EXPRESSO
DA HISTÓRIA
HeHe – Helen Evans e Heiko Hansen
Um tapete deslizante instalado nos antigos trilhos de bonde de Istambul inspira uma livre viagem, ao passado e ao futuro. Traz à memória veículos particulares que já circularam em estradas de ferro e coloca em questão a experiência do corpo que se move no espaço.
Enquanto pensávamos sobre o Train Project e o Tapete Voador que montamos em Istambul em 2005, um artigo no jornal francês Libération chamou nossa atenção. Nele, o autor descreve sua viagem às profundas florestas da região dos Urais, na Rússia, e conta sobre um pequeno vilarejo cuja ligação com o resto da civilização só se dá por uma viagem de seis horas sobre trilhos abandonados, a bordo de um carrinho que os habitantes chamam de pionierka, impulsionado por um antigo motor de motocicleta.
Uma cena do filme Stalker (1979), de Andrei Tarkovsky, vem logo à mente. O protagonista viaja sobre trilhos abandonados em um carrinho, numa paisagem pós-industrial devastada, levando seus dois clientes ao local conhecido como “a Zona”, onde supostamente os desejos mais íntimos das pessoas se tornam realidade. Essa imagem de Tarkovsky sugere uma certa esperança de que a estrutura ferroviária, o primeiro e mais poderoso mecanismo da Revolução Industrial, possa nos conectar um dia com uma nova sociedade e uma nova ordem tecnológica situadas naquilo que restará, futuramente, de nossas áreas industriais. A Zona parece prever Chernobyl.
O que é a infraestrutura ferroviária? Trens são a forma mais direta de nos conectarmos entre dois pontos. Eles representam uma oposição àquilo que Paul Virilio chamou de veículo sans terrain: o navio de guerra, o tanque, os Hummers e até mesmo o carro. Esses dispositivos flexíveis e individualizados têm a força termodinâmica para penetrar qualquer terreno, enquanto o trem só pode seguir uma linha reta pré-traçada num espaço horizontal.
Como outros críticos do século XIX, Paul Cézanne viu nesse vetor através do espaço, que corta o ambiente construído e a paisagem natural, uma ameaça violenta à vida. Em sua obra La Tranchée du Chemin de Fer (1871), vemos o que parece ser uma paisagem montanhosa que sangra como se tivesse sido cortada por uma faca – pela ferrovia. Para reduzir custos e otimizar a locomoção, as linhas de ferro europeias foram construídas da forma mais retilínea possível, independentemente do que houvesse em seus caminhos. Será que isso não viria a ser uma vantagem para tempos futuros, quando estariam todos à procura de formas sustentáveis de viajar? Uma linha nivelada, reta, sem altos e baixos, é ideal para dispositivos de baixo consumo de energia.
Sistemas de transporte ferroviário são exemplo de infraestruturas poderosas, do tipo ainda bastante comum na sociedade tecnológica atual. Essas infraestruturas geram as possibilidades para a sua própria expansão, como numa reação em cadeia: os trilhos possibilitam transportar material para que sejam construídos mais trilhos. Infraestruturas como o sistema ferroviário ou elétrico tocam e transformam a vida de várias maneiras.
O transporte ferroviário funciona como um conjunto de maquinários. O conjunto que forma um sistema ferroviário consiste em linhas férreas, vagões, estação de trem, serviço de Internet, comércio de comida e lazer etc., e é impossível dissociar as partes dessa entidade. Entretanto, quando os primeiros sistemas ferroviários foram implantados na Inglaterra, essa noção de conjunto não existia. O design de trens evoluiu de um cruzamento entre o sistema de transporte dominante na época, as carruagens puxadas por cavalos, e os vagões de mineração movidos a vapor. Os trilhos eram somente outro tipo de estrada.
A noção de estrada sugeria que neles qualquer um era livre para operar seus veículos privados de qualquer espécie (como fazemos hoje) e, de fato, era isso que se fazia. Até 1938, havia veículos privados circulando na linha Liverpool-Manchester. Eram veículos particulares normais, feitos para estradas, que para viajarem sobre trilhos eram colocados sobre chassis especiais.
O conceito de cadeira é interessante neste contexto. Se analisarmos sua história, veremos que as cadeiras eram inicialmente reservadas àqueles que detinham algum poder, como reis, por exemplo, e foram sendo com o tempo apropriadas pela burguesia, principalmente a partir da Revolução Industrial. A cadeira e a mesa tornaram-se lugares para sentar-se, pensar, escrever, delegar e fazer negócios. A partir daí, até se tornar ícone do design de produtos de massa, a cadeira foi se popularizando em trens, automóveis e aviões, determinando o modo como viajamos hoje.
A ideia de viajar sobre uma cadeira pode nos levar também a outro capítulo da história dos transportes, o dos TPR, Transportes Pessoais Rápidos, que surgiram nos anos 1950 e 1960. Projetos e pesquisas sobre TPRs eram generosamente financiados por governos no mundo todo, mas a maioria não foi adiante. Entre os que falharam está o Aramis, um projeto de pesquisa francês para o desenvolvimento de uma rede de carros automatizados para até quatro pessoas que circulariam ininterruptamente sobre trilhos na cidade de Paris. O fato desse projeto nunca ter sido implementado é um sinal da complexidade e inviabilidade de se recriar um sistema inteiro do nada. O Aramis foi inspirado na ideia de cadeiras sobre trilhos. O Train Project é talvez uma espécie de Aramis: veículos individuais sobre trilhos.
