HISTÓRIAS DE NÃO RESPIRAR
Texto de Fábio Zuker
Sem título, ilustração de Rogerinho Rodrigues
Em um país onde a estrutura do pensamento antissemita permanece viva através do racismo, o sufocamento coletivo causado pela Covid-19 se torna uma deliberada política de asfixia que atinge sobretudo corpos negros, indígenas e pobres.
I. Gás
Fechava o registro do gás. Abria a janela da área de serviço. Fechava a porta da área de serviço. Abria a janela da cozinha. Fechava a porta da cozinha. Abria a janela da sala. Fechava a porta da sala e então começavam as dúvidas: fechar a porta do banheiro, a do quarto ao lado e a minha, de modo a me isolar no quarto em que estava, mantendo apenas a janela aberta? Ou deixar a porta do quarto aberta, junto com as janelas do banheiro e do outro quarto, assim criando uma corrente de vento?
Sem muita certeza, em alguns dias optei pelo primeiro arranjo. Em outros, pelo segundo. De todos os modos, o que era certo é que dormia do lado da cama mais próximo à janela, e com ela bem aberta, fizesse frio ou calor. Era só assim que conseguia adormecer, apesar do barulho do vento que ecoava pelo estreito corredor de prédios e do receio de não acordar devido a algum vazamento de gás.
Demorei a perceber esse ritual-mania, para, por fim, conseguir dormir. Não compreendi de imediato que a intensa cobertura jornalística que estava fazendo da pandemia, sozinho, isolado em um apartamento emprestado, de algum modo me estava afetando. E foi também só depois de algum tempo que entendi estar projetando o medo de morrer de Covid-19 a um medo, até então não exatamente consciente, de morrer asfixiado por gás.
Talvez isso tenha a ver com o meu histórico de falta de ar. A bronquite asmática, para ser mais preciso. Uma das primeiras memórias que tenho de criança é a de comentar, ao lado da cama de meu pai e minha mãe, que meu peito estava pesado, chiando. Já ali me faltava ar. Daquele momento em diante, a sensação é de que o ar que entra pelos pulmões ao inspirar é insuficiente.
Os tratamentos pelos quais passei, quando pequeno, foram muitos. Sempre que vejo uma bananeira, me lembro com carinho das garrafadas-simpatias feitas a partir da fervura do coração da bananeira, sua flor. O mais marcante dos tratamentos, porém, foi uma massagem que minha mãe descobriu. “Ele abre os pulmões”, lembro-me dela dizendo, acerca da capacidade do massagista. Nada.
Ainda criança, me faltavam palavras para explicar o que de alguma forma tinha entendido. Que seria inútil buscar a cura e que mais valeria aprender a viver com um leve, mas constante desconforto. Certo sufocamento. Um ar que entra pelas narinas, vai até os pulmões, mas que não preenche. Um ar escasso, rarefeito. Um ar que falta.
II. Memória
O medo tem a característica de revelar algo sobre nossa identidade, sobre nossa forma de estar no mundo e sobre o que fazemos, distinta de outros sentimentos. Não há nada mais íntimo que o nosso medo. Poderia até mesmo torcer o adágio popular: diga-me o que te amedronta, e eu te direi quem és. Dediquei parte relevante de meu livro Em rota de fuga: ensaios sobre escrita, medo e violência, publicado pela Hedra em 2020, a uma investigação sobre a “pedagogia do medo” e seus efeitos políticos.
Outra característica do medo é que ele parece percorrer gerações. Desde pequeno, minha mãe demonstra um excesso de zelo e cuidados com minha saúde. Há alguns anos, no carro e não longe de casa, contestei a uma dessas intermináveis sessões de perguntas em tom de inquérito sobre minha saúde. Apesar da frequência dessas situações desgastantes, dessa vez recebi uma resposta que levou a conversa para outro campo. Algo como: “você já parou para pensar de onde vem esse medo que têm os judeus em relação às doenças?”.
Nunca tinha refletido especificamente sobre isso. Ao menos não criticamente, como um problema político. Nunca havia pensado sobre as origens desse sobrecuidado, mas minha mãe tinha ela mesma uma resposta: “só os judeus que se preocuparam muito com sua saúde que sobreviveram aos campos de concentração”, disse ela, menos justificando um traço de sua personalidade e mais elaborando um pensamento.
