FRONTEIRAS
TRANSNACIONAIS
Ursula Biemann
Performing the Border é um vídeo-ensaio que descreve uma cidade na fronteira do México com os Estados Unidos. A Cidade de Juarez está situada em uma zona de livre comércio instalada para operações de montagem da indústria norte-americana. Há centenas de maquiladoras nessa cidade, onde mulheres mexicanas soldam chips para a nossa cultura digital. Ela é uma zona transnacional que substituiu a vida rural de milhões de mexicanos por favelas de alta tecnologia. Nesse tipo de zona, o escravo colonial transformou-se em um robô pós-Fordista, manufaturando chips em fluxo constante. Estamos conscientes de que a política transnacional criou condições particulares para a produção do mercado global acontecer. Dentre essas condições, está o fato de que as mulheres têm que construir seus próprios barracos no deserto quando se mudam para Juarez, de que a força de trabalho das mulheres jovens é gradualmente substituída quando a sua vista já não consegue realizar o trabalho com precisão e de que muitas trabalhadoras se prostituem nos finais de semana, porque suas rendas não são suficientes para a sobrevivência, nem mesmo na favela.
Performing the Border trata de questões sobre a divisão internacional do trabalho, a migração e a sexualização dos corpos femininos na organização pós-industrial global. Traça um registro espacial da conexão entre o corpo feminino e a alta tecnologia, revelando patologias na esfera pública e descrevendo a construção da fronteira nos seus sentidos materiais e metafóricos. Todas essas relações que caracterizam a ordem subjacente dessa cidade fronteiriça falam sobre as forças globais que são muito mais amplas do que o lugar em si mesmo. Entretanto, algumas relações são mais visíveis do que outras. Na verdade, muitos processos são, cada vez mais, abstratos e irrepresentáveis e não poderiam ser capturados somente pela prática do documentário.
Essa cidade pequena e suja é o modesto não-lugar através do qual as linhas multidirecionais de sentido podem ser narradas. Meu interesse é pelo campo de conexões e associações criado na forma artística do ensaio, expandindo o significado de um lugar particular para além da sua realidade documentável; é pensar sobre as políticas desse espaço videográfico. Em Performing the Border, a geografia do ensaísta e a geografia transnacional convergem, ambas exprimindo-se como construções artificiais.
Tal como a política transnacional, a prática do ensaio exercita o deslocamento, redefine as fronteiras nacionais e aglutina diferentes locais por meio de uma lógica particular. Mas, no ensaio, é a voz do narrador que junta os fragmentos em uma série de reflexões que seguem um roteiro subjetivo. A voz autoral é claramente reconhecida como uma visão pessoal, uma posição de migrante feminino, trabalhadores brancos, gays, negros, etc. – e isso a distingue de uma voz documentarista ou científica. É a voz translocal de um sujeito móvel e viajante que não pertence ao lugar por ele descrito, mas sabe o suficiente sobre o lugar para elucidar camadas de significação. O ensaio não acredita na representatividade da verdade. A intenção do ensaísta baseia-se, preferencialmente, numa reflexão sobre o mundo e sua ordem social, organizando o material em um terreno particular de conexões. Em outras palavras, a abordagem do ensaísta não tem a ver com a documentação de realidades, mas com a organização de complexidades.
Essa característica faz do ensaio audiovisual um gênero adequado para a investigação de um assunto subjetivo como a globalização. Neste debate, muitas questões sobre economia, identidade, tecnologia e política convergem e são colocadas em uma relação mais complexa. O esforço em desenhar essas camadas leva, inevitavelmente, à criação de um espaço imaginário, um tipo de plataforma teórica na qual essas reflexões podem acontecer e criar diálogos. Em todo o trabalho, os ensaístas procedem à montagem desse tipo de espaço. Podemos pensar em uma topografia imaginária sobre a qual todos os tipos de pensamentos e eventos que acontecem em vários lugares e não-lugares experimentam uma certa nova ordem espacial.
