileiros e nem mesmo o “modernismo-com-jardim” de Burle Marx foram suficientes para fazer prevalecer uma “vontade paisagística” autóctone e enraizada para articular a consciência da conservação ambiental e a construção de verdadeiras cidades-jardins-tropicais. E assim sendo, certamente Michaux não estava diante de um original jardim amazônico, mas provavelmente reconhecendo um pitoresco gramado inglês.
Mas se é da manipulação engenhosa da natureza que terão origem os pomares e quintais que até bem pouco tempo dominavam a paisagem das cidades, talvez seja mesmo a clareira aberta na mata, o anti-jardim por excelência e principal método colonial de administração dos perigos e mistérios da natureza indômita o legado histórico para os gramados nacionais. Não serão estes as nossas clareiras contemporâneas, espaços seguros e reconfortantes em meio à imensidão incontrolável de tantos artefatos selvagens?
Em um artigo de 1952 intitulado O homem e a paisagem, publicado na revista francesa L’Architecture d’aujourd’hui em número especial sobre o Brasil, o escritor José Lins do Rego escreveu que “as caatingas do sertão, a floresta amazônica, as montanhas de Minas Gerais e os pampas do Rio Grande do Sul entram no coração da cidade”, referindo-se ao fato de que para os arquitetos e urbanistas locais, a ideia de paisagem e de geografia natural eram fundamentais à concepção espacial e urbana, diferentemente do modernismo europeu, mais afeito à cidade racional e higienizadora, onde as áreas verdes eram essencialmente vazios funcionais, depositórios de ar puro para uma sociedade infectada. Obviamente, Brasília, com a sua artificialidade e entendimento do cerrado como vazio, veio poucos anos depois a cobrir de poeira vermelha toda a condecendência dos críticos com essa suposta modernidade tropical.
Já para Burle Marx, responsável pela inserção real de fragmentos dos biomas locais no “coração das cidades”, no Brasil “reina um desamor característico por tudo que é plantado” e, “apesar de dispormos de um contingente de 5 mil espécies de árvores num conjunto florístico estimado em 50 mil espécies, nossos jardins oferecem uma flora domesticada e cosmopolita” e a “arborização das ruas se faz homogênea e exótica”.
A luta contra certas formas de urbanização nas quais a paisagem é destruída para dar lugar a espécies e composições vegetais completamente desconectadas da realidade local foi um projeto de uma vida dedicada à “adequação do meio ecológico pelas exigências naturais da civilização”. E durante a expedição à Amazônia que realizou em 1983, Burle Marx registrou o processo de destruição da floresta pelo “método empírico e cruel” da construção civil e rodoviária no Brasil: barrancos, erosões, cortes, aterros, terraplanagens desastrosas e desflorestamentos gigantescos, cicatrizes expostas que nenhuma forração seria capaz de despistar.
Entretanto, a sensibilidade e o cuidado com a paisagem existente, a experimentação estética através das plantas (inclusive a grama) bem como a vontade de ampliação da diversidade natural e sua incorporação – didática até – no cotidiano urbano, como proposto por Burle Marx, parecem hoje, diante da monocultura que assola tanto o campo quanto as cidades, resquícios de um momento histórico em que as possibilidades de futuro estavam em aberto e cidade e natureza poderiam conformar um ecossistema híbrido, diverso e exuberante.
Estimada em 50 milhões de metros quadrados, a área gramada de Brasília é superior a 120 metros quadrados por habitante, enquanto padrões internacionais estabelecem como “ótimo”, 25 metros quadrados por habitante. Mas o que os dados não dizem é que muitos desses gramados são áreas residuais “acarpetadas de verde” de forma a encobrir o solo exposto pela violência da técnica rodoviária tornada urbanismo, que viria a ser observada por Burle Marx na Amazônia.
“Os imensos gramados ingleses, os lawns da meninice” de Lucio Costa, de onde os “verdes de Brasília provêm”, sempre foram, do ponto de vista da administração pública, um problema criado pelo projetista da capital. Nos primórdios da vida no Plano-Piloto, os métodos eram primitivos e as máquinas adaptadas pela NOVACAP impróprias para jardins dessa magnitude, não havendo, na indústria nacional, equipamentos adequados para tal função. Somente com a abertura das importações na década de 1990, o Departamento de Parques e Jardins – DPJ – conseguiu adquirir 48 máquinas importadas dos EUA, originalmente utilizadas na produção de grama no campo e adequadas para a manutenção da imensidão monocultural da capital, “com enorme economia e segurança tanto para os operadores como para a população”. Com isso a cidade passou a economizar 150 mil horas de trabalho a cada 6 meses ou 25 mil horas por mês e, assim, “foi possível retirar desse trabalho 14 caminhões, usados somente para transporte de palha de grama bem como eliminar o risco de acidentes”, explica com orgulho um ex-funcionário do DPJ e agora Cidadão Honorário do Distrito Federal.
Como forma de controlar e preservar os gramados recém plantados, já nos primeiros anos da Capital, o DPJ instituiu a figura dos “Graminhas”, funcionários vestidos dos pés à cabeça de verde, que rondavam em suas insuspeitadas Kombis o Plano-Piloto à caça de menores infratores: crianças inofensivas que insistiam em enxergar naquela enormidade de grama pública – que resistia a “pegar” no cerrado ácido e sob o sol inclemente – campos perfeitos para campeonatos de futebol enquanto os pais despachavam nas repartições. Cumprindo ordens, esses leais funcionários, sempre que conseguiam capturar uma bola em meio à partida, a furavam impiedosamente com seus afiados canivetes. Afinal, a função primeira desse verde interminável sempre foi “monumental”, ao contrário do que imaginavam aqueles fedelhos.
