GUERRA
E GRAMA
Beatriz Colomina
O gramado emerge, durante e depois da guerra, como o símbolo absoluto da vitória do modelo de vida americano. Os cuidados com a grama e o combate às pragas foram a versão doméstica dos esforços bélicos e de aniquilamento do inimigo.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o gramado tornou-se um campo de batalha. Cuidar do gramado era uma forma de guerra, um dever nacional cumprido tanto para o moral de quem estava em casa quanto para o das Forças Armadas. Cuidar da grama significava nada menos que cuidar do rosto da nação. Anúncios em revistas de grande circulação apresentavam uma controvérsia ampla e contínua sobre o papel central do gramado na definição da arquitetura doméstica e, simultaneamente, da ideologia nacional. Um anúncio do fertilizante Vigoro na revista House Beautiful diz: “Provavelmente você, também, tem um ente querido em serviço… um filho cujas poucas horas de lazer são gastas pensando em casa”. Sintomaticamente, o que deve ser relembrado pelo soldado como “lar” não é uma casa, mas um gramado: “Onde quer que ele esteja, está sonhando com a grama aveludada, lindas flores… ele quer voltar para elas. Mantenha-as bonitas, esperando esse dia! Elas contribuirão imensamente para um front doméstico vencedor”. O gramado é o lar do soldado americano.
Inúmeras imagens de gramados foram enviadas ao front. Encartes na revista Life lembravam aos leitores de repassar a publicação para os familiares que estivessem nas Forças Armadas, e as matérias dirigidas aos soldados eram dominadas por fotos de gramados. Dezoito das 29 fotografias em An American Block: War Has Made Few Marks on Progress Avenue (“Um quarteirão americano: A guerra deixou poucas marcas na avenida Progresso”), uma matéria de 1943 na revista Life, são de gramados: famílias posando nos jardins em frente a suas casas, o carteiro entregando a correspondência no gramado, o garoto entregando o jornal, um grupo de crianças lendo gibis na grama, uma mulher recolhendo as folhas, uma mulher com crianças e um bebê na calçada, mulheres no gramado lavando roupas, uma mulher saindo de casa para trabalhar em um emprego de apoio à guerra. Finalmente, e mais impactante, há uma fotografia de crianças brincando de guerra em uma trincheira no quintal, com metralhadoras feitas de madeira e alumínio e capacetes de tigelas de batedeira.
O gramado não é só um campo de batalha improvisado ou o lugar de uma divertida brincadeira de guerra. Cuidar do front doméstico é cuidar da grama, o que uma matéria na revista House Beautiful descreve como “um desafio para os guerreiros do front doméstico”. Revistas de grande circulação recorrentemente dão dicas, admitindo, ao mesmo tempo, que não se trata de tarefa fácil: “Sem ajuda, é um trabalho e tanto, isso de cuidar da casa. O que fazer para controlar os arbustos? A cerca viva? Os zimbros ao lado da porta têm que ser aparados? O gramado ficaria cheio de ervas daninhas se você deixá-lo crescer pelo resto do verão?”, escreve a revista Better Homes and Gardens, em 1944. O front doméstico de fato é um gramado, uma fachada verde, horizontal, vista do céu – como nas incontáveis vistas aéreas dos subúrbios que lembram a fotografia aérea, que teve um papel fundamental no reconhecimento militar de territórios e em bombardeios.
Durante a guerra, o governo encorajou as pessoas a ficar em casa e cuidar do gramado quando não estavam no trabalho. Como Virginia Scott Jenkins apontou, cuidar da grama era um hobby que economizava gasolina, pneus e transporte público, todos eles recursos cruciais para o esforço de guerra. Mais do que isso, as pessoas eram estimuladas a transformar parte de seus gramados em um “jardim da vitória”. Cultivar vegetais para o uso pessoal aliviava não apenas os produtores, mas também os transportadores e empacotadores dos crescentes carregamentos de guerra. As revistas contribuíam em grande medida para a campanha: “Tenha seu jardim E COMA-O TAMBÉM!”, escreveu a House Beautiful. “Procuram-se! 20.000.000 jardineiros da vitória”, dizia um anúncio da marca de sementes Stum & Walter. Ao mesmo tempo que a empresa lucraria com o aumento nas vendas, o que o anúncio apontava era a obrigação patriótica de ter um jardim da vitória. O bronzeador mais vendido, Gaby, era anunciado com uma mulher de biquíni usando um par de óculos na forma de dois sóis escaldantes: “Com as nossas Forças Armadas sob os céus tropicais ardentes… nos jardins da vitória, Gaby faz milagres!”. Até a Coca-Cola se promovia como a “Hospitalidade… em um jardim da vitória”. O anúncio mostra uma grande imagem de uma horta em um gramado, enquanto uma imagem menor em cima dela mostra duas mulheres, uma delas com roupas de jardinagem, perto de um conjunto de cadeiras e uma mesa com garrafas de Coca-Cola. A Coca-Cola é para aquele momento de relaxamento em que o jardineiro recebe o vizinho que veio admirar o jardim.
