É GREVE!
Texto de Rita Velloso e João Paulo Fonseca
Pra ver se dão valor, pinturas de No Martins
A Greve dos Negros, que parou a cidade de Salvador em 1857, tem muito a nos dizer sobre as estruturas de nossa sociedade e as possibilidades de insurreição no Brasil de hoje.
Revolta! Seria adequado caracterizá-la como uma súbita mudança no movimento e ritmo dos corpos que ocupam as cidades? Sim, as cidades – lugar em que as relações econômicas, sociais e de trabalho se transformam veloz e vorazmente – de que modo expressam uma contestação? E se urge investigar os conflitos definidores daquelas relações, ou, melhor dizendo, de que modo estes conflitos estão fisicamente expressos no território, a greve, como fenômeno eminentemente urbano, pode nos ajudar a decifrar o enigma. Afinal, no Brasil urbano, construído sob o signo de quatro séculos de escravidão dos africanos, e cujos bairros foram erguidos para se dividirem entre onde negros e mestiços moram e onde negros e mestiços trabalham, o que seria da cidade se estes trabalhadores fizessem greve?
Há muito a segregação imobiliza as classes urbanas subalternas pelo transporte precário e pelo preço da moradia em bairros centrais. Sob tais condições de controle dos movimentos, que atingem em cheio a população afrodescendente, “libertada” no ocaso do século XIX, é possível enxergar uma atuação fundamental do povo negro na história das insurreições urbanas brasileiras. Não se trata de ignorar o legado histórico dos trabalhadores imigrantes de origem europeia, que estruturaram a luta sindical à medida que nutriam a incipiente indústria do país, mas de uma consideração de ordem cronológica. Em fins da década de 1820, por exemplo, africanos livres e escravizados, juntamente com outros trabalhadores livres, lideraram um paro na Fábrica de Pólvora Ipanema, exigindo uma série de melhorias, como diárias e melhores rações na fábrica – por sinal, propriedade da “realeza”.
Em Salvador, na Bahia, é possível descrever uma clara transição no caráter das insurgências ao longo do século XIX. Os conflitos iniciais baianos se articulavam em torno de questões étnicas mais estritas, a exemplo da Revolta dos Malês, levante de escravos muçulmanos ocorrido em 1835. Ações mais abrangentes, com recorte de classe mais preciso, passaram a acontecer com maior frequência ao longo dos anos. O vínculo com a questão racial, no entanto, se manteve. Da parte do Estado, paralelamente, houve uma gradual criminalização da pobreza e o surgimento de mecanismos de vigilância, sempre articulados com os espaços urbanos do trabalho negro.
A Greve Negra de 1857, marco épico de lutas raciais e de classe, foi levada a cabo por africanos, escravizados, alforriados e libertos, gente de origem diversa que forjava identidades comuns em meio à exploração e à repressão. Ainda que persistissem vestígios de lutas intestinas entre grupos africanos, elas foram atenuadas em 1857 pela necessidade de união e resistência da luta comum. Tendo seus corpos constantemente devassados, os africanos foram capazes, ainda assim, de comandar um movimento que parou a cidade por mais de uma semana.
O modo como o grupo elaborou o levante, congelando uma das maiores e mais importantes cidades do Brasil na época – e sua primeira capital –, é um processo que merece ser explorado pela historiografia das insurgências. A compreensão de um fato histórico dessa dimensão vai muito além da mera narrativa de um passado perdido, especialmente porque as possibilidades de ocupação das cidades e a luta pela vida e pela dignidade ainda enfrentam dificuldades profundas, reflexo contínuo de modelos de opressão supostamente superados.
João José Reis, no artigo A Greve Negra de 1857 na Bahia, de 1993, foi pioneiro em explorar as peculiaridades do evento. Até então, pouco se sabia e se falava sobre a greve. Reis evidentemente fez uma escolha política ao falar em “Greve Negra”, enfatizando, a um só tempo, o caráter étnico do conflito unido ao de insurgência trabalhista. O vocábulo “greve” inexistia no Brasil oitocentista. A palavra é uma herança do francês, língua em que tem o mesmo significado do português. Foi usada inicialmente para classificar os trabalhadores da Place de Grève – hoje, Place de l’Hôtel-de-Ville –, outrora o mais importante porto de Paris e lugar em que se reuniam desempregados e, posteriormente, trabalhadores insatisfeitos em busca de melhorias funcionais. Daí surgiu o termo “grevista”. Reis cria, assim, um paralelismo entre esses territórios e tempos de luta. Nesse sentido, é interessante notar que o principal ponto de encontro dos “grevistas” de Salvador era, também, a zona do porto, a chamada Cidade Baixa, onde transitavam, buscavam emprego e notícias, tomavam cachaça, vadiavam e, naturalmente, onde conspiravam.
