DIREITOS
NÃO HUMANOS
Texto de Paulo Tavares, Alberto Acosta, Luis Macas, Mario Melo e Esperanza Martínez
Direitos não humanos, vídeo de Paulo Tavares
Nesta série de entrevistas, ativistas, escritores, políticos e ambientalistas equatorianos discorrem sobre o processo cidadão que colocou na constituição do país os direitos fundamentais de rochas, montanhas, deltas de rios e dos mares. Introdução e entrevistas por Paulo Tavares.
Publicado originalmente em 1990, um ano após a destruição do Muro de Berlim, o livro O Contrato Natural, de Michel Serres, narra a emergência de uma nova ordem mundial, em que a lógica bipolar da Guerra Fria cedia lugar para um redesenho dos arranjos globais de poder. Para Serres, no entanto, as transformações mais cruciais em curso na época não eram geo-políticas, mas geo-lógicas: “de agora em diante haverá lagos de humanidade, atores físicos nos sistemas físicos da Terra”. A capacidade tecnológica e os efeitos da interferência humana em dinâmicas ecológicas globais se tornaram tão poderosos que a própria humanidade se transformou no equivalente de uma força geológica, que a partir de então seria determinante na definição da história futura da Terra. Devido à violência intrínseca e ao potencial destrutivo de tal força, Serres afirma que é necessário imaginar novas maneiras de conceituar o “objeto-mundo”. As transformações necessárias são ao mesmo tempo filosóficas e jurídicas, epistêmicas e políticas.
A natureza, não mais entendida como um objeto inerte disponível para a apropriação sem limites, deveria ser entendida como um sujeito participante de uma forma de “contrato social” que abrange tudo o que excluímos de nossas definições de sociedade. A história tornou os seres humanos equivalentes às forças naturais; em contrapartida, conclui Serres, a natureza deveria ser dotada de direitos semelhantes àqueles conquistados pelos humanos ao longo da história.
Serres começa descrevendo a obra Luta com Porretes (1820-1823), de Francisco Goya. Esse mural retrata dois homens lutando entre si em um atoleiro. A imagem é uma alegoria para elaborar uma crítica da relação entre os seres humanos e o ambiente: a luta simboliza a guerra ou a política e, por extensão, o contrato social, levados a cabo por protagonistas que parecem alheios ao seu meio. Ainda assim, eles estão completamente imersos no ambiente, e a lama vai eventualmente engoli-los, levando a uma morte coletiva independentemente de quem vencer a batalha.
Junto a Goya, o prefácio do livro de Serres poderia ter incluído imagens de dois desastres ambientais: do lado comunista, o acidente na Usina Nuclear de Chernobyl, em 1986, que, como disse o próprio Mikhail Gorbachev, “foi talvez a verdadeira causa do colapso da União Soviética cinco anos mais tarde”; e, do lado capitalista, o vazamento do Exxon Valdez, em 1989, o maior desastre petroleiro da história dos Estados Unidos até o vazamento da BP no Golfo do México, em 2010. Suas consequências catastróficas nas costas intocadas do Alasca motivaram uma cobertura midiática de massa e tiveram um papel fundamental em dirigir a atenção do público a uma crise ambiental em formação.
Nos termos do filósofo, a “natureza global” é, sobretudo, um novo terreno epistemológico no qual as divisões que separavam humanidade e meio ambiente, cultura e natureza, o antropológico e o geológico se tornaram borradas. Esses deslocamentos espaciais não são apenas tecnológicos, mas também relacionais, e, portanto, exigem uma nova geopolítica, o que, em última instância, requer o estabelecimento de uma nova constituição socioecológica – ou “contrato natural” – na qual a natureza está em pé de igualdade com os humanos e assume o status de um sujeito portador de direitos.
Traçando um paralelo com o livro de Bruno Latour, Jamais Fomos Modernos, publicado apenas um ano após o de Serres, poderíamos dizer que o contrato natural é um mecanismo que desestabiliza o regime de fronteiras entre o que Latour chama de “Constituição Moderna” – uma lei fundacional constituída por meio de uma divisão da realidade em dois polos, a saber: o mundo dos objetos e o mundo dos sujeitos, da natureza e da cultura.
