EM PROGRESSO
Texto de Wellington Cançado
Em Progresso, Mato Grosso, atendendo ao abaixo-assinado protocolado pelos moradores da rodovia MT 358, principal avenida da cidade, a Prefeitura executou o corte das 55 árvores da espécie Fícus Benjamina, que haviam sido plantadas quando do surgimento da região na década de 1960. A alegação dos moradores é que as árvores danificavam as residências próximas. O que o documento não diz é que os Ficus estavam plantados no canteiro central da avenida-rodovia, a uma distância enorme das tais residências. Mas, posteriormente ao ocorrido, e graças à polêmica gerada pela magnitude da devastação, uma pesquisa feita pela própria Prefeitura indicou que 70% dos moradores de Progresso concordaram com o corte.
Progresso é distrito do município de Tangará da Serra e, além da avenida agora sem árvores, tem outras 17 ruas que formam uma malha urbana praticamente quadrada de 9 x 9 ruas com uma única “área verde”, a praça-rotatória localizada bem no centro da malha.
Apesar de sua insignificância urbana e sua evidente condição periférica, Progresso localiza-se numa das regiões com maior produção global de soja, no epicentro das plantações que avançam em direção ao cerrado, ao pantanal e à floresta no Brasil, desafiando de forma eloquente as tradicionais categorias de centro e periferia, ao mesmo tempo que, como o próprio nome indica, reafirma a eterna vocação brasileira para o progresso.
Progresso é só um das centenas de lugares que apareceram no mapa a partir da década de 1960 patrocinados pelo plano de recolonização e interiorização do Brasil, colocado em marcha pelo Plano de Metas do governo de Juscelino Kubitschek, que tinha na construção de Brasília sua “Meta-Síntese”.
Para JK, “Brasília não poderia e não deveria ser uma cidade qualquer, igual ou semelhante a tantas outras que existiam no mundo”, deveria ser acima de tudo “uma metrópole com características diferentes, que ignorasse a realidade contemporânea e se voltasse, com todos os seus elementos constitutivos, para o futuro”. Os fundamentos utópicos que regem o plano, não só o Plano-Piloto, mas todo o Plano de Metas, emergem da ruptura radical e proposital com as condições preexistentes – precárias, pobres, atrasadas, rurais –, pois busca-se “uma cidade como nenhuma outra”, um “redescobrimento”, como escreveu Lúcio Costa, arquiteto responsável pelo projeto do Plano.
Em seu livro Porque construí Brasília, JK dedica-se longamente a contar a história do surgimento da Cidade Livre, um aglomerado não planejado de 25 mil pessoas que, localizado ao lado do que se tornaria o Plano-Piloto, explicita um processo paradoxal provocado por um modelo de modernização instantânea, em que o novo, para se realizar plena e radicalmente, necessita de estruturas absolutamente arcaicas para sua sustentação.
A história da Cidade Livre, posteriormente Núcleo Bandeirante, revela de maneira contundente os paradoxos do avanço pretendido, presentes no próprio discurso de Juscelino, que, a contragosto, cede finalmente à urgência de todo tipo de infraestrutura e, sem comprometer o Plano ainda imaculado, proclama aos candangos: “Está bem, pessoal. Que cada um faça sua casa, mas nada de invadir o Plano-Piloto”.
No caso de Brasília e do Brasil, interessa pensar duas importâncias básicas desse projeto de mudança do centro de gravidade do país: Brasília como “mito de fundação”, origem do Brasil moderno e ainda síntese de toda a modernidade pretendida; Brasília como empreendimento colossal de “design do território”, na tentativa mais ambiciosa e efetivamente concreta de fabricar a paisagem brasileira. Ou seja, Brasília, para além do próprio Plano, é um projeto-piloto de colonização do território nacional e de transformação estética do país: a invenção da moderna paisagem brasileira.
Uma paisagem radical que, apesar de sua genealogia eurocêntrica, paradoxalmente, só poderia mesmo ser realizada no “novo mundo”, onde ainda predominam a fé irrestrita na tabula rasa como procedimento de purificação e a crença na devoração ritualística da natureza.
O paradoxo encarnado por Brasília ocorre na medida em que a invenção dessa paisagem moderna brasileira está atrelada à condenação de grande parte da população a viver em condições pré-paisagísticas e ao fato de que sua existência depende de situações sociais, culturais e urbanas pré modernas.
