EPISÓDIOS
MÍNIMOS
Texto de Simone Cortezão
Fotografias de álbuns de família
Em uma viagem de retorno ao Vale do Aço, lugar de grandes empresas como Cenibra, Arcelor-Mittal e Usiminas, no leste do Estado de Minas Gerais, ouvi uma criança dizendo logo que avistou a indústria:
– É uma fábrica de nuvens!
Eram as chaminés da usina o que ela tinha visto. Aqui as nuvens são mesmo fabricadas, afinal as chaminés fazem uma segunda camada de nuvens no céu e, a cada instante, as cores são alteradas. A luz é laranja, um laranja latente como o fogo, o ar com partículas, como imagens saídas de um sonho. É embaçado. É bonito. Naquele lugar genérico, mas tão específico. Muitas vezes quente e úmido, nunca muito perfeito e o céu sempre coberto de nuvens e de outras feitas ao longo do dia. Composto de silêncios e rumores, cada dia é um vagar, uma espécie de sossego da paisagem, um entorpecimento de morosidade e espera.
Parque
Quando me mudei para Acesita, em 1989, o cotidiano industrial ainda era muito intenso. Quando terminamos a mudança, já era noite, as luzes de vapor de mercúrio completamente alaranjadas, já quase acendendo, sempre muito fortes. Do final da avenida para onde acabara de me mudar, avistava a chaminé principal e as torres iluminadas. Aquilo era sensacional, parecia um parque de diversões. Sentia-me como num parque por causa daquele objeto enorme que era a indústria com os apitos que lançavam multidões nas ruas, todos os dias. Às 17 horas, acontecia uma “festa”: praticamente toda a população ia para as ruas esperar pais, irmãos e maridos chegarem do trabalho. Grande parte dos trabalhadores voltava para casa de bicicleta. Gostava de ficar na varanda vendo a multidão passar, mesmo que não tivesse que esperar ninguém da minha família. Talvez eu sempre tenha sido um pouco estrangeira na região, meu pai músico e, mais tarde, funcionário da prefeitura; minha mãe professora de uma escola na periferia, engajada socialmente. Eu não fazia parte da rotina milimétrica da indústria, mas a vida regular da cidade começava a repercutir.
Pouco tempo depois, um parque com uma roda gigante chegou à cidade. Era ridículo, ela ficava minúscula diante da imensidão das torres e luzes da indústria. A partir desse momento, passei a entender a diferença entre o parque e a Acesita, hoje Arcelor-Mittal. Assim, ir ao parque de diversões ou ao teatro tornou-se um tanto quanto pequeno, já não era tão grande o encantamento por suas luzes e estruturas.
Caixa d’água
Como em qualquer estrutura industrial, a caixa d’água era extremamente perigosa, e sabíamos disso. Com um tubo de mais ou menos 1 metro de diâmetro e uma grade metálica de fechamento, a caixa d’água alimentava a aciaria. A água era utilizada para o resfriamento de alguma caldeira e, em momentos não muito previstos, era totalmente sugada, e isso acontecia muito rapidamente. Todos os meninos chamavam esse acontecimento de “chupão”. A sucção da água era muito forte, então tínhamos que nadar sempre atentos ao movimento da água. Em épocas muito quentes, a caixa d’água parecia um clube. Havia uma grande diversão nisso tudo, desde montar estratégias para entrar nesses lugares, quase sempre com vigilantes sonolentos e dispersos, até nadar no reservatório gigante.
Fronteiras
O chão sempre com uma fina camada de poluição e o calor infernal agora era o que mais se sentia. Não demorou muito e, em 1991, começava o anúncio de privatização da empresa. Mas foi só por volta de 1993 que houve realmente a privatização. Talvez tenha sido o momento mais duro, pelas rápidas transformações. Muitos funcionários foram demitidos e, com as demissões, veio a desestruturação familiar para as pessoas que cresceram comigo. As ruas começavam a se esvaziar, passaram a ficar grandes demais para tão poucas pessoas circulando na cidade. Agora não eram necessários tantos funcionários, pois novas tecnologias foram implantadas. Foi exatamente neste momento que eu, meus irmãos e outros amigos começamos a fazer passeios em áreas industriais, num momento de transição e obsolescência de alguns processos industriais. Essas áreas já não eram mais tão monitoradas.
Com 10 anos, eu começava a sair das fronteiras do meu território de circulação. Passei a andar de bicicleta por toda a cidade, mas meu lugar favorito era o entorno da indústria. Ainda hoje, é o melhor lugar para andar de bicicleta; é um largo passeio da usina cercado de grades metálicas que circundam grande parte da cidade. Nesses passeios, construía um vocabulário da maquinaria existente. As grades são marcadas por inscrições de perigo, alta-tensão, setorizações. Toda a parte interna é iluminada por luzes vermelhas e verdes. Um gradil fartamente vazado vai cercando grandes galpões com montanhas de areia, contêineres de minério, coque, caldeiras, escória, reservatórios de gasômetro e hidrogênio, guindastes, monta-cargas, postes de alta tensão. Já no bairro Vila dos Técnicos, a iluminação no interior da usina é completamente esverdeada onde ficam os fornos e chapas fumegantes. À medida que se vai chegando à região central de Timóteo, a paisagem muda. São grandes pátios de bobinas, locomotivas, vagões lacrados, chapas, laminados empilhados, pontes rolantes e filas e mais filas de caminhões que escoam toda a produção pela BR 381.
