DE BICICLETA,
PELA DIREITA
Roberto Andrés
Faça chuva ou faça sol (o que é mais raro) em Londres, Boris Johnson vai para o trabalho de bicicleta. De sua casa, no bairro de Islington, até o City Hall, onde funcionam os Poderes Executivo e Legislativo da cidade, pedala cerca de 5 quilômetros. Estaciona a bicicleta no térreo e sobe para o seu gabinete.
Boris Johnson é prefeito de Londres desde 2008, quando venceu as eleições contra Ken Livingstone, do Partido Trabalhista. A sua gestão assume a proposta de transformar a bicicleta em um meio preferencial de transporte na cidade – dentro da meta mais ambiciosa de fazer de Londres “a melhor cidade do mundo para se viver”. A implementação dos planos não é livre de controvérsias: o prefeito afirma ampliar o investimento em construção de “super-ciclovias”, enquanto oposicionistas contestam os números e afirmam que várias ciclovias existentes foram pintadas de azul e contabilizadas no saldo das novas.
Em julho de 2010, a Prefeitura lançou o sistema público de aluguel de bicicletas, seguindo a trilha de cidades como Copenhague, Paris e Barcelona. As bicicletas ficam distribuídas em estações com travas e guichê eletrônico e podem ser retiradas mediante um cartão de assinante ou cartão de crédito. O usuário pode devolver a bicicleta em qualquer outra estação – desde que haja vaga, claro (um problema recorrente é a falta de vagas em horários de pico, quando, por exemplo, todos vão ao trabalho ou a um show em uma mesma região. Mais ou menos como nos picos de tráfego de veículos, mas sem os incovenientes dos engarrafamentos e buzinaços. Nos picos ciclísticos, resta procurar vaga nos arredores e terminar a viagem a pé).
Percalços à parte, as bicicletas ganham as ruas da cidade: foram feitas mais de 1.8 milhões de viagens em 5 meses, chegando-se ao chuvoso novembro com média de 20 mil por dia. Há cerca de 5 mil bicicletas distribuídas em 350 estações, com a previsão de aumento para 8 mil bicicletas e 1.4 mil estações até 2012, quando a cidade sediará os jogos olímpicos. Em Paris, o Velib opera desde 2007 e tem hoje cerca de 20 mil bicicletas, 1.2 mil estações e 200 mil assinantes .
Boris Johnson defende o aspecto “profundamente comunista” do projeto, fala inusitada para um membro do Partido Conservador, conhecido por declarações politicamente incorretas e inimigo desvelado da imprensa de esquerda, como o jornal The Guardian. O cartão de assinatura custa 45 libras por ano, e a primeira meia-hora de uso da bicicleta não é cobrada. O propósito é que as bicicletas sejam utilizadas para viagens curtas e em seguida devolvidas. Se não cometer excessos, o usuário poderá circular na cidade por um custo dezenas de vezes menor do que em ônibus ou metrô e centenas de vezes menor do que em automóvel particular (a tarifa de transporte público em Londres é das mais caras e a circulação de carros no centro é taxada).
Embora “comunista”, o sistema londrino tem patrocínio do banco Barclays, que desembolsou cerca de 20 milhões de libras para estampar a sua marca no guidão de cada bicicleta. Outra marca associada, que não aparece na publicidade impressa, é a do próprio Boris. O prefeito parece ter construído, graças à sua figura polêmica e à sua perseverança ciclística, uma associação pessoal comparável com o projeto, em terras mais quentes, de Lula, o Bolsa Família. Muitos chamam as Barclays Bikes de Boris Bikes.
A personalização parece agradar ao prefeito, que se mantém firme sobre as duas rodas e vai colecionando curiosos dividendos políticos. Em novembro de 2009, Boris passava pelo bairro de Camden quando socorreu uma mulher em apuros. A cineasta e ambientalista Franny Armstrong, que não apoiou Johnson nas eleições, estava encantoada por três garotas munidas de uma barra de ferro. Viu um ciclista e pediu socorro. Quando ele se aproximou, espantou-se: “Ei, esse é o prefeito de Londres”. As garotas fugiram e o prefeito-herói acompanhou Franny até sua casa. Em outra ocasião, Boris pedalava com o Ministro dos Transportes, Lord Adonis, e com o Diretor de Transportes de Londres, Kulveer Ranger, quando quase foram atropelados por um caminhão desgovernado, que achatou dois carros logo adiante.
Em maio de 2008, enquanto Boris Johnson assumia a Prefeitura de Londres, a vizinha Paris recebia uma visita ilustre. Em missão oficial na capital francesa, o governador fluminense Sérgio Cabral entusiasmou-se com as bicicletas públicas. Fez-se fotografar pedalando e divulgou, de lá mesmo, que implantaria sistema semelhante no Estado do Rio. Começaria por Niterói, com 100 bicicletas no lançamento – sem constrangimentos pelo número 100 vezes menor do que o do Velib, inaugurado com 10 mil bicicletas.