Se entendermos a cidade como máquina, teremos que presumir que seu funcionamento se deve a algum tipo de motor. As cidades são, no entanto, máquinas únicas, materializações da história, da cultura, da geografia e da sociedade de cada local. Assim, se o motor de Londres no século XIX era seu parque industrial, recheado de máquinas a vapor que queimavam o carvão abundante das minas inglesas, o centro mesmo do capitalismo, no caso da cidade de Salvador, no mesmo período, o motor da cidade era a mão humana. A mão de negros, escravizados ou não, no exercício de trabalhos precários, movimentava absolutamente tudo na cidade da Bahia, um dos grandes portos da periferia do mundo atlântico.
Londres e Salvador parecem demarcar uma diferença abissal, mas o carvão inglês era retirado por homens em regime rudimentar de trabalho, análogo aos regimes de servidão, ao mesmo tempo que nas indústrias canavieiras do entorno de Salvador, no chamado Recôncavo Baiano, homens escravizados conviviam com o trabalho assalariado em usinas movidas também por máquinas a vapor. Seria esse abismo tão largo assim? Seria tão largo o abismo entre os homens e as mulheres daquele tempo e o precariado no século XXI? Tratemos, pois, das particularidades de Salvador, a maior cidade negra fora da África, de tantos entrelaçamentos de classe, racismo e opressão, bem como de resistência dos oprimidos a essas condições.
Em 1857, na capital da Bahia e possivelmente maior cidade do Brasil, o principal modo de transporte de pessoas e mercadorias eram os chamados negros de ganho – ganhadores e ganhadeiras –, carregadores que levavam as chamadas cadeirinhas de arruar, sacas de fumo, cana, água potável, fezes (sim, fezes), bem como todo o tipo de manufatura que as elites locais importavam da Europa. Os carregadores de mercadoria pesada se organizavam em grupos chamados “Cantos”, nome polissêmico que representa em diversas dimensões o trabalho negro urbano.
Os escravizados de ganho deveriam entregar ao “proprietário”, periodicamente, uma quantia fixa em dinheiro. Quase sempre deveriam prover o próprio sustento, podendo eventualmente morar em quartos alugados ou cortiços, nas zonas à margem da cidade, onde também habitavam africanos livres. Mesmo brancos empobrecidos, mestiços e negros nascidos no Brasil se mantinham à margem desse tipo de serviço de carga, visto como degradante. A divisão da sociedade em verdadeiras castas, paralela à crescente criminalização da pobreza, se dava em conjunto com a “elitização do ócio”. A “ralé brasileira”, como define Jessé de Souza, possui cor e lugar definido no Brasil, e deve estar presente na cidade formal apenas em funções de trabalho e se recolher para seus casebres ao cair da noite. Toque de recolher sem guerra. Sem guerra… Os efeitos urbanos desses hábitos persistem na aridez dos espaços públicos dos modernos projetos de habitação “de interesse social”, resumidos a quadras de futebol, quando existem, ou na concentração, por outro lado, das áreas verdes e do lazer contemplativo em bairros luxuosos e condomínios fora da cidade.
A exploração dos ganhadores estava diretamente ligada à soma, em espécie, que deveriam entregar periodicamente, permitindo certa flexibilidade na escolha do serviço a ser feito. Era frequente que o ganhador fizesse dinheiro em batuques, rodas de capoeira, adivinhações, artesanato. Essas formas de trabalho precário guardam, por suas condicionantes, semelhança constrangedora com o capitalismo do século XXI. Do carregador de cadeirinhas ao motorista de Uber ou ao caminhoneiro “profissional liberal” – estamos na seara da exploração do trabalho alheio, sem regulações que definam ganhos mínimos, jornadas de trabalho, direitos sociais. Convivemos no Brasil, também, com serviços informais idênticos aos do passado, a exemplo dos meninos que transportam cargas e até mesmo pessoas em seus carrinhos, nos supermercados e nos balneários em torno de Salvador.