Depois de alguns anos, os “Graminhas” foram extintos na capital, mas sobreviveram no imaginário cerceado que continua a reger os espaços públicos país afora e acabaram ressuscitados em praticamente todos os estados brasileiros, agora em uniformes corporativos de empresas em busca da redenção popular e alguma isenção fiscal, coexistindo com soluções mais adequadas às modernas formas de gestão da paisagem tais como as barreiras de vidro temperado e o envenenamento preventivo dos jardins, que ameaçam de intoxicação humanos e não-humanos, diariamente.
O termo “grama” é bastante genérico, podendo abranger os mais diversos significados, incluindo um enorme número de espécies de plantas. A palavra “grama” tem sua origem na denominação de uma família botânica que engloba inúmeras espécies, a das gramíneas (Gramineae), e que pode incluir desde uma pastagem, um capim, uma erva, uma relva, um gramado e mais de 10 mil espécies dispersas pelo mundo. As mais importantes servem como alimentação humana, como o arroz e o trigo, ou como alimentação animal como as brachiarias e outras bem mais versáteis como os bambus.
Predominam no Brasil as seis principais variedades de grama de clima quente: Santo Agostinho (Stenotaphrum secundatum), Bermuda (Cynodon spp), Zoysia (Zoysia spp), Centipede (Eremochloa ophiuroides), Bahia ou Batatais (Paspalum notatum), São Carlos ou Curitibana (Axonopus compressus) e Esmeralda (Zoysia japonica), sendo que esta última corresponde a 80% de toda grama cultivada e vendida no país.
Os cultivares nacionais são hoje produto de padrões estandartizados e processos altamente rentáveis, sendo que fertilizantes, herbicidas, irrigação intensiva, corte preciso, equipametos importados, controle total e monocultivo extensivo são características comuns aos maiores produtores de gramíneas. E é por isso que o cultivo de grama se destaca como uma nova e importante cadeia no agrobusiness brasileiro, ao lado da soja e da cana. Mas a atividade de produção e comercialização de gramas cultivadas é relativamente recente, tendo sido iniciada na década de 1970, concentrando-se principalmente em São Paulo e no Paraná, onde competem nas planícies – até pouco tempo de exuberante mata atlântica – com os canaviais e as pastagens em uma área que já ultrapassa os 5 mil hectares.
Nos últimos anos, graças ao boom imobiliário, à multiplicação dos condomínios residenciais inspirados nos subúrbios norte-americanos, ao aumento da quantidade de obras viárias nas grandes capitais, à construção de novas infraestruturas para os eventos esportivos por vir, bem como à explosão de construções de novos campos de golfe, houve um aumento considerável no volume de grama cultivada comercializada. Segundo a recém fundada Associação Nacional Grama Legal, entidade cujo objetivo declarado é lutar contra a comercialização da grama nativa e fazer lobby para a proibição de sua utilização em obras públicas, cujo slogan é “Grama legal é produto agrícola”, o cultivo anual de grama é de aproximadamente 170 milhões de metros quadrados, sendo 70% ou 120 milhões de gramas nativas – retiradas de pastos cortados com o uso da enxada, o que pela legislação atual é considerado crime ambiental – e o restante, 50 milhões ou 30% de gramas cultivadas.
As gramas cultivadas são comercializadas principalmente em tapetes ou em rolos, mas podem também ser encontradas em bandejas com plugs, estolões ou sementes. De olho no florescente mercado do gramado urbano impulsionado pelas grandes empreiteiras, responsáveis por 80% da compra de toda grama cultivada no país, recentemente alguns produtores iniciaram no país a comercialização do sistema big roll, verdadeiros rocamboles de terra e grama com aproximadamente 1,0 a 1,2 metros de largura e mais de 40 metros de comprimento, ideais para o gigantismo e o regime de urgência das obras públicas.
Atualmente, nos Estados Unidos, o país com maior superfície gramada do planeta, 70% do uso residencial de água tratada é destinado à jardinagem e à rega dos 128.000 quilômetros quadrados de gramados privados irrigados. Segundo estudos da NASA, a superfície territorial de grama é três vezes maior que as imensas monoculturas de milho americana, o que significa que 750 litros de água fresca e potável, por pessoa e por dia, são necessários para manter os gramados. Além disso, 65 milhões de litros anuais de combustível são necessários para fazer funcionar cortadores e demais equipamentos de jardinagem e bilhões de dólares são investidos somente por particulares no uso de uma quantidade equivalalente a dez vezes mais pesticidas e herbicidas do que a utilizada pelos produtores no campo, considerada já alarmante por organizações de saúde pública e conservação ambiental.
Obviamente não há nenhuma estatística sobre a quantidade de água, energia, trabalho e veneno gastos na manutenção dos gramados públicos e privados no Brasil, mas não é necessário ser um exímio observador das dinâmicas da cidade para perceber a enorme demanda cotidiana por jardineiros e ajudantes, caminhões-pipa, sistemas de irrigação, aspersores, roçadeiras, aparadores, cortadores, fertilizantes, herbicidas, etc. E se depender dos velhos políticos e dos novos condôminos e considerando que por aqui se rega até calçada de cimento, rapidamente alcançaremos os patamares do Norte.
Wellington Cançado
Editor da PISEAGRAMA.
Como citar
CANÇADO, Wellington. Contra a grama. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 6, p. 38-40, abr. 2013.