Quintais
Graças à plantação ordenada e ao acompanhamento da Cenibra, hoje a cultura do eucalipto ocupa quase todos os quintais do bairro Cocais, em Coronel Fabriciano. Cada quintal é tratado como uma porção equivalente a um território maior, com logísticas de transporte e distribuição dos eucaliptos. De início, para cada habitante do Cocais, tudo está sempre calmo demais, normal demais. Você caminha, senta-se, deita-se, fica de pé, do mesmo modo que não escolhe mais suas refeições, até findar todas as combinações do refeitório da empresa. Aos poucos, se vão os minutos, as horas e os dias. As sombras vão se conformando e se desfazendo levemente nos caminhos geométricos dos eucaliptais. O horizonte vai se escondendo, agora resta esperar mais um pouco, entre uma refeição e outra, um sono e outro, até que se cumpram 7 anos. A tensão do tempo toma o lugar, o consome. Essa ambição truculenta faz da cidade uma coleção de paisagens funcionais.
Os quintais, essas pequenas porções particulares onde são transplantadas naturezas domesticadas, conformam uma parte que fica entre nossos desejos de aproximação com a natureza e a estratégia alimentar de plantar e comer. Com o passar dos anos, cada quintal foi se esvaziando, já não tinham mais as pequenas hortas e pomares de antigamente, agora cada quintal tem sua pequena produção de eucalipto. Sei, através de histórias, que não se encontra nada além dos muros. As casas estão sempre fechadas e o chão de terra segue na feiura, as árvores definhadas, as fachadas nuas, os bêbados solitários. Sobretudo, metodicamente. Agora não é mais necessário plantar e cuidar, as tecnológicas e assertivas fórmulas de plantio do eucalipto deixam horas livres. Esse foi o modo de vida escolhido pela população do Cocais. Em grande parte de Minas Gerais, um salário mínimo é oferecido em troca do cultivo do eucalipto nos quintais. E, por causa disso, o eucalipto fascina e surpreende, na evidência insuspeita de uma liberdade cotidiana. Esse fragmento da natureza toma feições urbanas, torna-se elemento vulgar da cidade.
Uniformes
Nas usinas e empresas do Vale do Aço, existem em média 20 tipos de uniformes. As cores variam entre o bege e o bege acinzentado, são cores opacas. O tecido é de brim com cortes retos, as camisas são de manga curta com botões pequenos e um bolso na frente, sempre com a logomarca da empresa e o crachá de identificação. Há também blusa de manga longa para o inverno, muito parecida com a camisa de manga curta, mas com um elástico de aproximadamente 10 cm na barra inferior e um zíper na frente. O calçado é uma botina preta de bico redondo e solado de borracha que machuca os pés, mas é a única que pode ser usada.
Camisa operacional de manga curta de um bolso: gola esporte pespontada, frente aberta com fechamento através de botões e caseados no sentido vertical. Mangas curtas com bainhas fixas, um bolso chapado chanfrado no lado esquerdo com portinholas fechadas através de botão e caseado, abertura para caneta de três centímetros no bolso esquerdo, costas em tecido único.
Calça operacional masculina: cós postiço com quatro centímetros de largura com fechamento através de botão e caseado, sete passantes, vista embutida com zíper, dois bolsos frontais chapados com abertura do tipo americano, um bolsinho relógio no espelho direito, traseiro com palas e dois bolsos chapados chanfrados.
Durante o dia, as pessoas que trabalham na indústria circulam de uniforme, é importante como identificação para os outros habitantes da região. Ao fim do dia, uma multidão invade as ruas formando vários pontos de cor bege e bege acinzentado. Se você chega ao supermercado, há um de uniforme, no posto de gasolina há outro, no restaurante há muitos, nas padarias pela manhã vê-se de 10 a 20 uniformes. Há também vários uniformes andando de bicicleta.
Pássaros
No Vale do Aço, os pássaros ocupam distintos lugares e movimentos, de acordo com a época. Eles são flagrados se aquecendo em torno das chaminés das usinas, quase que estabilizados por esse atual estado apagado da natureza. De muitas espécies, talvez sejam os pássaros os que mais conseguiram se adaptar a essa paisagem. Há alguns anos, no início da produção da indústria, a usina produzia aço mas também criava pássaros ao redor dos seus pátios internos. Curiosamente, esses pássaros eram soltos, diariamente, no interior da indústria. Se morressem, significava que havia vazamento de gás ou de qualquer composto químico. Eram como medidores naturais. Ironicamente, foram treinados e usados em suas características sensíveis como avaliadores técnicos. Essa história sempre me pareceu curiosa, não só pela relação entre produção industrial e natureza, mas porque, até hoje, eles parecem ser um enigma no dia a dia da cidade e um sinal de resistência.
Simone Cortezão
Arquiteta, mestre em artes visuais, desenvolve trabalhos próprios no campo da arquitetura e suas interfaces com o design e a arte.
Como citar
CORTEZÃO, Simone. Episódios mínimos. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 3, p. 05-07, jul. 2011.