Mas o maior benefício de ter um jardim parece ter sido o psicológico: “Deixe a GUERRA no portão de seu jardim”, escreve a House Beautiful em 1943. O jardim, segundo a matéria, é o antídoto da guerra: “A guerra te observa dos jornais da manhã em sua porta. Ela se espreme com você no ônibus das 8h16. Ela te arrebata das prateleiras da mercearia. Mas há um lugar em que a guerra não pode te alcançar – seu jardim”. Uma matéria de 1942 na revista Life, Gardens for the U.S. at War (“Jardins para os Estados Unidos em guerra”) narra os benefícios econômicos e a obrigação patriótica de ter um jardim e depois afirma: “Mas, acima de todos esses ganhos, está a simples alegria de cultivar coisas – o prazer primitivo de sentir a terra úmida entre os dedos em abril, o encanto de ver o milho brotar e os tomates crescerem e amadurecerem de um dia para o outro, o intenso deleite de aniquilar ervas daninhas e insetos inimigos, a dor prazerosa do sol quente nas costas e nas mãos… Essas são coisas que trazem uma paz gratificante para quem está preocupado com a guerra e transformam homens mudos em poetas”.
A terapia do gramado não era desprovida de violência. “O intenso deleite de aniquilar ervas daninhas e insetos inimigos” se transforma em um chamado ativo à violência em uma matéria de 1944 da revista Better Homes and Gardens que instrui mulheres sobre o cuidado do gramado: “Sobre toupeiras – você pode desenterrá-las se tiver paciência. E se estiver suficientemente furiosa com o que uma toupeira fez com a sua grama e suas flores, você não se importará nem um pouco em nocauteá-la com a sua pá. Espere até ver o solo se mexer e tenha certeza da direção de seu movimento. Então, golpeie suas costas com a pá e dê uma surra nela”. Mulheres são estimuladas pelo autor (um homem) a exercer violência física direta. Para as mais frágeis, porém, há técnicas mais avançadas, quase militares: “Algumas pessoas afogam as toupeiras até a morte, mas, com um gramado infestado delas, não sei quanto você gastaria na conta de água. Provavelmente, é mais fácil envenenar com gás. Pergunte a seu jardineiro sobre a melhor marca de cartuchos”.
As técnicas de guerra mais temidas haviam se transformado em estratégias domésticas, sendo o próprio gramado o local de uma espécie de guerra. “É hora de atacar as pragas do seu jardim”, escreve a House Beautiful em 1944. “Saber quando o inimigo atacará é tão importante quanto conhecer sua aparência. Prepare suas armas e sua estratégia com antecedência e tenha um jardim melhor durante todo o ano.” Insetos são retratados como soldados inimigos, e insetos voadores como aviadores de guerra japoneses. Um anúncio do inseticida Bug-a-boo apresenta os insetos como soldados em retirada: “TCHAU TCHAU, GAROTOS, É O Bug-a-boo”. Outro, do repelente Skat, apresenta insetos voadores com pintas em suas asas: “Prontos para ATACAR, mas… Skat vai espantá-los”. O tema dos insetos voadores como aviadores japoneses é onipresente. Desenhos mostram soldados apontando armas de inseticida para insetos decorados com emblemas de aviões de guerra.