Os processos coloniais e pós-coloniais pelos quais o direito constitucional da modernidade se tornou hegemônico foram criticados sobretudo em relação à sua violência cultural estrutural – em outras palavras, porque a difusão da modernização foi guiada em grande medida pelo intuito destrutivo de modelar e homogeneizar outras formações culturais em favor de paradigmas ocidentais de civilização. O Contrato Natural, de Serres, permite-nos entender esse processo por uma perspectiva diferente, mas complementar, segundo a qual não apenas a questão da hegemonia cultural é importante, mas também a imposição de uma “natureza hegemônica”, que não aceita outras definições senão aquelas de objeto e propriedade.
Em 2008, depois de dez anos de sucessivas agitações sociais e convulsões políticas, o Equador aprovou uma nova Constituição Nacional na qual a natureza, junto aos seres humanos e de forma similar a eles, é incluída como sujeito da lei. O fundamento “animista” desse texto jurídico, que concede direitos fundamentais a elementos como rochas, montanhas, deltas de rios e os mares, introduz uma mudança jurídico-epistêmica radical que desafia as rígidas fronteiras entre as esferas da natureza e da sociedade, da ecologia e da política, projetando um universalismo radicalmente novo entre humanos e não humanos.
Acredito não ser uma coincidência que os fundamentos histórico-políticos dessa lei constitucional datem da época em que Serres estava escrevendo O Contrato Natural, mais precisamente no momento das emblemáticas revoltas indígenas do início dos anos 1990, que transformaram completamente a paisagem política do Equador e reverberaram em ondas de emancipação por toda a América Latina. Para o filósofo, de forma similar ao que aconteceu no Equador, esboçar esse novo contrato natural-social pressupunha recuperar as memórias profundas de uma cosmopolítica milenar.
Socialismo biocêntrico – Alberto Acosta
Os direitos da natureza devem ser vistos dentro do processo histórico mais amplo de emancipação da humanidade como uma expansão permanente de direitos. Lembre-se, os indígenas não tinham qualquer direito. No início da conquista, eles sequer tinham alma. Acreditava-se que eles eram a extensão do mundo animal. Escravos não tinham nenhum direito, mulheres não tinham nenhum direito, crianças não tinham nenhum direito. Esses direitos foram gradualmente conquistados, e cada avanço teve que enfrentar resistência. Hoje em dia, as pessoas se perguntam como é possível que a natureza tenha direitos. As mesmas vozes, lógicas e os mesmos discursos estiveram presentes antes – as mesmas vozes que se opuseram aos direitos dos escravos ou das mulheres.
Estritamente falando, os direitos da natureza garantem aos seres humanos um direito fundamental: o direito à existência. Se nós não garantirmos os direitos da natureza, a natureza pode se tornar inabitável para os seres humanos. Ao assegurar os direitos da natureza, estamos assegurando os direitos da existência humana. Precisamente porque compartilhamos a mesma existência, temos os mesmos direitos.
Pode-se identificar a origem da constituição atual a uma reivindicação do movimento indígena em 1990, que inaugurou uma nova era ao dizer: “Estamos presentes na vida deste país. Até agora, estivemos permanentemente marginalizados na esfera política nacional, tratados como objetos, mas somos sujeitos e exigimos um novo acordo nacional”. Nesse mesmo momento, as questões ambientais, que já eram discutidas no início dos anos 1970, tornavam-se cada vez mais evidentes. De certa maneira, muitos indígenas são ecologistas — não necessariamente todos, mas muitos – e isso facilitou o encontro entre o movimento ecologista em ascensão e o mundo indígena que emergia com força na vida política do nosso país.
Como surgiram os direitos da natureza? Uma das razões é que, na lógica cultural das civilizações indígenas, a natureza não é algo remoto. Não é como se os humanos estivessem aqui e a natureza, lá. Do ponto de vista do capitalismo, a natureza está aí para ser explorada, para ser privatizada, para ser subordinada às necessidades do homem. Não, errado: às demandas do capital, não do homem – é importante apontar isto.