A zona de processamento de exportação é uma zona bem definida que não opera de acordo com as leis sociais comuns, é um lugar em um estado de isenção, um não-lugar onde as realidades civis e as regulamentações nacionais estão em grande parte suspensas em favor de um arranjo corporativo especial. Foucault chama essas formações de heterotopias – lugares que estão localizados fora das regulamentações sociais comuns, em desacordo com a norma. Ao mesmo tempo, as heterotopias representam uma posição contrária àquelas que refletem e comentam precisamente a respeito de como a sociedade normativa funciona. Clínicas psiquiátricas, prisões, escolas militares, bordéis e colônias são exemplos de heterotopias. De qualquer forma, as heterotopias estão falando particularmente sobre lugares e, diferentemente das utopias, que são essencialmente irreais, elas são reais, espaços efetivos. Podemos pensar nas zonas de livre comércio como sendo heterotópicas.
O que caracteriza a lógica da política transnacional? O conceito é geralmente associado ao trabalho deslocado, às redes de mídias globais, aos mercados liberais, ao capital livre e, podemos dizer, a uma relação ambígua com as fronteiras. As fronteiras são, simultaneamente, transcendentes e reforçadas, e a tecnologia digital cumpre um papel central na dispersão global e na proteção das delimitações nacionais do território. A imagem positiva é a ideia de que, junto com essa dispersão, segue um sentimento de se estar à deriva, em fluxo, completamente móvel, como se fôssemos capazes de estar em vários lugares ao mesmo tempo. Não é mais a imagem do viajante que passeia pelo mundo, mas de um sujeito multi-presente, conectado aos vários lugares profissionais e pessoais no tempo. Isso nos leva a reconsiderar o significado de lugar e de localização. O ensaio audiovisual tem experimentado topografias imaginárias que conectam eventos simultâneos, porém distintos, em vários lugares, antecipando o estado de deriva e o espaço virtual.
Mas com toda essa publicidade sobre mobilidade, é interessante olhar para o papel do corpo na zona transnacional, assim como no espaço criado pelo ensaísta. Na tradição do documentário, a realidade é anexada a um corpo, a câmera foca no ator social, um corpo histórico. Na ficção, por outro lado, o corpo representa uma figura narrada, é um corpo narrado. Entretanto, no ensaio, os corpos não são instrumentalizados, eles não têm que desempenhar funções representativas. Pelo contrário, no seu modo de autorreflexão, os corpos dos ensaístas contribuem para a construção do espaço. Neste caso, eles produzem fronteiras. É através do movimento dos corpos que a fronteira se constrói, como diz Bertha Jottar. Esses corpos particulares que cruzam a fronteira possuem raça e gênero, além de ser nacionalizados e econômicos. A fronteira não se torna uma construção neutra, mas é marcada por essas relações. Assim, em Performing the Border, o corpo não se torna o carregador de uma narração mas constrói ativamente fronteiras, traça geografias e desempenha princípios transnacionais. Está sempre fazendo algo além do que é dito sobre ele.
Então, se dizemos que o conceito transnacional é interessante por trazer características otimistas ao estilo de vida do mundo desenvolvido, também teremos que reconhecer que essa condição é potencializada pelo trabalho das pessoas localizadas ao sul da fronteira. Quando a tendência geral é representar a globalização em imagens da mobilidade livre e intensificada de pessoas, este vídeo é uma tentativa de promover e localizar a cultura virtual e digital em um lugar transnacional particular. Não são os jet-sets, a elite de negócios que utiliza palms, nem mesmo o nerd de computador que se aposenta aos 30 anos; é a mulher mexicana cyborg que é ligada à sua banca de trabalho por um cabo de descarga elétrica e retorna ao seu barraco sem água corrente ou eletricidade à noite. Essa imagem ergue-se em analogia invertida e em diálogo crítico com aquelas imagens de glamour que circulam nas revistas que tratam da globalização.