A retórica da batalha chega a seu clímax com o besouro-japonês. O controle dessa praga de jardim se torna uma oportunidade não apenas de repercutir a guerra no Pacífico, mas também de expressar racismo e preconceito descarados, como em um artigo de 1944 na revista Life, com o título Japanese Beetle: Voracious, Libidinous, Prolific (“Besouro-japonês: voraz, libidinoso, abundante”), que afirma: “O besouro-japonês, diferentemente dos japoneses, não tem malícia. No entanto, há muitos paralelos entre os dois. Ambos são pequenos, mas muito numerosos e fecundos, além de vorazes, ambiciosos e destruidores. Ambos têm mentes limitadas. Ambos são inescrutáveis, especialmente o besouro… Há muito tempo declaramos guerra contra eles e, embora tenhamos poucas chances de conseguir uma vitória completa – que significaria exterminar cada um dos besouros de nossas terras – podemos almejar um sucesso mais limitado, de forma que sua quantidade seja mantida no limite da decência, ainda que seu caráter nunca mude”.
A matéria prossegue explicando o alcance do problema, a tática de avanço do besouro desde sua “entrada ilegal” nos Estados Unidos e a tática de contra-ataque em uma batalha em que já se renunciou à vitória completa: “75 mil km2 nos estados de Massachusetts, Connecticut, Nova Iorque, Nova Jérsei, Pensilvânia, Delaware, Maryland e Virgínia… são o território controlado firmemente pelo inimigo. Os avanços dos besouros são verdadeiramente japoneses, com um total desprezo pelos soldados dispensáveis. Desde que alguns cheguem lá, não importa quantos outros pereçam”.
Esses besouros eram não apenas guerreiros suicidas, camicases; eles também se deixavam levar por prazeres excessivos. Segundo a revista Life, eles dormiam tarde e dedicavam seus dias a uma contínua orgia de comida e sexo em que os dois se confundiam: “É bem fácil encontrar 50 ou 100 deles em uma só maçã, que eles comerão até o caroço, enquanto outra maçã a poucos centímetros está intocada. Em parte, esse hábito se deve à sua vida sexual ativa, da qual eles desfrutam enquanto comem”.
A primeira linha de defesa para combater uma criatura tão viciosa era conter o inimigo ou colocá-lo em quarentena, como o governo recomendava desde 1919. Uma vez contido, o besouro-japonês seria atacado com uma série de armas, incluindo pulverizadores, venenos e armadilhas. O Ministério da Agricultura recrutou cientistas como informantes na batalha: “A partir de 1920, entomologistas foram enviados ao Extremo Oriente para estudar insetos simpáticos [que atacam besouros-japoneses]… Dois de nossos entomologistas foram surpreendidos no Japão pelo início da guerra… Eles haviam encontrado e enviado nada menos que 26 espécies úteis de insetos”. Os mais úteis eram pequenas vespas japonesas que comiam besouros. Mas a maioria dos insetos importados não se adaptou, e o ministério recorreu a métodos mais agressivos: “Uma maneira mais efetiva de atacar os besouros é alastrar epidemias entre eles. Todo ano, mais de meio milhão de larvas são coletadas para esse fim”. As larvas eram injetadas, uma a uma, com uma dose da doença, por meio de uma agulha hipodérmica. Elas eram anestesiadas antes do procedimento, não por razões humanitárias, mas para torná-las mais fáceis de manusear e impedir que mordessem umas às outras.
Assim, a guerra da grama tornou-se uma guerra médica, equiparando-se, mais uma vez, à guerra real: “Há um inimigo contra o qual os americanos não devem ter escrúpulos no ataque bactericida. É o besouro-japonês, o flagelo de muitos jardineiros urbanos e suburbanos”, afirma a Better Homes and Gardens, em 1944, enquanto promove o uso de um produto chamado Japidemic. A indústria dos inseticidas, aliás, começou como um desdobramento das pesquisas militares sobre ataques químicos na Segunda Guerra Mundial. Descobriu-se que alguns dos produtos químicos desenvolvidos eram letais para insetos, o que não é surpreendente, já que os insetos eram amplamente utilizados como substitutos de humanos para testar químicos. Nesse sentido, quando insetos eram retratados como soldados em anúncios de inseticidas, não se tratava apenas de uma metáfora.
Mas há outro sentido no qual inseticidas eram armas. Durante a guerra, eles foram amplamente utilizados para proteger soldados de insetos estrangeiros: “Nossos soldados estão bem felizes por ter FLIT – e todos os outros inseticidas supermortíferos. Eles são verdadeiras armas de guerra em muitas frentes de batalha infestadas de insetos”, diz um anúncio de FLIT, enquanto um desenho mostra um soldado escrevendo uma carta atrás de uma barricada, feita de caixas de FLIT, que o separa de insetos com asas pintadas que o atacam: “Sério, mãe, se o FLIT não tivesse chegado, teriam nos comido vivos!”.
