FLORESTAS-CLIMA
Texto de André S. Bailão
Morituri te salutant, fotografias de Luis Vera
Nas fronteiras coloniais, das Américas à África e à Índia, a longa história das associações entre vegetação e clima alimentou fabulações científicas e práticas agrícolas que legitimaram intervenções nas terras e nos modos de vida de povos originários.
Antes da compreensão de que os gases emitidos pela queima industrial dos combustíveis fósseis, pela pecuária e por mudanças nos solos ampliam o efeito estufa na atmosfera, aquecendo o planeta, as plantas estiveram no centro das primeiras discussões sobre mudanças climáticas. As plantas, ou a falta delas.
As ideias acerca do clima nunca foram estáveis e diferentes épocas e culturas elaboraram e narraram, de distintas maneiras, os fenômenos atmosféricos, os padrões sazonais de temperatura e chuva, os eventos extremos – como inundações e secas – e as percepções sobre as mudanças. A correlação entre uma seca muito extensa, ou um inverno rigoroso, e seus impactos diretos na vida humana e nas plantas cultivadas sempre instigou as pessoas a se perguntarem se suas ações na terra poderiam ter consequências no céu acima de suas cabeças.
Os efeitos das transformações da terra, como os desmatamentos e a drenagem de pântanos, foram sentidos e observados desde os primórdios da agricultura e foram largamente documentados. No mundo mediterrâneo, Platão, em seu texto Crítias, chamou a atenção à erosão histórica na Ática, região onde fica a cidade de Atenas, comparando a paisagem a um esqueleto, um resquício pedregoso de um corpo que havia perdido toda a carne. A passagem é breve e centrada nos efeitos dos cataclismos, como terremotos e maremotos, mas demonstra uma preocupação com a degradação dos solos que poderia decorrer de seu uso excessivo ou descuidado.
Uma referência duradoura para a história das ciências foram os escritos sobre as plantas de Teofrasto, discípulo de Aristóteles, entre os séculos quarto e terceiro antes da nossa era. Ele escreveu sobre as alterações do solo e das vegetações pela agricultura e pecuária em diversas regiões gregas. Da Macedônia às ilhas de Creta e Chipre, o filósofo apresentou relatos sobre as consequências dessas transformações, como a diminuição de cursos d’água, ou o ressecamento e o resfriamento de certos vales desmatados e o aquecimento de outros, já que a remoção da cobertura florestal alterava a direção e intensidade dos ventos.
Teofrasto foi recuperado séculos mais tarde, durante a expansão marítima, comercial e colonial europeia pelo oceano Atlântico no período moderno, um momento em que paisagens de diferentes ilhas e territórios pelo mundo foram transformadas pelo avanço das plantantions. Isso gerou preocupações entre navegadores, viajantes naturalistas e administradores coloniais com as possíveis consequências que hoje chamamos de ambientais – como relataram os historiadores ambientais Richard Grove, em seu livro de 1995, Green Imperialism (Imperialismo verde), e Stephen Pyne, em Vestal Fire (Fogo vestal), de 1998. Foi nas ilhas Canárias, Madeira, Açores e Santa Helena que ocorreram os primeiros experimentos europeus com monoculturas de exportação, levados a cabo tanto por Estados como por empresas comerciais capitalistas. Os exemplos da Antiguidade Clássica, recuperados naquele momento com a tradução de Teofrasto para o latim e o italiano, ajudavam muitos viajantes a compreender as alterações ambientais naquelas localidades. Tais regiões tornaram-se exemplares durante todo o período moderno para especulações científicas sobre os efeitos nos climas, nos solos e nos cursos d’água decorrentes da substituição de vegetações nativas por grandes fazendas.