Existia, porém, uma diferença fundamental nos modos dos africanos de encarar o tempo e o trabalho, que se chocam com a forma como tais métricas são tomadas no sistema capitalista. O trabalho era medido em volume de serviço, e não pelo tempo cronológico empregado na função. A diferença foi observada por viajantes, como o inglês James Wetherell, que, tendo vivido na Bahia entre 1842 e 1857, se impressionava com a liberdade com que os africanos geriam o próprio trabalho: “São extremamente independentes, eles antes perderiam a chance de ganhar um salário do que carregar mais do que considerem conveniente”, declarou. João José Reis identifica aqui uma forma de oposição ao trabalho/mercadoria informada por modos de trabalho ancestrais. O evidente descompasso com o modelo capitalista europeu estaria nos fundamentos da frequente desobediência às tentativas de controle do Estado.
Os Cantos, pequenos grupos de carregadores das cargas mais pesadas, foram os principais articuladores da Greve Negra. O Canto era composto por quatro, seis ou oito homens, que faziam sua atividade entoando músicas, frequentemente em iorubá. Os grupos tinham ritos e códigos de conduta próprios, que remetiam a modelos comunitários da África Ocidental. Etnicamente delimitados, cada Canto tinha um nome, respectivo ao local da cidade em que se reuniam. A etimologia do nome vem, portanto, de cântico, mas também de esquina, encruzilhada – fundamental na cultura da África Ocidental pelo sentido místico, bem como, para a lógica comercial e urbana, pela função de encontro, troca e visibilidade. Nas esquinas, conviviam artesãos de toda espécie, vendedoras de quitutes, e notícias entre africanos estabelecidos e aqueles recém-chegados à terra.
Os grupos tomavam nomes como Canto do Portão de São Bento ou Canto do Cais Dourado, mas não ficavam estacionados; eram fluidos, se mantinham em movimento nos serviços pela cidade. Como se as ruas mesmas se atravessassem por meio de seus corpos negros, confundidos na massa da cidade, o ato de parar se dava como uma quebra desse mimetismo, gesto iminente de vontade humana.
Havia eventuais reclamações sobre os Cantos por incômodo à ordem pública, devido aos batuques ou mesmo por associação a acusações de furto de lojas e de mercadorias, infladas por uma cultura de medo que já ligava trabalho negro e crime. Ao contrário da imagem de desordem que os brancos tinham do serviço, que suportavam por necessidade, os Cantos tinham normas de conduta rígidas, sempre coordenadas pelo “capitão de Canto”, reconhecido em cerimônia pelos seus e pelos demais Cantos – numa hierarquia que não refletia, necessariamente, aquela do mundo dos brancos, havendo, por exemplo, capitães escravizados com subordinados livres. Muitos componentes dos Cantos eram militares em suas nações de origem ou mesmo aristocratas e sacerdotes, condições que eram renegociadas no contexto da vida de escravizados no Brasil, da travessia, da substituição dos parentescos desfeitos.
Desde a Revolta dos Malês – que, embora tivesse sido derrotada, acendera uma luz amarela entre a elite escravocrata –, a província da Bahia passara a criar leis para evitar casos semelhantes. Em 1836, a cidade de Salvador foi dividida em “capatazias”: tentaram substituir os capitães dos Cantos por capatazes, estes últimos sob as ordens de inspetores regionais de cada capatazia. Substituíam os africanos por agentes policiais. Os inspetores teriam que ser brasileiros de nascimento, alfabetizados, e escolhidos por um juiz, a quem dariam conta das atividades de sua alçada. Cada inspetor e cada capataz receberia um soldo razoável, que deveria ser pago pelos próprios ganhadores, e capatazes e ganhadores deveriam carregar uma pulseira com o respectivo número de matrícula – a dos capatazes com uma insígnia de couro, por status. Controle, vigilância, reordenamento da população no território à revelia de seus desejos: o decreto foi visto como constrangedor e contraproducente para uma cidade dependente dos ganhadores, desagradando, inclusive, parte dos senhores. Acabou sendo suspenso. As diversas formas como os ganhadores o burlavam e as pequenas paralisações que organizavam, sementes da greve de 1857, o tornaram impraticável.