O DDT, produzido pela primeira vez em 1874, foi descoberto como inseticida em 1939 pelo suíço Paul Muller, que recebeu o Prêmio Nobel. Usado durante a guerra, ele se mostrou tão eficaz que toda a produção foi reservada para os militares. Somente em 1945 a população em geral teve acesso ao DDT, muitos retornando da guerra e já familiarizados com o produto. As armas químicas que haviam sido desenvolvidas para proteger soldados e atacar outros humanos foram disponibilizadas a todos. O DDT foi recebido como “a bomba atômica do mundo dos insetos”.
Até técnicas militares para aplicar o químico foram utilizadas. Em 1948, uma matéria na revista Life comemora a cobertura de cidades inteiras com DDT por meio de helicópteros equipados com “máquinas de fumaça”. Aclamadas como um sistema muito mais eficiente que pulverizadores tradicionais, as máquinas de fumaça eram uma adaptação do gerador de fumaça da Marinha: “A fumaça cobre tudo com uma película submicroscópica e inoxidável de veneno, letal para insetos mas inofensiva para humanos, animais e alimentos”. As imagens da matéria mostram uma pequena cidade recebendo fumaça para matar borrachudos por meio de um helicóptero, crianças brincando na fumaça enquanto um caminhão nebulizador passa, vacas na fumaça (“vacas sem picadas dão mais leite”) e uma mulher de biquíni emergindo da fumaça com um cachorro-quente numa mão e uma garrafa de refrigerante na outra (“diferente de pós e sprays, a fumaça não contamina a comida”). Mas a precipitação que vinha dessas armas começou a afetar, além dos insetos, cada vez mais a vida dos humanos. Nos anos 1950, houve muitas formas de protesto contra esses ataques domésticos, mas somente anos mais tarde o dano à população foi identificado.
Outros inseticidas disponibilizados no pós-guerra eram ainda mais perigosos que o DDT. Como Rachel Carson aponta em seu livro Primavera Silenciosa, de 1962, ésteres de ácido fosfórico, descobertos como inseticidas pelo químico Gerhard Schrader no final dos anos 1930, foram reconhecidos pelo governo alemão como armas químicas. Alguns se tornaram gases nervosos, enquanto outros foram transformados em inseticidas como o Malathion e o Paration, amplamente usados nos Estados Unidos. Os efeitos devastadores dessas toxinas tornaram-se mais rapidamente óbvios quando centenas de pessoas morreram instantaneamente ao comer vegetais e frutas com camadas de Paration ou entrando em contato com contêineres vazios de químicos. No entanto, o Paration continuou a ser amplamente utilizado na agricultura. Carson cita uma autoridade médica sobre o fato de que, em 1961, “a quantidade [de Paration] utilizada apenas nas fazendas da Califórnia poderia fornecer uma dose letal para uma população cinco a dez vezes maior que toda a humanidade”.
A confusão entre insetos e o inimigo pode explicar a popularidade do tema dos insetos em revistas de grande circulação ao longo dos anos de guerra. Ao final da guerra, uma matéria na revista Life com o título Enemy Insects (“Insetos Inimigos”) comparava o custo anual de inseticidas na agricultura nos Estados Unidos – US$ 3 bilhões –, ao custo de produzir uma bomba atômica, que era US$ 1 bilhão menor.
O fascínio com imagens de guerra e a retórica militar permaneceu após a guerra, como mostram as matérias de revistas e o design e os anúncios de equipamentos de jardinagem e pesticidas. Uma “pistola de pó” chamada Bug Blaster se parece com uma bazuca, embora seja manuseada como uma vassoura. Cortadores de grama eram anunciados como armas e tinham nomes marcantes como Savage Superchief (“Supercomandante Selvagem”), um dos três modelos produzidos pela Savage Arms Corporation (“Corporação das Armas Selvagens”) e dirigidos a mulheres como “fáceis de manusear”, “silenciosos”, “eficientes” e “feitos por mestres das armas”. Em um anúncio de produtos de engenharia da B-W (Borg-Warner), aspersores que “desaparecem quando fora de uso” são apresentados juntamente com uma tecnologia que permite que um piloto de caça “atinja aviões que nunca estão onde ele os vê”.