O modelo econômico e agrícola praticado pelos europeus ao longo dos séculos XVI e XIX nessas ilhas do Atlântico, e em tantas outras no mar do Caribe e no oceano Índico e nas regiões litorâneas das Américas, transformou terras de povos originários, queimando e cortando suas roças e matas por meio do trabalho forçado de indígenas, africanas e africanos escravizados. A devastação foi ao mesmo tempo de pessoas e de plantas: comunidades inteiras, terras habitadas e paisagens complexas substituídas pelas poucas culturas preferidas pelo comércio colonial e por aquelas levadas por europeus e africanos para sua alimentação – além, é claro, das inúmeras ervas e matos que pegaram carona inadvertidamente. Nas ilhas previamente desabitadas por humanos, como Santa Helena, distantes dos litorais da África e da América do Sul, a devastação foi ainda mais rápida, já que as plantas e animais isolados durante milhares de anos tinham poucas defesas adaptativas contra o avanço do fogo antrópico, das plantas domesticadas, dos ratos, dos cães, das ovelhas e do gado.
Viajantes naturalistas tiveram um olhar atento para as consequências dessas práticas nos solos, nos cursos d’água e nos mananciais. Documentaram extensivamente que, com os desmatamentos intensos, as queimadas incessantes e a substituição das vegetações nativas por pasto e por fazendas de cana-de-açúcar e outras plantas, os rios diminuíam, as nascentes e aquíferos secavam e os solos iam sendo lavados, deixando para trás uma paisagem pedregosa e infértil, tal qual os exemplos da Antiguidade que encontravam em suas leituras. Nas ilhas Canárias, por exemplo, as florestas de pinheiros nativos condensam e fazem gotejar a umidade dos nevoeiros constantes, criando uma relação íntima entre os solos e a umidade da atmosfera, que é quebrada com seu corte, sua queima e derrubada. Em Santa Helena, as chuvas, que as antigas matas ajudavam a absorver, passaram a escorrer em torrentes violentas em direção ao mar e as fontes d’água secaram, pondo em risco a própria continuidade do entreposto marítimo.
A ideia de que florestas, fontes hídricas e o clima eram intimamente conectados ganhou corpo entre os séculos XVIII e XIX com uma série de observações e experimentações científicas sobre os ciclos hidrológicos e a fisiologia das plantas. Os exemplos que chegavam das ilhas e paisagens devastadas pelos europeus foram centrais para esse modelo científico. O astrônomo e naturalista britânico Edmund Halley, por exemplo, visitou Santa Helena e dela elaborou seu modelo de ciclo hidrológico, ligando a umidade dos oceanos às terras. Ainda hoje se ensina que as águas marinhas evaporam e se condensam no encontro com montanhas e morros florestados – um ciclo que Halley dizia estar sendo perturbado pelos desmatamentos naquela ilha, como observara durante a sua viagem.
Na mesma época, naturalistas, como os britânicos John Woodward e Stephen Hales, criaram instrumentos e métodos para medir a pressão, a absorção de água e a transpiração botânica. Chamavam a sua atenção as elevadas taxas de transpiração das plantas e em especial as das árvores. Esses naturalistas se perguntavam: se uma árvore transpirava tanto, conforme mediam nos laboratórios, o que pensar de florestas inteiras? Se grandes florestas transpiram muita água, isso teria alguma influência na umidade atmosférica? Quais relações era possível observar entre as florestas e a umidade, como as chuvas torrenciais e os nevoeiros nelas observados? Essa ciência experimental do final do século XVII foi alimentada pelos relatos das colônias e Woodward, por exemplo, correspondeu-se diretamente com colonizadores britânicos na América do Norte e na Irlanda sobre os desmatamentos e suas impressões sobre o clima local, buscando levantar exemplos práticos e locais para reforçar o que escrevia. Uma pergunta recorrente, então, era se transformações humanas nas florestas, como relatadas nas fronteiras coloniais, poderiam modificar a umidade e as temperaturas locais.
O clima, durante o Iluminismo, foi evocado por muitos escritores para pensar sobre corpos humanos e vegetais: a possível degeneração desses corpos ante climas vistos como inóspitos; a relação de certas doenças, pestilências e mal-estares em virtude de certos climas; e a necessidade de aclimatar plantas e pessoas que viajavam entre diferentes regiões. Um exemplo famoso desse momento foi Montesquieu, que escreveu sobre como diferentes climas influenciavam a existência de diversos tipos de sociedades, línguas, emoções e até mesmo formas de governo. O racismo climático resultante perdurou por séculos, afirmando que civilização e liberdade só poderiam existir em climas temperados – e que, por outro lado, os excessos de frio, calor, umidade ou secura supostamente impediriam o progresso de certas sociedades.