No mundo indígena, essa ideia não existe. Os indígenas são parte da natureza, ambos estão intimamente ligados. Dentro dessa perspectiva, quando falamos em um Estado plurinacional, sobre respeitar a Pachamama, sobre o “bem viver” ou sumak kawsay (em quíchua), sobre direitos coletivos, estamos nos reapropriando de todos os elementos “civilizatórios” básicos dessas culturas que foram massacradas e exploradas ao longo da conquista e dos períodos colonial e republicano. Portanto, parece necessário dar à natureza um lugar preponderante na fundação jurídica do Estado, como um sujeito com os próprios direitos. No mundo indígena a natureza nunca precisou de direitos, simplesmente porque nunca esteve às margens. Entretanto, do nosso ponto de vista, foi necessário incorporar esses direitos.
Estritamente falando, os direitos da natureza estão relacionados a uma cosmologia moderna, porque são um exemplo em que seres humanos concedem direitos ao mundo animal e a todos os seres vivos. Há os trâmites da modernidade por trás de tudo isso, se bem que, uma vez que esses direitos foram concedidos, eles são direitos inerentes, próprios da natureza em si e, portanto, não podem ser negados. É uma discussão jurídica importante.
Os direitos da natureza são eminentemente biocêntricos, não antropocêntricos. Os direitos da natureza não cabem na lógica do socialismo tradicional, que é também antropocêntrico. Quanto ao capitalismo, ele é essencialmente antropocêntrico. É o modo dominante de civilização, um sistema de valores, uma civilização em si mesma – a civilização da desigualdade, como disse Joseph Schumpeter. Essa é a realidade. O socialismo, por sua vez, precisa reinventar-se a partir de reflexões sociobiocêntricas. É claro, a exploração do trabalho é uma luta fundamental, mas não é a única. Temos que reencontrar a natureza. Talvez devêssemos, portanto, falar de um socialismo biocêntrico, um socialismo do sumak kawsay.
Comunalidade – Luis Macas
Quando falamos de comunidade, estamos tratando tanto da comunidade humana quanto da natural. Elas nunca estão separadas – isso é a Pachamama, Mãe Terra. E dentro da Pachamama, os seres humanos são elementos minúsculos. A Pachamama é pautada por vários elementos, dentre os quais o princípio da relacionalidade. Acreditamos que tudo está inter-relacionado. Para nós, tudo tem uma vida. Essa concepção nos permitiu reconhecer que a comunidade é de todos para todos, que os meios de produção não podem ser propriedade de uma pessoa. A introdução da ideia de sumak kawsay na Constituição deriva dessa “matriz comunitária”.
No mundo de hoje, como podemos reconstruir esse modo de vida se não levarmos em consideração a Mãe Natureza? Do ponto de vista do mundo ocidental, sempre podemos fazer esforços e tentar consertar as coisas, mas, como sabemos, isto não está funcionando. Como disseram colegas da Bolívia, o pecado original da civilização ocidental é precisamente o de ter se apropriado da natureza, dos “meios de produção” ou, como dizem os ocidentais, dos “recursos naturais”, porque estes são parte da própria vida; são fundamentais para todos, para a comunidade humana assim como para a comunidade natural. Para nós, a natureza não é um objeto, mas um sujeito. É por isso que nossos anciãos colocam pedras à mesa – para que as pedras possam falar conosco, para que nós possamos falar com elas e dizer: “estas pedras, que têm tantos anos, têm a mesma idade de nossos ancestrais e são parte de nosso espaço comum de vida”. É isso que chamamos de comunidade.
É importante dizer que o sistema em si é muito violento em relação a nossas comunidades. E muitas pessoas estão começando a se adaptar a esse modelo, abandonando as noções do comunal e do coletivo em favor de valores relacionados à mercantilização, à privatização e, sobretudo, eu diria, à “individualização”. Soa-me muito estranho quando as pessoas dizem que isso é a liberdade, que abandonar as regras fundamentais da comunidade e ingressar como mais um indivíduo no mundo do consumismo é liberdade. Essas formas de vida são muito prejudiciais a nossas comunidades e têm estado cada vez mais presentes entre nós.