A grama também está presente em anúncios de produtos ligados à higiene: creme para as mãos, pasta de dente, creme para barbear, papel higiênico e produtos para bebês. O cuidado do gramado era o cuidado do corpo, sobretudo do corpo masculino, cujos afloramentos tinham que ser mantidos sob controle: a grama tinha que ser aparada, como o cabelo, a barba ou o bigode de um homem – cuidada, cortada e embelezada. A revista Better Homes and Gardens comparou uma grama sem aparar a um homem sem se barbear. Depois da guerra, a Motor Wheel Corporation introduziu no mercado um aparador de grama poderoso capaz de dar ao gramado um acabamento “curto, penteado, militar”.
Também há referências aos corpos de mulheres e mesmo de crianças, como quando uma matéria da revista Life colocou lado a lado imagens de gramados e cabelos de mulheres jovens, ou quando uma matéria chamada Fall Hair – Do Your Lawn (“Penteados de outono – Cuide de seu gramado”) estimulou mulheres a cuidarem da grama como se cuidassem do próprio cabelo. O gramado também foi associado à pele macia e sem marcas de bebês e crianças pequenas. Inúmeros anúncios de produtos para crianças, como os da Johnson’s, usavam um gramado como imagem de fundo.
Aliás, uma grama bem cuidada é frequentemente descrita como um carpete, uma superfície macia e aveludada que protege a casa que repousa sobre ela, como se fosse um anel de segurança que a isolasse dos lares vizinhos, da poluição e dos perigos à saúde. O gramado é uma superfície antisséptica em que as atividades da família podem ser levadas para o ar livre. Alguns anúncios das lâmpadas General Electric apresentam o gramado como uma sala de estar ao ar livre ou mesmo uma sala de aula.
Se o gramado é um carpete, o carpete também é um gramado. Um anúncio dos rádios e televisões Belmont mostra um garoto vestindo um uniforme de baseball e assistindo a um jogo na televisão em uma sala acarpetada. Dentro da casa, é como se ele estivesse num campo de baseball. Em outro anúncio, este de sapatos de criança, uma menina vestida de bailarina pratica seus passos no carpete verde de sua casa enquanto seu irmão joga bola em um campo verde aberto. A divisão de gênero nesses anúncios – a menina em casa, no carpete; o garoto lá fora, no gramado – reproduz a separação de tarefas domésticas no lar suburbano. O gramado do pós-guerra era o território de homens ou garotos crescidos (cuidar da grama era considerado um rito de passagem), enquanto as mulheres eram limitadas aos campos de fórmica verde de dentro de casa.
Um desenho publicado na revista Life depois da guerra apresenta a empresa General Motors como um jardim de flores “com um rico solo de dólares dos consumidores sobre o qual crescer”, que produzia “florescimentos opulentos” como Chevrolet, Buick, Frigidaire, Electromotive, Pontiac, Cadillac (que em breve produziria tanques de guerra), Oldsmobile, Delco Appliance. Do jardim da vitória durante a guerra ao jardim florido em tempos de paz, os produtos da indústria americana no pós-guerra eram representados como aqueles de um jardim doméstico, de um gramado produtivo.
Sempre em evidência, o gramado foi utilizado para mostrar as mercadorias que eram subprodutos da guerra ou, como anunciava a propaganda dos tempos de guerra, o estilo de vida americano pelo qual os soldados lutavam. A indústria do pós-guerra era o resultado direto da guerra: carros, cortadores de grama, eletrodomésticos, inseticidas, remédios e até o fast food – tudo que caracterizava os Estados Unidos nos anos 1950 tinha sido desenvolvido como parte dos esforços bélicos. E as mesmas empresas que faziam carros e eletrodomésticos – General Motors, Chrysler, General Electric, Goodyear e Westinghouse – também eram as principais contratadas do setor da defesa nos anos do pós-guerra e dependiam do orçamento da defesa para a sofisticação de seus produtos.