É uma afirmação que suscita incômodos. Há nela algo como uma “meritocracia” da sobrevivência nos campos de extermínio que tornaria invisível o caráter arbitrário das decisões entre quem morre e quem sobrevive. A câmara de gás era apenas um dos modos de matar os judeus, mas a desumanização começava bem antes: no gueto, com a retirada de direitos, nos vagões em que judeus eram transportados como gado. Rumo aos campos da morte, muitos morriam antes de ali chegarem, de frio, de fome ou… sufocados.
Ainda assim, importa que, nessa formulação de minha mãe, a memória da guerra, dos campos de extermínio, do antissemitismo e dos pogroms (os massacres a vilarejos judaicos no leste europeu e na Rússia) é operativa na identidade judaica contemporânea. Os judeus de hoje somos descendentes diretos daqueles que, com cuidados excessivos, e uma boa dose de acaso, conseguiram sobreviver a condições extremas impostas em guetos, campos de concentração e esconderijos. Herdeiros de uma memória-neurose sorrateira, não de todo dita, já que poucos parecem se orgulhar dela.
Há uma dinâmica curiosa entre esquecer e lembrar. Lembrar denota uma ação voluntária, ativa, enquanto o esquecer, ou seria melhor colocar como particípio, o esquecido, reflete algo que aconteceu com a passagem do tempo, não necessariamente objetivado, mas talvez desejado de modo inconsciente, como forma de digerir um evento pouco agradável ou traumático. Assim, tão forte quanto a memória da violência – memória corporal, do corpo como fonte mnemônica do trauma – são os resquícios do que foi apagado.
Em Zakhor: história judaica e memória judaica, Yosef Hayim Yerushalmi, um dos mais importantes nomes da historiografia judaica da segunda metade do século XX, compreende a memória como aquilo mesmo que dá unidade ao judaísmo. Lembrar-se de acontecimentos que não aconteceram com você/comigo, como se tivessem acontecido conosco, é o que mantém a existência do judaísmo, em meio a tantas transformações e interpretações da religião. O que forma uma pessoa como judia é o compartilhamento de uma trama de narrativas passadas que se herdam e que são reencenadas em rituais litúrgicos com calendário definido ou em hábitos diários. Percebo que meu judaísmo é um judaísmo marcado pela memória que não é minha, do medo de morrer asfixiado por gás.
Toda lembrança, porém, só é lembrança, pois há esquecimento. Uma amiga carioca, também ela judia, desenvolveu um caso severo de diabetes ainda jovem. Quando perguntei sobre a origem, ela comentou que os médicos suspeitavam de que fosse algo genético e hereditário, embora não pudessem comprovar, já que muitos de seus antepassados foram mortos nos campos de extermínio nazistas.
Lembre-se (zakhor, em hebraico). Lembre-se ainda quando se esquece.
III. Eugenia
Tornou-se impossível pensar as nossas vidas, aquilo que hoje somos, e o que seremos, sem pensar no novo coronavírus, o Sars-Cov-2. Humanos e o novo coronavírus traçam hoje uma história de coevolução e os modos distintos pelos quais se dá essa relação definem todas as nossas possibilidades de ser. Pense no quão diferente é a vida de um vietnamita ou neozelandês, em meio à pandemia, da vida de um brasileiro.
Escolhi uma fala específica de Jair Bolsonaro para me aproximar do mecanismo de banalização da catástrofe por aqui. Poderia ter escolhido outra, pois pouco parece importar o ângulo a partir do qual abordar os acontecimentos. A vulgarização da morte ocorre também pela frequência com que o presidente da República desdenha a vida.
O dia é 9 de maio de 2020. O vídeo mostra Bolsonaro dirigindo um jet ski no Lago Paranoá, em Brasília. Ele se aproxima, sorridente, de uma lancha e decide bater papo. Tudo parece um pouco uma encenação malfeita, já arranjada e com péssimos atores. Papo vem, papo vai, ele resume a posição que manteria ao longo de toda a pandemia: “É uma neurose. 70% vão pegar o vírus. É uma loucura”.