Esse tipo de ansiedade filosófico-climática mobilizou os imigrantes europeus na América do Norte. Se o clima podia afetar as pessoas e as sociedades, seria possível afetá-lo em contrapartida? Invernos muito frios, tempestades de neve e uma umidade excessiva caracterizavam essa região para os europeus, que culpavam a presença das grandes florestas e da falta de cultivos – um apagamento da densa presença indígena na região feita pela leitura colonial de que a América era uma paisagem natural intocada. Políticos e escritores da geração da Guerra de Independência dos Estados Unidos passaram a defender com tons patrióticos a influência que exerciam sobre uma paisagem, vista até então como inóspita, ao drenarem os pântanos e áreas alagadas, substituindo as florestas por cultivos de cereais, como trigo e milho, e com pastagens de animais domésticos. Consequentemente, mencionavam como eram capazes de controlar o clima de diferentes maneiras. O político, naturalista e escritor abolicionista Hugh Williamson afirmou, na década de 1770, que os campos desmatados na colônia da Pensilvânia absorviam mais energia solar em relação às florestas escuras e cheias de sombra, se aquecendo e possivelmente mudando a direção dos ventos. Seu contemporâneo Thomas Jefferson, um fazendeiro escravista eleito mais tarde o terceiro presidente dos Estados Unidos, concordava com Williamson em relação à colônia da Virgínia, buscando negar as más impressões que circulavam na Europa sobre o clima do novo país.
Essa foi uma matéria bastante controversa na época. Alguns escritores, como Noah Webster, mais tarde conhecido por seu famoso dicionário de língua inglesa, se perguntavam se era mesmo possível afirmar que o frio estava diminuindo na região, já que relatos como os de Jefferson se baseavam na generalização de impressões pessoais, como a memória de fazendeiros sobre eventos extremos no passado. Naquele momento havia poucas medições instrumentais e, quando eram tomadas, elas eram feitas de forma pouco sistemática. Webster chegava a concordar que a substituição de bosques por pastagens e campos de cereais poderia alterar as temperaturas locais, já que deixavam a paisagem mais suscetível à incidência solar no verão e às geadas no inverno, mas discordou que isso pudesse modificar o clima da região inteira.
De todo modo, textos como os de Jefferson e Williamson cruzaram os mares e foram lidos por um dos mais conhecidos naturalistas de sua geração, o conde de Buffon, diretor do Jardim das Plantas de Paris no final do século XVIII. Ele foi um dos primeiros a fabular sobre o desenvolvimento geológico do planeta, desde seu estado original de rocha quente até o que ele imaginou ser o resfriamento futuro no fim dos tempos. Lendo os relatos de fora da Europa e os trabalhos dos britânicos sobre a circulação atmosférica e a fisiologia das plantas, Buffon pensava sobre como a humanidade poderia guiar e modificar o destino do planeta. No último capítulo de sua obra As épocas da natureza, de 1780, ele escreveu o que poderíamos chamar de um prenúncio para o atual debate em torno da proposta de uma era geológica chamada de Antropoceno, afirmando que não apenas a humanidade seria capaz de alterar o clima, como já o havia feito, deixando sua marca na superfície da Terra. Os desmatamentos foram seu exemplo, pois alteravam a direção dos ventos quentes e frios e abriam os solos das florestas sombrias para maior absorção do calor solar, expulsando a umidade que ficava acumulada sob o dossel florestal, como nos nevoeiros e brumas que frequentemente aparecem nas regiões de colonização britânica. Buffon citou Williamson e seu texto sobre a Pensilvânia, documentos sobre fazendas que chegavam da colônia francesa de Caiena, assim como as primeiras medições meteorológicas feitas em Paris, que já indicavam a ilha de calor da aglomeração urbana em relação aos entornos rurais.