Todas as empresas – das que vendiam carne às que fabricavam bolas de golfe – se anunciaram durante os anos de guerra como engajadas nos esforços do combate e ao mesmo tempo esperando o dia em que todas as técnicas desenvolvidas poderiam ser aplicadas ao uso doméstico. “E viveremos felizes para sempre”, um anúncio da marca de eletrodomésticos Kelvinator, do início de 1945, mostra uma mulher dentro de sua casa admirando pela janela um homem de uniforme e um garoto sentados no jardim atrás de uma cerca branca: “Eu sei que vai ser do jeito que suas cartas descrevem… uma casa vibrante e ensolarada… um jardim onde se pode cavar enquanto o sol o aquece completamente… e uma cozinha para mim, cheia de coisas mágicas”.
Os eletrodomésticos estavam no topo da lista dos objetos mais desejados nos anos do pós-guerra. Em 1946, uma dupla de páginas na revista Life com o título Family Utopia (“Utopia Familiar”) apresenta “o sonho ao qual todos os americanos aspiravam” exibido sobre o gramado. A revista afirma que se trata de um “retrato fiel do sonho da maior parte das famílias americanas… baseado em estatísticas das demandas dos consumidores e dos pedidos não atendidos pelos fabricantes”. Começando por uma casa no subúrbio e um gramado, o que os americanos mais queriam era uma perua conversível, um fogão elétrico, uma televisão-fonógrafo-rádio, uma máquina de lavar, um aspirador de pó, uma lava-louças, uma tostadeira, um ferro de passar, um soprador de folhas, um cortador de grama, móveis de alumínio para a varanda, um escorregador de alumínio, um carrinho de bonecas… e um helicóptero. A família prototípica está sobre a grama, cercada de seus aparelhos.
O gramado é a superfície sobre a qual se exibe a vitória – a vitória militar, como quando os soldados desfilam sobre o gramado, mas também a vitória médica. Uma fotografia de 1949 na revista Life mostra, disposto sobre a grama, um conjunto impressionante de garrafas, curativos e agulhas intravenosas; são drogas e materiais médicos usados para salvar a vida de um garoto gravemente queimado, também exibido em uma cama sobre o gramado, com sua mãe e todos os médicos, enfermeiras, técnicos, colaboradores da Cruz Vermelha e doadores de pele que o mantinham vivo. Até a vitória política precisava do gramado nos anos do pós-guerra. Políticos sempre eram fotografados sobre o gramados, às vezes inclusive em poses hilárias, como quando a revista Life fotografou um “Governador viril” plantando bananeira no gramado de sua mansão. Todo presidente americano é recorrentemente fotografado no gramado da Casa Branca.
O gramado representa a democracia, entendida nos termos do pós-guerra. Todo mundo pode ter um gramado. O gramado é um direito e, como tal, um símbolo do patriotismo pós-guerra. “Conheça um cidadão americano sólido”, um anúncio da American Trucking Industry, de 1947, mostra um homem e uma criança regando vasos de flores enquanto uma mulher no fundo está sentada em uma espreguiçadeira e lê um livro. “Bem na sua cidade – bem no seu quarteirão – pode viver um dos caminhoneiros pelos quais você costuma passar nas ruas e nas rodovias. Um homem de família. Um contribuinte. Um homem com um papel na comunidade… O típico caminhoneiro tem casa e carro próprios… cuida de uma família.” Um “cidadão americano sólido” fica no gramado; ou, nas famosas palavras do empreiteiro suburbano William Levitt, “nenhum homem que tem a própria casa e seu terreno pode ser um comunista. Ele tem muito o que fazer”.
A riqueza em si era uma forma de vitória. A batalha dos eletrodomésticos continuou durante a Guerra Fria, quando os Estados Unidos mostraram a sua superioridade sobre a Rússia comunista tendo por base aparelhos eletrônicos, não armas. A casa suburbana era o ideal representado em 1959 na Exposição Nacional Americana em Moscou, quando a mostra mais simbólica do estilo de vida americano, uma casa de campo repleta de eletrodomésticos, se tornou o fórum dos famosos Debates da Cozinha entre Nikita Khrushchev e Richard Nixon. A casa suburbana havia se tornado uma arma.
Beatriz Colomina
Diretora do Programa em Mídia e Modernidade da Universidade de Princeton, nos Estado Unidos. Publicou diversos livros, entre eles Domesticity at War, de onde foi extraído o ensaio publicado nesta edição.
Como citar
COLOMINA, Beatriz. Guerra e grama. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 11, p. 94-101, nov. 2017.
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