Ainda assim, posturas municipais se tornaram o modelo de controle da circulação dos africanos. O negro era elemento a ser apenas tolerado em certos espaços. O chefe de polícia encarregado no período da Revolta dos Malês tornou-se governador da província em 1850, estabelecendo uma crescente perseguição aos africanos, o que levou alguns deles a retornar aos países de origem, transportados pelas mesmas companhias que os traficaram e a seus antepassados, anos antes, para o Brasil. Em regimes de permanente promoção da desigualdade, a pobreza precisa ser vigiada. Era preciso a todo custo evitar a repetição de eventos como a Revolução Haitiana, sombra constante para os regimes escravocratas e racistas da América.
A importância dos escravizados e a brutalidade do regime eram tais que, em junho de 1857, a Câmara Municipal de Salvador determinou que os ganhadores fizessem registro junto à municipalidade, ao custo de 2 mil réis como taxa de matrícula, além de 3 mil réis por placas com o número da matrícula, que teriam uso obrigatório e seriam penduradas ao pescoço. As taxas seriam pagas pelos próprios negros. Além disso, os libertos teriam que apresentar um fiador, responsável pelo comportamento do matriculado. A quantia era altíssima, equivalente a 15 quilos de carne à época. A lei seria aplicada apenas aos ganhadores, e não às ganhadeiras. A postura seria uma entre muitas legislações de vigilância do homem negro, visto como encarnação da violência, para disciplinar o espaço urbano.
No dia primeiro de junho de 1857, segunda-feira, data em que entraria em vigor a medida de cadastro e “emplacamento” dos ganhadores, a cidade de Salvador amanheceu vazia. É greve! A elevada proporção de negros na cidade e o fato de constituírem uma comunidade necessariamente móvel, por sua ocupação e pelo deslocamento entre os locais de trabalho e de moradia, preocupavam as autoridades. A escravidão urbana era uma “escravidão sem feitor” mas, ao longo do tempo, o medo converteria as forças policiais em feitores.
A grande maioria dos ganhadores de então, escravizados ou libertos, eram de origem nagô (iorubá), o que ajudou a consolidar redes de solidariedade e resistência cultural. Apesar de virem de grupos diversos da região do Benin, alguns hostis entre si, forjaram no Brasil uma unidade possível. Essa forma de solidariedade guardava negociações, diferenças e mesmo disputas internas; afinal, cidade é política. A greve carregava a memória de levantes anteriores, que conferiam experiência na disputa com os agentes oficiais do poder e na articulação entre grevistas, fatores desenvolvidos também pelo convívio urbano de todas essas populações, que, aliás, carregavam para o Brasil uma tradição urbana iorubá.
Com a ordem do “emplacamento” dos ganhadores, a greve começou com adesão total. A revolta evidenciou, pela ausência, o poder dos africanos. Como toda greve, era aposta e era revelação: desnudava, momentaneamente, a origem do trabalho; subvertia a disputa política. O presidente da Bahia suspendeu a cobrança no segundo dia, mas a Câmara advertiu que o problema era menos a taxa única, e mais o desejo de não se sujeitarem aos registros, tentando convencer o presidente a acabar com a greve com apoio da polícia e das forças armadas. No terceiro dia, a elite da cidade, já em desespero, não tinha dúvidas de que o motivo da greve era a marcação simbólica das placas, e os escravizados começaram a ser registrados por seus senhores à força. Alguns negros, obrigados a ir para as ruas, sofriam vexações de todo tipo dos colegas: lhes batiam, lhes arrancavam as placas, eram colocados em rodas para ouvir cantos humilhantes, sofriam troças de mulheres, eram apedrejados por crianças, como em verdadeiros piquetes contra fura-greves.
As mulheres seguiam livres para trabalhar pela cidade, carregando informações e, provavelmente, alimentando a crédito os africanos grevistas, visto que dominavam, quase que completamente, o comércio de alimentos. Assim, a greve seguiu forte, pelo quarto dia e também pelo quinto, nutrindo pesadelos entre os brancos. O Jornal da Bahia de 5 de junho de 1857 anunciava que a província da Bahia estaria sendo “governada por africanos”, assim mesmo, em negrito, dando às palavras a visualidade da escravidão.