Nesse momento, textos da Antiguidade e da Idade Média foram recuperados e filósofos, naturalistas e historiadores passaram a buscar indícios sobre mudanças históricas do clima na Europa, seguindo as transformações das paisagens com a disseminação da agricultura de cereais, a construção de canais, a drenagem dos pântanos e os desmatamentos que ocorreram por todo o continente ao longo de séculos. Buffon e seus contemporâneos imaginavam que talvez os europeus pudessem ter moderado o frio excessivo ao longo dos milênios com essas transformações das paisagens – o que agora alguns norte-americanos acreditavam estar fazendo num ritmo acelerado em suas terras. Nos lugares de clima temperado, portanto, essa era uma interpretação que via o desmatamento histórico de forma utópica: a imposição de uma natureza cultivada sobre uma natureza bruta. Europeus e imigrantes na América do Norte viam a si mesmos como capazes de moderar o clima ao expor as terras das antigas florestas e pântanos ao calor do sol, expulsando a umidade, os nevoeiros e as sombras, substituídas pelos cultivos agrícolas.
Já nas terras mediterrâneas e de clima tropical, a operação se deu de modo inverso. Havia a preocupação de que esse processo pudesse degradar essas regiões e transformá-las em desertos. Secas, aumento do calor, erosões, voçorocas, perda de fertilidade do solo, enxurradas descontroladas pela destruição das matas ciliares e secamento dos poços e fontes d’água eram destacados nos relatos de viajantes e de administradores sobre a situação de algumas colônias após a expansão das plantações escravistas. Além de Santa Helena e das Canárias, outros tantos exemplos semelhantes apareceram no final do século XVIII e início do XIX, conforme as plantações europeias avançavam e arruinavam comunidades, solos, fontes hídricas e vegetações no Caribe e na colônia francesa de Maurício no oceano Índico.
As primeiras legislações que hoje chamaríamos de ambientais surgiram justamente nessas ilhas, como indicou o historiador Richard Grove. As políticas e ciências que vinculavam os desmatamentos ao dessecamento das terras foram postas em prática primeiro nas fronteiras coloniais, antes de chegarem na Europa. Diferentemente dos códigos florestais fisiocratas anteriores, cujo intuito era principalmente proteger o estoque de madeiras para a construção civil e naval e as florestas dedicadas à caça pela nobreza, essas novas leis buscavam proteger o solo e também as chuvas – o que estava explicitamente declarado em alguns desses textos jurídicos. De Maurício às ilhas de São Vicente e Santa Helena, as empresas comerciais e governadores europeus passaram a estimular o plantio de árvores e a proteção das florestas remanescentes. Isso, é claro, é bastante diferente do ambientalismo e da luta dos povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas do nosso tempo, pois na verdade buscava-se garantir a sobrevivência da própria exploração colonial e das plantações de exportação.
Entrava em jogo uma ideia de harmonia entre o que hoje chamamos de componentes do sistema terrestre: a radiação solar, os diferentes climas, as vegetações, o ciclo hidrológico, as correntes e os ventos e as ações humanas. Um importante personagem nessa história foi o agrônomo François-Antoine Rauch, que trabalhou no período da Revolução Francesa em terras e florestas no sul da França. Contemporâneo do naturalista viajante Alexander von Humboldt, Rauch escreveu extensamente sobre o conceito de “harmonia hidrovegetal”, explorando a ideia de que florestas atraem nuvens e chuvas, mantêm os cursos d’água e regulam a temperatura. Ele era contra a derrubada de florestas em regiões de clima frio, como defendiam seus contemporâneos, pois, se no verão mais calor incidia nos campos desmatados, já no inverno o local ficaria mais suscetível a geadas, ventos e tempestades. A partir de suas experiências em campo e da leitura dos relatos de viajantes, Rauch defendia que o sistema harmônico entre florestas, terras e climas estava sendo mutilado e a solução seria plantar novas árvores e proteger as florestas remanescentes – na França do período revolucionário muitas das antigas florestas reais haviam sido vendidas para aumentar os cofres públicos. Declarando-se um naturalista “cidadão”, Rauch fez questão de enviar exemplares dos seus livros a representantes dos governos de toda a Europa, incluindo Portugal, buscando chamar a atenção para o problema da destruição das florestas e seus possíveis efeitos a longo prazo, como a expansão dos desertos.