Nossa luta começa com a defesa dos nossos territórios, ambiente que é parte essencial da vida. Quando falamos de território, não nos referimos “ao território dos Quíchua” ou “território dos Achuar”. Estamos falando sobre a natureza. Infelizmente, aqui, quando as pessoas falam sobre território, isto é comumente entendido como “Vamos dar-lhes um pouco de terra para que a comunidade possa viver, vamos dar-lhes títulos de propriedade”. Essas lutas foram rotuladas pelos antropólogos como “lutas reivindicativas”: luta pela terra, pela identidade, pela língua, e só! Mas os movimentos indígenas não estão lutando por algo que seria exclusivo a nós – estamos lutando por algo que tem a ver com a própria vida.
O encontro entre os nossos povos aconteceu nos anos 1970 e 1980 e teve seu auge nos anos 1990. Não fossem as mobilizações da década de 1990, talvez o povo do Equador ainda estaria dizendo que não há indígenas neste país. A presença massiva dos povos indígenas nas ruas foi uma forma de “linguagem” para que nos fizéssemos entender. Talvez porque falamos outra língua, nunca nos entenderam, de forma que tivemos que utilizar a língua da mobilização.
Nós nos fizemos ouvir, embora semanticamente não fôssemos entendidos, ao dizer que já não queríamos aquele Estado. Esse foi o momento em que o projeto se tornou visível – porque ele foi um longo processo, iniciado por nossos anciãos –, o projeto que afirma que somos uma pluralidade de povos, não uma única sociedade, mas diferentes culturas, povos, identidades. Assim, nos anos 1990, apresentamos uma proposta ao governo pedindo que essa diversidade fosse reconhecida com a formação de um Estado plurinacional. Mas esse projeto vai além de um mero reconhecimento da diversidade. Não queremos ser reconhecidos de maneira descritiva – “OK, há muitas nacionalidades, falando tais diferentes línguas, etc.”. Temos que questionar a própria estrutura do Estado-nação.
O projeto do movimento indígena não é um projeto para o povo indígena; é um projeto popular, que não vem exclusivamente de povos indígenas; um projeto que está emergindo gradualmente do questionamento da realidade dos povos indígenas, dos afrodescendentes, dos mestizos.
Décadas atrás havia uma mulher, chamada Dolores Cacuango, que lutou duramente para recuperar nossas terras. Cacuango era uma mãe de nosso povo e estava em contato com partidos de esquerda. Como dizem, viemos de uma “tradição oral”: ninguém tomava notas em reuniões, assembleias ou congressos. Eu me lembro de que havia uma presença crescente da Esquerda Cristã. Eles eram jovens, não eram da comunidade, mas estavam presentes nas discussões por aqui. Através desse processo, reunimos intelectuais de esquerda, sociólogos, antropólogos e ecologistas – pessoas que estiveram próximas a nós e crescemos juntos.
Mas quando foi que a esquerda nos entendeu? Por muito tempo ela havia tentado colocar o Marxismo em prática ao pé da letra, proletarizando o índio. Um dia, com alguns amigos, dizíamos que, se você ler o Marxismo literalmente, ele parece algumas vezes ser complementar ao nosso pensamento. Marx fala de “comunidades primitivas”, mas supostamente não queria um retorno ao primitivo. Falava que os meios de produção deveriam ser comunais, mas temos que interpretá-lo. Ele me ajuda a olhar a realidade, mas temos que parar de pensar sobre esses modelos que, infelizmente, priorizam o ser humano, e isto é o que Marx diz quando ele fala sobre “liberar o homem”. Mas e o Outro? E a natureza?
As lutas dos indígenas, camponeses e trabalhadores urbanos têm convergido, juntando-se lentamente. Ainda há muito diálogo a ser construído, que é o que chamamos de “interculturalidade”. Pensamos que a incorporação recente dos direitos da natureza na Constituição seja um elemento central na descolonização dos esquemas intelectuais do sistema ocidental ou eurocêntrico.
Além do humano – Mario Melo
O ano de 2007 foi crucial para o ambientalismo. Os efeitos da mudança climática se tornavam cada vez mais evidentes. Naquele momento, houve um frenesi público e midiático em torno do documentário Uma Verdade Incoveniente, do ambientalista americano Al Gore. Isso coincidiu com o momento no qual a mudança política e social estava em alta na agenda equatoriana. Os governos no poder desde 1987 haviam se mostrado incapazes de garantir os direitos dos cidadãos e a continuidade da democracia. Havia uma forte demanda por mudanças nas esferas jurídica e política, e a proposta talvez mais revolucionária foi feita pela Assembleia Constituinte: o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos.