Há um objetivo claro nessa fala: normalizar o vírus e aceitar que algumas pessoas morreriam, até atingirmos a almejada “imunidade de rebanho”. Esse seria o ponto em que, supostamente, pessoas suficientes se contaminariam para que o vírus deixasse de circular. Ou seja, a estratégia de Bolsonaro consistia em deixar a pandemia correr solta, até o vírus contaminar todos os suscetíveis, o que, por ser um novo vírus, equivale à totalidade da população.
Pouco após esse episódio, Arnaldo Lichtenstein, diretor do Hospital das Clínicas, faz um comentário sobre ele, no Jornal da Cultura. “Não é um negacionismo da ciência. Isso é uma linha de raciocínio muito diferente e cruel. Sabe-se que quando 70% das pessoas pegarem a doença o vírus arrefece, não é preciso parar a economia, os idosos em sua maioria vão morrer, os doentes também, e vão ficar os jovens e atletas. Isso se chama eugenia, lembre-se de que o sistema político mundial usava isso”, afirma o médico, com fala pausada, como quem busca medir bem cada palavra.
Que elementos concretos existem para podermos definir a atitude de Bolsonaro e de seu governo diante da pandemia de Covid-19 como eugenia? Para tanto, cabe retomar, ainda que brevemente, em que consiste a teoria da eugenia.
Eugenia é o nome dado a uma doutrina científica cunhada pelo naturalista inglês Francis Galton, em 1883, e que influenciou propostas políticas tanto nos Estados Unidos como no Brasil (com o anseio por embranquecer sua população) e na Alemanha Nazista. Originalmente, a doutrina preconizava que problemas sociais, como alcoolismo, criminalidade, distúrbios psicológicos e mesmo a pobreza teriam origem hereditária. Ou seja, que não seriam problemas sociopolíticos. Os defensores da doutrina, entretanto, iam além, ao propor uma política de “higienização social”, que passava, entre outras medidas, por esterilizar voluntária ou compulsoriamente pessoas, a fim de formar famílias “melhores” e, consequentemente, melhorar a sociedade.
Como habilmente demonstra o documentário de Peter Cohen, Arquitetura da Destruição, a eugenia tinha uma função no programa estético de “embelezamento do mundo” que o nazismo projetava. Ali, a eugenia foi levada às suas consequências lógicas: a eliminação dos “doentes”. Foi amparado nessa teoria que se realizou o programa Eutanásia, que esterilizou 400 mil e assassinou 250 mil alemães “arianos”, qualificados como “hereditariamente doentes”.
Judeus, entendidos como raça inferior, ou mesmo como degenerados, eram mortos a partir de uma lógica teológica da higienização, que o historiador Saul Friedländer identifica como “antissemitismo redentor”. Trata-se de uma perspectiva fanática, apocalíptica, de que o extermínio dos judeus culminaria na libertação final da raça ariana. Para os nazistas, o mundo seria mais bonito, limpo e melhor sem os judeus. Friedländer entende que essa forma de antissemitismo promovida pelo núcleo duro do partido nazista era algo distinta do antissemitismo amplamente difundido na sociedade alemã. Esse último, por mais racista e violento que fosse, não possuía essa aura redentora.
Voltemos a Bolsonaro. Sua relação com o pensamento eugenista antecede a pandemia de Covid-19. Em 2013, o próprio Jair Bolsonaro, então Deputado Federal, apresentou um projeto de lei à Câmara sobre a punição de estupradores, cujo conteúdo (disponível no site da Câmara dos Deputados e que reproduzo abaixo) herda a lógica da higienização social que define a eugenia:
“Para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinquir e, nos casos dos crimes previstos nos artigos 213 e 217-A, somente poderá ser concedido se o condenado já tiver concluído, com resultado satisfatório, tratamento químico voluntário para inibição do desejo sexual”.
Como presidente, Bolsonaro amplia essa proposição. Como movimento, o bolsonarismo só existe pela força, pela tentativa de impor a sua realidade sobre aquela já existente. A destruição da ordem democrática e de qualquer laço comunitário se tornou projeto de governo: destruir a democracia e as bases do Estado brasileiro tal como o entendemos. Aos olhos de Bolsonaro, tudo o que veio depois da Constituição Federal de 1988 é de esquerda – como bem argumenta o cientista político Marcos Nobre em seu livro Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia, publicado pela Todavia em 2020.