Esse tipo de narrativa que relacionava florestas e climas formou um verdadeiro corpo científico, compartilhado ao redor do mundo de meados do século XVIII até a virada para o século XX, incluindo um olhar crítico para a situação da Mata Atlântica no Brasil. O avanço da cafeicultura e das plantações de algodão e cana-de-açúcar, por exemplo, gerou preocupações sobre o futuro do Brasil entre alguns naturalistas, estadistas e engenheiros do século XIX. A íntima relação entre árvores, ar e solo úmidos sob o dossel florestal e a rede de cursos d’água era subitamente modificada com as plantações e pastagens e as consequências podiam muitas vezes ser observadas. Se num primeiro momento esse tipo de investigação se voltou às florestas úmidas, uma dúvida distinta, porém relacionada, mobilizou muitos escritores e naturalistas naquele momento: se a derrubada e queima de florestas degradava o solo e a rede hídrica, o que pensar das regiões áridas, semiáridas ou onde existiam longas estações secas? Elas teriam existido dessas formas desde sempre ou teriam sido criadas ou expandidas pelas atividades humanas?
No Cerrado brasileiro, essa pergunta mobilizou os naturalistas dinamarqueses Peter W. Lund, que se estabeleceu em Lagoa Santa, Minas Gerais, na década de 1830, e Eugenius Warming, que foi seu assistente nos anos 1860, quando era estudante. Chamava a atenção de ambos a extensão das queimadas praticadas no final de cada inverno no Brasil Central, para estimular o crescimento de novo pasto e se aproveitar das cinzas férteis. Essas práticas têm diferentes origens culturais; aprendidas com os indígenas, são também realizadas no continente africano e na região mediterrânea. Os efeitos das gigantescas queimadas fizeram Lund se perguntar se as paisagens do interior do Brasil não poderiam estar secando e as plantas de suas matas e campos se modificando, como se fossem uma versão degradada de florestas antigas.
As observações de ambos os levaram a crer que várias plantas estavam se adaptando às queimadas anuais e a climas mais secos. Algumas plantas se destacavam, como as lobeiras (Solanum lycocarpum) e os angelins do gênero Andira, ou as paratudos ou quinas do gênero Hortia — todas conhecidas e utilizadas na medicina popular brasileira. Plantas desses gêneros são encontradas na forma de arbustos nos campos e matos cerrados e também na forma de árvores em matas. A incrível semelhança das folhas e flores entre arbustos e árvores levou tanto os viajantes como os naturalistas nos herbários a classificarem essas plantas como sendo as mesmas espécies, mas com hábitos variados. Angelins arbustivos, por exemplo, pareciam versões estancadas e degeneradas dos arborescentes (mas hoje sabemos que os angelins e as paratudos são espécies distintas). Enquanto os arbustos eram encontrados por toda a parte, as árvores eram mais raras e pareciam para Lund e Warming como vestígios em vias de extinção. Além disso, os angelins-rasteiros (Andira laurifolia) muitas vezes cresciam por brotamento a partir de uma extensa rede de raízes e órgãos subterrâneos bem desenvolvidos, que para os viajantes se assemelhavam a vestígios de caules ou troncos inteiros enterrados — como uma vida complexa embaixo da terra tentando escapar do fogo na superfície. Essas curiosidades morfológicas, incluindo as confusões classificatórias, somadas às experiências de viagens cruzando campos inteiros em cinzas, com rastros de árvores carbonizadas, pareciam sinais claros para eles de que as queimadas estavam alterando as paisagens de maneira abrangente.