Um dos veículos que construímos foi chamado de Tapis Volant, ou Tapete Voador. Ele foi desenhado para os antigos trilhos de bonde de Istambul. Os trilhos correm por toda Istiklal, a rua para pedestres na parte ocidental da cidade.
Tapis Volant é uma almofada vermelha retangular com franjas de contas em cada um dos lados. Ela anda sobre um único trilho de bonde, usando-o como monotrilho. Suas rodinhas são propelidas por um motor elétrico. A almofada fica sobre um sistema mecânico que permite ao motorista se equilibrar quando sentado na posição de flor de lótus. Essa postura, além de imitar o funcionamento de um tapete voador “de verdade”, conecta o corpo ao movimento, de modo que o motorista deve estar relaxado e equilibrado para operar…
A experiência de conduzir o Tapis Volant é semiautomatizada: o veículo corre sobre os trilhos, acelerando quando o motorista se inclina para frente e freando quando o motorista se inclina para trás. Esse método de operação desloca as proporções entre automação e controle: ele permite um modus operandi inconsciente. É uma experiência diferente daquela de dirigir um carro, em que o motorista está exposto a um mecanismo de controle complexo. Os controles do carro funcionam como substitutos, não se conectam a uma experiência de movimento e não constroem relações estéticas entre o carro e o ambiente pelo qual ele se move.
Sua função é fazer o motorista acreditar que tem controle sobre algo que pode sair do controle muito facilmente. Essa abordagem focada no controle é diferente da monofuncionalidade dos primeiros protótipos de veículos, como as primeiras construções voadoras de Otto Lilienthal, que eram controladas com o balançar, para frente e para trás, das pernas. Sistema de som, espelhos retrovisores eletrônicos, climatização automática são recursos que diluem em vez de aprimorar a experiência. Quanto mais perdemos nossa habilidade de experimentar o próprio movimento através do espaço, mais nos sentimos desconfortáveis e distantes de nossos entornos.
Wolfgang Schivelbusch aborda isso em detalhe em The Railway Journey: The Industrialization of Time and Space in the Nineteenth Century. Ele observa o momento em que os primeiros sistemas de transporte ferroviário públicos estavam sendo implantados, mostra que a primeira geração de passageiros de trem tendia a achar a experiência alienante, e compara o trem a formas de transporte orgânicas, movidas a cavalos ou a vento, que tinham relações diretas com o terreno que estava sendo atravessado. Cada trecho da viagem correspondia a experiências físicas e sociais tangíveis. Já os primeiros passageiros de trem se sentiam como meros pacotes: projéteis no espaço. Havia uma sensação de perda de integração com o entorno. Esse deslocamento perceptivo era descrito na Era Vitoriana como “aniquilação do tempo e do espaço”. A velocidade com que o trem corta a paisagem encolhe o espaço e apaga especificidades locais: percebe-se a paisagem com uma visão panorâmica distanciada, enquanto o que está próximo desaparece numa mancha. É precisamente o que está próximo, a especificidade do local, que o Train Project tenta resgatar na forma de uma série de instalações montadas sobre trilhos abandonados ou parcialmente fora de uso. Tapis Volant reduz o controle operacional a posturas do corpo, deslocando a experiência estética do movimento pelo espaço.
O Train Project usa um método de engenharia cultural invertida: navegando livremente pelo tempo, pelo espaço e pela cultura, é possível reinventar uma tecnologia antiga sem aceitar convenções estabelecidas. Processos tecnológicos se desenvolvem como imagens fractais: no centro da imagem está a invenção original e nas bordas estão subinovações, menores e mais marginais, que não podem ser maiores que a original. O conceito de trem de George Stephenson continua o mesmo, mesmo que recursos adicionais se manifestem com maior velocidade e os serviços de forma mais sofisticada, e mesmo que uma nova cultura tenha se definido em torno da noção de trem. Usando um método de engenharia invertida, o ponto de partida conceitual para o Train Project está situado no passado. Dali, desenvolve-se um processo que favorece ideias que em momentos da história foram consideradas de forma desfavorável, mas que podem muito bem ser válidas para amanhã.
A imagem do Tapis Volant representa esse “veículo semântico” romântico para Istambul, mas também um “design de transporte” atemporal que existe somente no imaginário de um mundo fictício. Há paralelos com outras experiências sobre trilhos ao redor do mundo e com a imagem recorrente do tapete voador em nossa cultura.
A dupla de artistas Ansuman Biswas e Jem Finer operou um tapete oriental voador a bordo de um simulador de voo russo com gravidade zero. Esse jogo em que a ficção encontra a realidade, um tapete em gravidade zero ou um tapete voador propelido sobre nostálgicos trilhos de bonde em Istambul, aponta para uma técnica de design que considera o presente como um brevíssimo flash de tempo, mapeando o passado e o futuro como entidades igualmente válidas para as quais criar.
Isso pode parecer exótico, mas basta lembrar os trilhos de Diolkos, perto de Corinto, que datam da antiga Grécia e são considerados por muita gente os primeiros da história. Ainda não inteiramente descobertos e conhecidos, os trilhos foram construídos com pedra e feitos para que sobre eles viajassem navios.
HeHe
Coletivo de arte e design de Paris formado por Helen Evans e Heiko Hansen.
Como citar
EVANS, Helen; HANSEN, Heiko. Expresso da história. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 7, p. 44-49, jan. 2015.