Na lógica desse neoliberalismo autoritário, importa tanto que o trabalhador possa vender sua força de trabalho a qualquer custo como que o Estado mantenha uma polícia forte com potencial repressor – ou que, na ausência desta, uma milícia o faça. Nesse arranjo, não pode existir nenhum resquício de forças coletivas. Imperam o individualismo e a maximização de lucros. Talvez aí resida o grande fator diferencial em relação ao nazifascismo, que comungava uma ideia de coletividade expressa no povo.
O que temos é uma forma de pensamento associal, que vai nas antípodas do esforço coletivo necessário para conter um vírus com transmissão comunitária e que implica cuidados de si com o cuidado de outrem. O “cada um cuide da sua vida” deixa de fazer sentido com o coronavírus.
Em sua feição da pandemia, Bolsonaro tornou o vírus seu maior aliado na destruição das bases, dos direitos e das instituições brasileiras. Desconstruir, antes de construir, é a teoria nativa, o modo de ver e conceber o fazer política do próprio Bolsonaro, tal como ele sucintamente elaborou em um jantar nos Estados Unidos com expoentes da extrema-direita: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa”.
Deisy Ventura afirma, em documento no qual abundam dados concretos para sua sustentação, que o governo Bolsonaro pôs em marcha uma “estratégia de propagação do vírus conduzida de forma sistemática pelo governo federal”. Deixar o vírus circular dessa forma equivale a concordar que morram os mais fracos. Utilizando-se majoritariamente como indicador o nível de ocupação das UTIs para medir o grau de necessidade de restrições ao movimento nas cidades, optou-se por uma lógica que não preveniu a contaminação, mas fez com que os mais fracos fossem obrigados a buscar tratamento e apenas os mais fortes dentre estes sobrevivessem. O incentivo ao uso da cloroquina e da hidroxicloroquina também foi nessa direção. O medicamento pode causar arritmias e levar a óbito pacientes que possuam algum problema cardíaco preexistente.
É inútil dizer que entre as pessoas mais pobres, e com menos acesso a atendimento contínuo de saúde, a probabilidade de se ter um problema cardíaco não diagnosticado é muito maior que entre pessoas ricas. E no Brasil, com alimentação deficitária e pouco acesso a água para higienização básica e ao saneamento básico ou a um sistema hospitalar de qualidade, foram as pessoas de baixa renda as principais vítimas do vírus.
O excesso de mortalidade também possui características étnicas. Não é à toa que a mortalidade entre indígenas amazônicos chegou a ser 250% maior que a média nacional. Também entre pessoas negras é maior. Ela chega a representar 250 óbitos a cada 100 mil habitantes entre homens negros, contra 157 mortes a cada 100 mil, de homens brancos.
O tema do “novo homem”, belo e forte, forjado na destruição do mundo antigo deteriorado, é uma das máximas nazifascistas. Aqui, ele é puramente fruto de uma competição individual pela sobrevivência – sem nenhum senso de coletividade. Eugenia, punição da pobreza e racismo andam de mãos dadas. O vírus e a feição da pandemia no Brasil, que foi caracterizada pelo epidemiologista norte-americano Eric Feigl-Ding como pandemicídio, apenas tornam esses laços mais explícitos.
IV. Cruzar o Atlântico
Asfixiar o outro é uma das formas preferidas de tirar a vida de alguém. Foi assim com os judeus, naquela Alemanha dos anos 1930-40, cuja imagem-síntese eram as câmaras de gás.
Para nós, judeus, cruzar o Atlântico, ainda que forçados, foi sinônimo de salvação. Ao longo dos séculos, gerações de judeus foram obrigadas a deixar Portugal, Espanha, o Leste Europeu, a Alemanha ou, no caso dos meus bisavós maternos, povoados camponeses na longínqua Ucrânia. No caso do meu pai, sua vinda ao Brasil se deu em plena ditadura de Nicolae Ceausescu, na Romênia. Meus avós sobreviveram ao nazismo, numa Romênia colaboracionista, se escondendo. Ponto. Por mais que eu pergunte, não existem outras explicações.