Além das observações botânicas, as secas vividas e anotadas por eles em seus diários fertilizavam suas imaginações. Nenhum dos dois carregava instrumentos propícios para medir as chuvas, mas anotaram sua ocorrência, frequência e intensidade, além de conversarem com pessoas da roça sobre memórias de campos que haviam sido florestas e de secas mais intensas no passado ou sobre as datas anuais da chegada e do fim das precipitações. Lund, após décadas morando em Minas Gerais, tinha a impressão de que as secas estavam se tornando mais frequentes e longas. Ele chegou a levantar a hipótese de que essas vegetações resultaram dos milhares de anos de queimadas por indígenas, um processo que teria sido exacerbado com a colonização. Apesar de discordar de Lund sobre as origens antrópicas do Cerrado, acreditando se tratar de uma vegetação muito mais antiga do que a ocupação humana, Warming concordava com ele e com outros naturalistas que as queimadas pudessem estar ressecando a região no presente.
Em outras partes do mundo, regiões de clima e vegetações mais secas também foram imaginadas como produto de seus habitantes. Esse período coincidiu com o momento da entrada da colonização francesa no Norte da África e Rauch, o agrônomo-ativista do período da Revolução Francesa, assim como outros tantos europeus do início do século XIX, descreveu aquela região e o Oriente Médio como paisagens arruinadas pelos povos árabes. Para muitos europeus, os cultivos da Antiguidade haviam sido substituídos por pastagens rasteiras devido aos rebanhos de cabras, que comem os brotos, e às queimadas, o que teria feito avançar o deserto do Saara. Enquanto no Brasil Lund via algumas árvores como vestígios de um passado mais úmido, no Norte da África a presença de ruínas e aquedutos romanos serviam como sinais para que os colonizadores chegassem a conclusões semelhantes. Essa narrativa tornou-se central para o período colonial francês na região – apesar de muito contestada na época, já que a existência daquele tipo de ruína confirmava para muitos pesquisadores que o clima já era árido no passado, o que explicaria a necessidade de grandes obras hidráulicas.
O efeito prático desse debate foi a expulsão de povos árabes e bérberes de suas terras, tendo suas práticas e modos de vida sido criminalizados por políticas coloniais escritas com a justificativa de supostamente devolver aos desertos a vida que havia sido perdida ao longo dos séculos. As áreas mais áridas da bacia do Mediterrâneo, cabe lembrar, não são ruínas vazias, mas um mosaico de paisagens repletas de plantas adaptadas ao longo de milênios ao seu regime hídrico e climático variável, assim como à presença humana e a um regime de fogo controlado. Durante mais de cem anos de colonização francesa na região, muitas comunidades de árabes e bérberes, seus rebanhos de animais e campos de pastoreio deram lugar forçadamente às monoculturas, às grandes fazendas de trigo e de oliveiras e às florestas comerciais administradas por colonos franceses, que abasteciam a outra margem do Mediterrâneo.
O que podemos ver a partir desses exemplos é um conjunto específico de ideias e de práticas científicas que foram gestadas na fronteira colonial, das Américas à África e à Índia. Muitas vezes essas fabulações científicas funcionaram como um mito duplo e espelhado – como os pares de oposição de que falava o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Florestas eram vistas como paisagens intocadas, a despeito dos povos que as habitavam e cultivavam, invisibilizados pelas narrativas coloniais, sem os quais não existiria tanta biodiversidade. Em oposição, em muitos contextos, os desertos, campos e savanas foram vistos como paisagens degradadas historicamente por seus nativos, como extensas ruínas naturais. Para as primeiras, a ideia era de que uma abundância de plantas levava a um excesso de umidade, que precisava ser controlada nas terras temperadas ou cuidada para que não se perdesse nas terras de clima mais quente. Para as paisagens mais áridas, aos olhos dos colonizadores, era como se o excesso fosse causado pela presença dos povos nativos e seu instrumento primordial, o fogo, que resultaria na perda de fertilidade. Se em alguns lugares essas ideias fizeram parte de uma crítica à colonização europeia e à devastação ambiental, em outros justificaram políticas coloniais bastante perversas, como a remoção violenta de comunidades de pastores de suas terras e a proibição de seus modos de vida e do manejo controlado do fogo no Magrebe — fogo diferente, cabe ressaltar, das grandes queimadas do agronegócio.