Mesmo que este vídeo seja uma tentativa de trazer uma complementação de informações, ele não pede para entrar no real ou para ser mais verdadeiro do que as representações corporativas. Ele abre um novo espaço desconectado do real nos níveis visuais e sonoros. Movimentos lentos, colorações, distorções e camadas intensas transformam as imagens em elementos discursivos em vez de fatos descritivos. Mas, talvez, o mais importante é que o som original é deletado e substituído por um som eletrônico. O espaço material é, assim, tecnologizado, deslocado, desmaterializado e preparado para uma leitura diferente, não comprometida com a documentação da vida mexicana. É uma voz que argumenta e especula, tornando-se teórica ou poética. A voz é sempre a mesma, mas o texto é uma reunião de muitas e diferentes fontes. Não há uma voz que fale como um “eu”. Não há um sujeito particular atrás da narração, embora essa narração seja altamente subjetiva. O vídeo fala de uma posição particular que poderia ser descrita como a de uma feminista branca que está em processo de mudança de um lugar marxista para um lugar pós-colonial, pós-Fordista, pós-humanista. O vídeo tenta ainda descobrir como transpor tais questões para um discurso estético e teórico contemporâneo no contexto globalizado.
O aspecto performativo das fronteiras possui um papel importante. Uma vez que abraçamos o conceito de performance, estamos tentados a aplicá-lo em quase tudo que, previamente, concebemos como estável e fixo. Se pensamos primeiramente nas fronteiras como limites políticos imóveis, que mudarão seus significados somente através de pactos ou de intervenções militares, a ideia de performance permite que as vejamos radicalmente diferentes. O foco é deslocado de uma fixação nas forças divisórias do poder para a múltipla construção social do espaço, que se realiza através de atos de pessoas comuns ao mesmo tempo em que de agentes globais, descentralizando o poder. Além desses esforços desconstrutivos, o vídeo, simultaneamente, garante o movimento das pessoas e a circulação de sinais realmente efetivos. A ideia de que as fronteiras são construídas e praticadas socialmente não é somente inspiradora, mas realça o agenciamento dos artistas, visto que destaca seu envolvimento na produção simbólica como ato performativo de “fazer fronteira”, se quisermos adaptar a noção de Judith Butler de “fazer gênero” a este ato geográfico.
Assim, uma das principais questões do meu trabalho, durante os últimos anos, é pensar como as trajetórias humanas, o tráfego de sinais e de informações visuais formam paisagens culturais e sociais particulares e, consequentemente, inscrevem-se materialmente no território. Não é por coincidência que Performing the Border abre com uma cena que mostra o interior de um carro se movendo pelo deserto mexicano. A voz de Bertha Jottar comenta: “Você precisa do cruzamento dos corpos para a fronteira tornar-se real, senão você tem apenas uma construção discursiva. Não há nada natural em relação à fronteira; é um lugar altamente construído, que se reproduz através dos cruzamentos das pessoas, porque sem o cruzamento, não há fronteira, certo? Ela é somente uma linha imaginária, um rio ou apenas um muro…” Nessa cena, eu estava filmando a mulher dirigindo um carro e, depois, eu me tornei parte da narrativa da estrada enquanto Bertha fala sobre a fronteira entre os Estados Unidos e o México como um lugar altamente performático. É um lugar que é constituído discursivamente, através da representação das duas nações e, materialmente, através da instalação da zona transnacional, na qual diferentes discursos nacionais se materializam em um espaço ambivalente na margem das duas sociedades.
É através do movimento dos corpos que a fronteira ganha sentido. “Eles estão cruzando em inglês, em espanhol, emespanglês, com passaporte americano ou como turista, migrante, mulher de classe média, doméstica. Há todos esses diferentes modos de atravessar, e a forma como a fronteira se rearticula é através das relações de poder que o cruzamento produz. “Porque não é somente esse cruzamento feliz”, comenta Bertha, sobrepondo-se a imagens oníricas e superexpostas de pessoas em barcos infláveis flutuando sobre o rio Bravo.
Performing the Border foi seguido por uma série de outros vídeos sobre aspectos econômicos em condições geográficas muito específicas. Quanto mais profundo eu mergulhava na reflexão sobre a fronteira, mais meus vídeos se tornavam documentos sobre mobilidade, transgressão, clandestinidade e subversão do controle. Desviando a atenção da atual fascinação dos poderes geográficos e dos repressivos regimes de fronteira, minhas investigações exploraram de modo crescente as contrageografias, espacialidades constituídas pelos sistemas de operações secretas, pelas práticas inovadoras de resistência e pelas autodeterminações migratórias.