Na comitiva de Cabral em Paris, estava o então Secretário de Transportes do Estado do Rio, Júlio Lopes, que havia apresentado ao governador, em janeiro daquele ano, o projeto “Rio – Estado da Bicicleta”. Segundo apresentação no site da Secretaria de Transportes, o projeto tem os seguintes programas estruturantes: Educação (“Conscientizar e preparar para o uso”), Promoção (“Incentivar, divulgar, criar a cultura da bicicleta”) e Operação (“Implantar a estrutura cicloviária”). Na tríade proposta, a obras de infraestrutura, como a implantação de 1.000 quilômetros de ciclovias no Estado e a instalação de bicicletas públicas, seriam somadas outras, como a realização do Tour do Rio e de campanhas publicitárias (“Vá de bike. Faz bem para você. Faz bem para o Rio”).
Nos quase três anos de projeto, poucas ciclovias e bicicletários foram construídos, as 100 bicicletas públicas não chegaram a Niterói e, em julho de 2010, anunciou-se a assinatura de um convênio prevendo “estudo para viabilizar a construção de 40 quilômetros de ciclovias, que abrangeriam cidades da região metropolitana e outros municípios”. Em outubro, novo anúncio: o plano deveria ficar pronto em 6 meses. Sem espanto, a meta traçada em 2008 de 1.000 quilômetros de ciclovias foi reduzida para 40 e terá seu estudo pronto, se tudo correr bem, em meados de 2011.
Já as ações promocionais tomaram a dianteira. O projeto “Rio – Estado da Bicicleta” foi apresentado em seminários, discutido em encontros políticos e elogiado por figuras como Enrique Peñalosa e a vice-prefeita de Londres, Nicky Gravon. Passeios ciclísticos, pedaladas e o Tour do Rio ocorreram em diversas cidades, sempre com bom público; o ex-secretário e deputado eleito Júlio Lopes lançou o livro “Bicicleta, a cara do Rio”; obras pontuais foram inauguradas, repletas de autoridades. Em 2009, a inauguração de um bicicletário de 88 lugares no Maracanã teve a presença do ex-ministro das Cidades, Márcio Fortes. Na ocasião, a Secretaria de Transportes divulgou nota comemorando a possibilidade de os torcedores irem ao estádio de bicicleta, pois “lugar para estacionar não seria mais problema”. Naquele ano, os jogos do Flamengo no Maracanã tiveram média de 40.035 torcedores por partida, oferecendo uma relação, invejada pelos melhores concursos públicos, de 454 torcedores por vaga de estacionamento no bicicletário.
No Dia Internacional Sem Carro de 2009, Sérgio Cabral desfilou de bicicleta na região do Maracanã. Conta-se que o Governador foi de carro até um heliponto na Lagoa, para então voar de helicóptero até o centro, onde deu suas pedaladas seguido por dois seguranças. Teceu elogios à bicicleta elétrica e zapt, foi-se embora pelos ares. A performance do governador parece sintetizar precisamente o projeto Rio – Estado da Bicicleta no que diz respeito às relações entre seriedade do trabalho e imagem que se quer vender, entre compromissos efetivos e publicidade desavergonhada.
Todo o sistema de bicicletas públicas em Londres custará, para a Prefeitura, cerca de 120 milhões de libras (mais os 20 milhões pagos pelo Barclays). Se pegar de vez, contribuirá substancialmente para a melhoria da vida na cidade. O aumento progressivo de ciclistas provoca, além da redução de automóveis, alívio nos ônibus e metrôs. Na rabeira, vem a redução na emissão de ruído e gases poluentes, a desobstrução de ruas e de áreas tomadas por estacionamentos e, ainda, uma convivência urbana deveras simpática.
Para a governança tupiniquim, a cifra londrina é uma pechincha. Os cerca de R$ 350 milhões equivalentes não pagam os três últimos anos de publicidade do governo de Sérgio Cabral. Tampouco pagam obras de viadutos brutais cindindo bairros e empurrando congestionamentos para alguns quilômetros adiante. E nem de longe pagam as reformas de estádios que chegarão à Copa com o exato mesmo número de lugares que têm hoje. E nem mesmo pagam – ó céus! – a frota de helicópteros com a qual meia dúzia de governadores e prefeitos trafegam diariamente nas cidades que governam e que não conseguem fazer andar.
Roberto Andrés
Um dos fundadores da PISEAGRAMA, foi editor da revista de 2010 a 2020.
Como citar
ANDRÉS, Roberto. De bicicleta, pela direita. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 1, p. 42-45, jan. 2010.