Na virada do século XIX para o XX, a ideia de mudanças climáticas locais em ambientes circunscritos, pensada a partir das relações entre florestas e chuvas, foi perdendo espaço nas ciências atmosféricas para outros tipos de explicação – a partir da compreensão das dinâmicas de massas de ar e das relações entre a atmosfera e os oceanos. A influência de fenômenos climáticos entre diferentes regiões dava conta de entender as alterações nos ciclos de secas e de chuvas em muitos lugares. Hoje sabemos que as regiões no Atlântico onde foram cultivadas as plantations, por exemplo, sofreram os efeitos da oscilação da temperatura das águas do oceano Pacífico – os fenômenos chamados de El Niño e La Niña – e de outros padrões, como ciclos de aquecimento das águas do Atlântico, o que explicaria em parte as secas extremas observadas no passado.
Porém, a longa história das associações entre vegetação e clima nas ciências, apesar de suas relações conturbadas com a colonização, parece ter voltado a fazer sentido em nosso tempo. Hoje, por outros rumos e metodologias, cientistas voltam a se indagar se as plantas recebem passivamente os fenômenos atmosféricos ou se são capazes de tecer relações com eles. Cientistas estão buscando entender, com medições precisas, análises químicas e sensoriamento remoto, como as plantas da Amazônia até as florestas boreais são capazes de liberar compostos orgânicos voláteis biogênicos, que influenciam nas dinâmicas de condensação de nuvens e na formação de precipitação. Aqui no Brasil, teorias como a dos rios voadores ou aéreos e da bomba biótica indicam como a Amazônia é uma “floresta-clima”, reciclando e bombeando uma enorme quantidade de umidade sobre si mesma, que também é carregada por correntes atmosféricas em direção ao centro-sul do continente sul-americano.
Trabalhos empíricos e modelagem computacional nas últimas quatro décadas evidenciam padrões regionais de mudanças climáticas na Amazônia e os impactos do desmatamento no clima, especialmente na formação de chuva e nos regimes de seca e chuva. O crescimento desenfreado do desmatamento vem acompanhado de um alerta: a piora das secas na Amazônia e no restante do continente. Soma-se a isso a substituição por soja e pasto da vegetação do Cerrado, cujas raízes profundas ajudam a manter os mananciais que abastecem as maiores bacias hidrográficas do país – que na última década vêm secando numa velocidade alarmante. As “florestas-clima” e os “cerrados-mananciais”, compreendidos de forma interconectada, vão desaparecendo conjuntamente em muitas partes ante a expansão do agronegócio predatório – processos regionais que se somam às mudanças climáticas globais.
As soluções e os alertas chegam tanto da comunidade científica como das comunidades indígenas e tradicionais em toda parte. Os xamãs da Terra Indígena Yanomami conhecem bem a importância das árvores da floresta tropical, a “floresta-mundo” urihi que habitam, cuidam e cultivam, com suas observações cuidadosas e suas experiências ao longo de muitas gerações. Entre os Yanomami, certas árvores propagam, por meio de sua respiração úmida, o sopro da vida do rio e dos espíritos do mundo subterrâneo. Elas não apenas recebem, mas ativamente garantem a circulação das águas e das chuvas. No Brasil, atingido por secas cada vez mais severas, o enfrentamento dessa devastação não pode ser feito, portanto, sem a garantia da integridade das matas habitadas pelos povos originários. A grande lição dessa longa história é que talvez seja difícil assegurar a continuidade das chuvas sem a proteção das plantas abaixo delas.
André S. Bailão
Doutor em Antropologia Social pela USP, onde é um dos coordenadores da Enciclopédia de Antropologia. Participa do projeto “A Amazônia como microcosmo do Antropoceno”, coordenado por André Felipe Cândido da Silva na Fiocruz.
Luis Vera
Fotógrafo paraguaio, formado em Comunicação Social, com estudos em Antropologia e Direito. Foi premiado com o Bayard for Photography (2020) e realizou residência artística na Cité des Arts (2022).
Como citar
BAILÃO, André S. Florestas-clima. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 54-63, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.