A Greve Negra de 1857 é um exemplo de corpos violentados e que, ainda assim, conseguem reagir e desvelar verdades profundas. São potências de paz e o são justamente por surgirem em uma nação em que a paz e o pão são tratados como privilégios. Negritude, classe e crime no Brasil seguem conectados. O encarceramento e o trabalho subalterno crescem. A partir de 1831, proibido oficialmente o tráfico internacional de escravizados, o governo passou a policiar e apreender navios negreiros. Os negros que eram confiscados em tais condições eram alocados em obras públicas, trabalhos compulsórios em troca de um soldo miserável, passando, ironicamente, a ser denominados “africanos livres”.
Acontecimento peculiar e exemplar, a Greve Negra ressoa ainda profundamente em 2019, e nos cabe sermos aqueles “lembradores de inconveniências” da sociedade, como diria Peter Burke. Na cidade, a memória resulta de um aprendizado mimético. Se hábito e memória tornam possível a apropriação das ruas pelas lutas e se barricadas de luta urbana são figuração de situações de apropriação do espaço, para escrever sobre “as inconveniências da sociedade” é preciso entender sua expressão material.
Ao assistirem ao Brasil sendo congelado pela greve dos caminhoneiros de maio de 2018, analistas de esquerda e direita disputavam narrativas sobre o fenômeno. Notícias falsas eram trocadas nas redes sociais. Conflitos se desenrolavam entre os grupos que faziam a greve, o governo federal de legitimidade duvidosa, as entidades patronais articuladas. Quase nada de consenso havia em torno desse fenômeno humano, senão que os caminhoneiros tinham o poder de, literalmente, parar o Brasil; surpreendentemente, justo num momento de apatia política dos atores mais articulados de nosso cenário social.
A greve de 2018 decretou o fim dos restos do pacto de sustentação do governo de Michel Temer. O que se evidenciou é que a economia não é raciocínio contábil, mas economia política. Contra a greve de 2018, governo, forças políticas e imprensa sustentaram, juntos, dois principais argumentos: é um locaute, organizado, portanto, pelas entidades patronais, que toma os brasileiros como reféns, e há infiltrados oportunistas que querem dar à greve uma dimensão política. Contudo, a penetração no debate popular e a continuidade da greve depois das amplas concessões feitas pelo governo demonstraram o contrário: é um movimento autônomo e uma crítica à política da economia.
A economia é política porque não é apenas algo que se ergue no relevo dos mercados, mas também e sobretudo da topografia da sociedade – como o mover daqueles trabalhadores que depois de nove dias de luta (em 29 de maio de 2018) se recusavam a voltar ao trabalho. Como em 1857, caminhoneiros nos fizeram ver que sem essa mobilização diária de corpos e energias, nada se pode enfrentar: nem a contabilidade financeira, nem a servidão perene. Se há diferenças significativas entre os dois eventos, há também pontos em comum que dizem muito sobre um país que segue desigual e violento e cujas engrenagens primordiais giram às custas da precarização e da carga pesada sobre os corpos de alguns.
Na terça-feira, 9 de junho de 1857, a Câmara reeditou o decreto das matrículas, cedendo em alguns pontos. O transporte dos ganhadores começou a se normalizar, mas muitos pretos apareceram para trabalhar sem as placas. No dia 12, alguns foram vistos com as placas pela cidade. Elas não fariam parte da paisagem soteropolitana por muito tempo; pela desobediência, caíram em desuso, não sem antes alavancar brigas e prisões. Se a Greve Negra teve sucesso, pelo raro momento em que se cruzaram organização coletiva, vida urbana, identidades forjadas nas lutas e derrotas políticas anteriores, ela não ocorreu pelo apagamento de conflitos internos, verdadeiros. Pensar a ocupação das cidades é também pensar os corpos que ocupam as cidades.
Rita Velloso
Arquiteta e Urbanista, doutora em Filosofia, leciona na Escola de Arquitetura da UFMG. Coordena, entre outras, a pesquisa Arquiteturas da Insurreição.
João Paulo Fonseca
Arquiteto e Urbanista, atualmente integra o programa de Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do Iphan.
No Martins
Artista visual, participou, entre outras, da exposição Histórias Afro-atlânticas no MASP e Instituto Tomie Ohtake em 2018.
Como citar
VELLOSO, Rita; FONSECA, João Paulo. É greve! PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 13, p. 22-27, mai. 2019.