Contained Mobility, vídeo-ensaio de 2004, apresenta esse tipo de contrageografia. A dupla projeção sincronizada justapõe duas realidades. Uma tela mostra o mundo digital do sistema de informação marítima, enquanto a outra registra o interior de um contêiner habitado por Anatol Zimmerman, um solicitante de asilo, oferecendo-nos um olhar sobre as formas de vida instáveis e translocais que emergiram no contexto atual. A parte que segue a trajetória de Anatol narra a realidade em um estado de exceção. Bielorrusso, nascido em um campo de detenção no Gulag, vive no limbo por tempo indeterminado, com seu status suspenso. Ele simboliza o corpo itinerante que nunca alcança um destino final. Prolongados estados de suspensão legal são crescentemente experimentados por pessoas que não conseguem se estabelecer em nenhum lugar. O estado provisório – o campo de recepção e os procedimentos de asilo – tornou-se uma condição permanente pós-humana e pós-humanista.
Desde meados de 1990, Anatol tem trabalhado na Polônia e tentado entrar na União Européia. Primeiramente, nadando pelo congelado rio Neisse até a Alemanha, depois, atravessando montanhas e pântanos na Hungria, Eslovênia e alhures. No vídeo, ele aparece como um ser altamente educado e bem vestido, que, com astúcia, usa a tecnologia para encontrar buracos no sistema de “Schengeland”. Enquanto as imagens de webcam mostram Anatol em um contêiner, a narrativa de sua odisséia de travessias ilegais nas fronteiras, sua captura, sua internação e sua fuga passa pela tela. Se a identidade cultural tem sido há muito percebida como uma concepção fundamentalmente estática, baseada no estado de nação, este vídeo segue o modelo da identidade como pura mobilidade.
Contained Mobility justapõe duas realidades espaciais: o sistema global de transporte de contêiner e a migração humana contida como puro movimento. Com o intuito de controlar o fluxo de comércio e pessoas, uma rede global regulatória está emergindo, centrada nos maiores nódulos e pólos logísticos de portos e aeroportos. Cada vez mais, as tecnologias sofisticadas desejam administrar e controlar os fluxos globais, combatidos através de táticas inventivas de evasão por pessoas que questionam a prerrogativa do acesso. Práticas opressivas de controle espacial não implicam na resistência estar confinada nos espaços de dominação autorizados. Ela pode acontecer em qualquer lugar. Contained Mobility agarra esse momento de transformação para entender o sujeito emergente e dar visibilidade à sua condição.
Nenhuma das imagens de Contained Mobility documentam a realidade. São uma construção artificial: uma paisagem marítima simulada, uma versão virtual de dados digitais, uma webcam montada em estúdio. O vídeo é uma afirmativa conceitual sobre uma situação particular de estar no mundo. Diz o prólogo: “Chegar em terra firme num lugar sem costa, num mundo contêiner que tolera apenas o estado translocal de não ser desse lugar – e de nenhum outro –, existindo em uma condição permanente de não-pertencimento e não-existência jurídica”. A condição do refugiado é expressa sempre no negativo.
Temos que admitir que, ao entramos no domínio da produção da imagem, enfrentamos uma série de problemas diferentes daqueles que enfrentamos desde uma perspectiva ativista. A questão que emerge é: como pode um vídeo, ainda que simplesmente argumente contra o capitalismo global e afirme novas identidades, refletir sobre e produzir a expansão do espaço no qual escrevemos e falamos? Há uma necessidade de investigar o efeito recíproco entre a simbolização do problema e a sua realidade material. Mesmo se o vídeo como suporte prometesse ser de grande utilidade para o trabalho ativista, seu maior objetivo não é canalizar a mudança social direta nem ser reduzido a uma mera contribuição para discursos correntes. Seu objetivo reside na mediação entre os dois, numa intervenção efetiva no ato performativo da representação. O processo de ressignificação (videográfica) da diferença, de abertura de zonas cinzentas e da escritura de contrageografias acontece entre as imagens e as nossas vidas, em algum lugar entre as limitações da representação e as lutas políticas ou existenciais.
Ursula Biemann
Artista, curadora e pesquisadora das relações socioespaciais de migração, mobilidade, tecnologia e gênero. Atua em diálogo com antropólogos, arquitetos e ONGs.
Como citar
BIEMANN, Ursula. Fronteiras transnacionais. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 1, p. 18-22, jan. 2010.