Tivemos diversas inspirações para a proposta de reconhecer os direitos da natureza. Do ponto de vista jurídico, talvez uma das mais interessantes foi o famoso caso ocorrido nos Estados Unidos, nos anos 1970, conhecido como Sierra Club v. Morton. A companhia Disney planejava criar um parque de aventuras em uma zona especialmente importante de um ponto de vista natural, particularmente devido à presença de sequoias, as imensas árvores que simbolizam a identidade californiana e que são muito importantes do ponto de vista biológico. A ONG Sierra Club tomou providências legais para impedir a realização do projeto. Por fim, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu contra a Sierra Club, argumentando que, sem direitos patrimoniais sobre a floresta, eles não poderiam impedir a construção. Uma vez que a Sierra Club não possuía a floresta ou qualquer uma das árvores, eles não puderam sustentar o argumento jurídico de que sofreriam dano. No entanto, um dos juízes, William O. Douglas, fez uma intervenção significativa, questionando por que as próprias árvores não podiam exigir justiça, segundo os seus interesses e direitos.
Do ponto de vista do direito, muitos juristas e colegas acreditavam ser impensável que um ser não humano pudesse ter direitos, o que resultou em um debate jurídico. Ora, em nosso sistema ocidental há entidades que não são humanas, que nem mesmo têm uma existência real, mas possuem direitos, como as pessoas jurídicas. Corporações têm direitos e são definidas pela lei como “pessoas jurídicas”, o que na verdade é apenas uma quantia de capital. Então, se essas pessoas fictícias têm direitos, por que não a natureza, cuja existência é inegável?
Jurisdição universal – Esperanza Martínez
A América Latina herdou as visões revolucionárias do Marxismo europeu e a ideia de que o sujeito da mudança social era o proletariado. Mas a questão no Equador era: “Nós não temos fábricas, então onde está o proletariado?”. Os únicos trabalhadores que poderiam ser qualificados como proletários eram aqueles da indústria petroleira, mas eles tinham bons salários, o que era um paradoxo. O movimento indígena emergiu originalmente como um movimento de trabalhadores rurais, mas eles não são realmente trabalhadores rurais. Na realidade, os indígenas emergiram como um paradigma distinto. Era difícil para a esquerda assumir que eles não eram trabalhadores rurais, pois isto desafiava as noções clássicas da emancipação. Acredito que a América Latina teve um papel fundamental na construção dessa nova percepção dos povos indígenas como atores de processos de emancipação.
Quando nós aprovamos os direitos da natureza na Constituição, esse processo implicou uma reflexão sobre a definição de natureza. Para a ciência ela é uma coisa, para o povo indígena, outra, para o direito, ainda outra, e para o capitalismo, ainda outra. Para o capitalismo, a natureza é um ambiente: um lugar do qual se extraem recursos dentro de certos limites. O povo indígena tem uma concepção diferente: a natureza designa não apenas outras espécies e o ecossistema, mas também seres espirituais. Então, não estamos falando da mesma coisa.
Quando decidimos adotar o termo Pachamama, tratava-se, sobretudo, de um reconhecimento dos sábios, que têm um vínculo muito forte com a terra. Também era uma crítica às concepções clássicas de meio ambiente e natureza. Era um ato de abertura à diversidade, ou seja, o reconhecimento de que deve haver um esforço de interpretação sobre o que entendemos como natureza. Enquanto a modernidade adotou um modelo exclusivo de natureza, nós dizemos que não há apenas uma – há muitas naturezas, tantas quanto há culturas.
O reconhecimento dos direitos da natureza a coloca numa posição que vai muito além da condição funcional. O seu propósito não é mais o de satisfazer o desenvolvimento, mas ela adquire direitos de existência próprios. Os direitos da natureza também levantam a questão de quem os defende. Já não se trata de famílias defendendo os próprios interesses em um determinado local, mas de defender o meio ambiente como sujeito.