Cinquenta anos após sua construção, Brasília continua a ser o modelo para o “desenvolvimentismo” atual por ser capaz de transformar: o mito do progresso num ritual fundador; o caráter autoritário e higienista do urbanismo moderno em paradigma para a engenharia-política vigente e a sua violência intrínseca no modus operandi típico e orgulhosamente nacional.
Antes de Brasília, o Brasil era um país pré-paisagem, uma terra de naturezas indômitas. Distante da cultura paisagística ocidental e de demais formas de elaboração estética da natureza, no Brasil, o que sempre houve foi violação sistemática, mercantil ou puramente utilitária do pedaço de país ao alcance de cada um. Um dos importantes registros pictóricos dessa pré paisagem brasileira é a “Derrubada da floresta”, de Johann Moritz Rugendas (1802-58), pintor alemão e artista dissidente de uma das várias expedições europeias em território brasileiro ao longo do século XIX, cuja ciência consistia basicamente no mapeamento detalhado dos recursos naturais locais e no desbravamento de novas oportunidades comerciais.
Mas se a floresta densa e emaranhada, o sertão ressequido e a monotonia monumental do cerrado sempre foram ecologias refratárias ao avanço do progresso e aos padrões estéticos positivistas, em breve, finalmente, serão completamente conquistados. Nas margens e nas bordas da urbanização incontrolada, barrancos, erosões, queimadas, voçorocas, pastos, grotas, descampados, lixões, estruturas inúteis, obras abandonadas, quase-arquiteturas, pessoas esquecidas; uma ecologia precária, parda e impura que desafia o “regime da paisagem ocidental” ao mesmo tempo que coexiste com as hiperpaisagens monoculturais, super-produtos dessa modernidade tupiniquim, longe de ser inacabada.
Mas, como Brasília demonstrou, toda ecologia pode e deve, segundo métodos de projeto e gestão eficientes e abstratos, ser disciplinada até se tornar paisagem. E à medida que a periferia, a “fronteira” (agrícola e urbana), a natureza original, o pantanal, o cerrado e a floresta cedem lugar à geometria pixelada e desbotada da monocultura, aquele país rural e arcaico se transforma rapidamente num conjunto de hiperpaisagens sobrenaturais (porque antinaturais) recheado de contradições, palimpsesto de centralidades e periferias – ou aquilo que ainda achamos ser as periferias e os centros.
Nessa lógica, a monocultura é, acima de tudo, a estetização implacável da natureza e o objetivo final de toda paisagem: subjugar a natureza aos desígnios utilitários e inevitavelmente estéticos do homem, ou seja, redesenhar o mundo; é a supremacia extensiva do produtivismo sem fronteiras.
Se a invenção da janela concebe a paisagem ocidental, moldura que enquadra o exterior e o ordena segundo as leis geométricas da perspectiva, a paisagem moderna é a radicalização desse processo histórico pelo estilhaçamento da própria janela e pela simultaneidade e interdependência funcional entre o projeto do interior arquitetônico e da paisagem, extensão visual e “fundo” pictórico necessário à “unidade do conjunto”.
Mas a paisagem brasileira inventada com Brasília é a hiperpaisagem da janela expandida, eletrônica, militar e orbital. É pós-representacional, porque parece impossível abarcar a totalidade pela visão natural e pelos enquadramentos tradicionais dos dispositivos óticos e arquitetônicos.
Nesse sentido, a hiperpaisagem brasileira inviabiliza o olhar térreo, o enquadramento horizontal, é “melhor visualizada em vários milhões de pixels” a quilômetros de altura pelo olhar ubíquo dos satélites. A metáfora do avião (e do Plano Piloto) tornou-se rapidamente obsoleta. Talvez a melhor janela para essas hiperpaisagens seja o Google Earth, dispositivo que permite a contemplação remota da totalidade do “sistema paisagístico”, mas também sua instrumentalização, colonização, esquadrinhamento, parametrização, quantificação, valoração e exploração.
Aqui temos a essência e o destino de toda paisagem brasileira: a monocultura. Homogênea, monótona, estéril e terrível, mas quando vista do alto, dos gabinetes acondicionados do Planalto Central e dos helicópteros dos agroboys, apresenta-se como a mais perfeita celebração de um país em loop: Progresso em Progresso.
Wellington Cançado
Editor da PISEAGRAMA.
Como citar
CANÇADO, Wellington. Em progresso. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 2, p. 36-39, abr. 2011.