Depois do desastroso vazamento de petróleo no Golfo do México, começamos a pensar em um instrumento potencial para educar a sociedade sobre os limites impostos por desastres naturais tão extremos. Ao mesmo tempo, nossa preocupação era desenvolver os direitos da natureza, que já havíamos adotado no Equador. Então procuramos importantes ativistas nacionais e internacionais com a ideia de formular uma demanda jurídica. Convidamos Vandana Shiva, Nnimmo Bassey, líderes indigenistas do Equador, o presidente da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador, a Confederação dos Povos da Nacionalidade Quíchua. Inicialmente, entramos com o processo por meio do princípio da jurisdição universal, baseando-nos na ideia de que os direitos da natureza não seriam protegidos por ninguém se nós não começássemos a trazê-los à tona.
Quando dizemos que o conceito dos direitos da natureza é muito peculiar, o fazemos porque, na realidade, já havia, nos Estados Unidos, reivindicações em relação aos efeitos sofridos por comunidades costeiras e pesqueiras – o que chamavam de “perda de rendimentos do mar”. Mas ninguém pensava sobre o mar em si. E o mar é algo mágico, não é? Se há um símbolo da própria vida, esse símbolo é o mar. Então era um tanto perverso pensar que a única solução para esse caso fosse definida com base em uma “perda de rendimentos do mar”.
Propusemos elaborar o processo segundo algumas premissas básicas. Primeiro, não se estava buscando compensação financeira. Evidentemente, compensações para as pessoas afetadas são justas, mas não resolvem o problema. O processo foi pensado para introduzir os três direitos básicos que são reconhecidos à natureza no Equador. Como precedente a esses três direitos há o reconhecimento de que a natureza existe. A Constituição equatoriana dá à natureza três direitos: precaução, reparação e proteção. Em relação ao direito à precaução, demonstramos que já haviam existido sinais de alerta de que era perigoso explorar petróleo nessa profundidade. Em relação à reparação, a Constituição equatoriana reconhece o princípio da “reparação integral”. Nesse caso, o que pedimos à BP foi a devida reparação da área. Um dos elementos da reparação é a compensação. Mas, uma vez que o nosso pedido não buscava compensação econômica, propusemos a ideia da compensação em relação ao próprio dano causado.
Por exemplo, se a BP deixou vazar cinco milhões de barris, ela deve comprometer-se a deixar cinco milhões de barris no solo em outra parte do planeta. Esse é um mecanismo de compensação, e a compensação é parte do direito de reparação. Quanto ao direito à proteção, a ideia era construir uma rede internacional e assumir uma posição de “cidadãos internacionais” ou “cidadãos do planeta”. É por isso que precisávamos de alguém como Nnimmo Bassey, da África, ou Vandana Shiva, da Índia, porque o vazamento de petróleo também afetou essas áreas. Então, a ideia não era ter uma representação de cada região, mas criar uma noção de que a defesa dos direitos da natureza está distribuída pelo planeta, e que, uma vez que nenhum outro tribunal pode aceitar esses pedidos, esse caso deveria ser aceito pela Corte Constitucional do Equador sob o princípio da jurisdição universal.
Quando falamos sobre o vazamento de petróleo como uma violação dos direitos da Pachamama, o que estamos dizendo é que o princípio da natureza reconhecido pela Constituição equatoriana não está limitado às fronteiras geográficas do Equador e a suas árvores e plantas, mas se estende à Pachamama. Não é exatamente o mesmo que a ideia de jurisdição universal, que foi formulada em relação aos crimes contra a humanidade, mas permite-se assim uma reflexão crítica sobre os crimes contra a própria existência, da qual a humanidade é apenas uma parte.
Paulo Tavares
Arquiteto, participa do coletivo Rádio-Muda, é pesquisador Capes/MinC, e professor do Centro de Pesquisa em Arquitetura da Goldsmiths, Universidade de Londres.
Alberto Acosta
Escritor e ativista, ex-presidente da Assembleia Constituinte Equatoriana.
Luis Macas
Liderança política quíchua e membro fundador da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador.
Mario Melo
Jurista e escritor, membro da Fundación Pachamama, no Equador.
Esperanza Martínez
Escritora e ecologista equatoriana, membro da ONG Acción Ecológica.
Como citar
ACOSTA, Alberto; MARTÍNEZ, Esperanza; MACAS, Luis; MELO, Mario; TAVARES, Paulo. Direitos não humanos. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 10, p. 2-9, mai. 2017.