Embora, para os judeus, cruzar o Atlântico sempre tenha sido sinônimo de escapar das perseguições do Velho Continente, há ainda hoje antissemitismo no país, quando se acredita que todos os judeus são ricos e influentes. Ou mesmo que votaram homogeneamente em Bolsonaro e o alçaram à presidência. Entretanto, me parece que a expressão maior de antissemitismo no Brasil é o modo como Bolsonaro atrelou sua imagem a um pequeno grupo de judeus bolsonaristas. Objetivava, assim, se mostrar aceito por um grupo supostamente influente, que teria atuação em diversas áreas de poder. Subjaz aí a velha tese do lobby judaico presente no Protocolo dos Sábios de Sião, relida com sucesso pelo nazismo nos anos 1930. Bolsonaro demonstra que a estrutura do pensamento antissemita permanece assustadoramente viva, sujeita a novas releituras que a tornem operativa.
Ainda assim, a polícia brasileira não sai atirando em judeus pelas costas e não estrangula judeus até a asfixia em supermercados. Não ser um corpo sujeito a esse tipo de violência é o maior privilégio que possa existir para uma pessoa no Brasil. (Em que pese esse dado de realidade, do qual não cabe em hipótese alguma discordar, é um pouco difícil para judeus – minoria quase exterminada num plano massivo de genocídio há 75 anos justamente por não ser identificada como uma “raça pura” –, se entenderem como brancos.)
Já para a população afro-brasileira, pode-se dizer que a experiência foi inversa. Cruzar o Atlântico, forçadamente, na condição de pessoas escravizadas, não significou escapar de um regime de perseguição e, sim, tornar-se alvo de um dos mais desumanizadores sistemas econômicos, políticos e culturais jamais criados na história da humanidade. Muitas das pessoas escravizadas morreram de asfixia nos próprios porões dos navios. Outras, já na nova colônia, eram submetidas a trabalhos extenuantes, em ambientes fechados e sem circulação de ar.
Recentemente, Beto Freitas, espancado e sufocado até a morte num Carrefour em Porto Alegre, e George Floyd, estrangulado em Minneapolis (EUA), tornaram o “I can’t breath” (Eu não consigo respirar) o pleito político mais importante em um mundo já tomado pelo sufocamento coletivo de uma nova doença que afeta, sobretudo, os pulmões. Pessoas negras saindo pelas ruas dizendo “Eu não consigo respirar” explicitaram como determinados corpos são alvos de formas ainda mais diretas e deliberadas de truculência e violência, antes e durante a pandemia.
Os indígenas, por sua vez, não cruzaram o Atlântico. Já estavam aqui – mas também sobre eles parece que a asfixia operou como forma privilegiada de extermínio. Há relatos dos mais cruéis. Como aqueles em que colonizadores, a partir de 1950, jogavam, do alto de aviões, brinquedos e roupas contaminados com gripe, varíola e sarampo. Essa foi a técnica que culminou na morte de mais de 5 mil indígenas cinta-larga, nos estados de Rondônia e Mato Grosso, conforme consta no relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Patógenos, como vírus e bactérias, sempre foram aliados na tentativa de criar um vazio demográfico que permitiria expandir ainda mais o domínio colonial sobre territórios indígenas. “As doenças respiratórias, grandes vilãs da colonização”, me disse em uma entrevista, certa vez, o médico sanitarista Douglas Rodrigues, especializado em combater doenças entre povos indígenas.
V. Arqueologia do sufocar
É possível pensar em uma arqueologia política do fazer deixar de respirar nas Américas. Existe um acontecimento que Claude Lévi-Strauss retoma em Tristes Trópicos: o afogamento mútuo entre indígenas e europeus, nas Antilhas, no início da colonização. Indígenas afogavam os europeus, esperando seus corpos se decomporem, para entender se eram humanos ou deuses. Já os europeus afogavam os indígenas para tentar entender se estes tinham alma. Para Lévi-Strauss, de acordo com a leitura de Eduardo Viveiros de Castro, o que cada parte trazia como pressuposto é que o próprio grupo encarnava a humanidade.
Proponho uma torção nessa história. Dois dos antropólogos que mais analisaram a origem dos mitos talvez estejam aqui falando de outro mito. A anedota contada por Lévi-Strauss seria o mito de origem da própria violência que constitui a história do subcontinente. Os mitos, como sabemos, nada têm de falsos. Sua principal característica talvez seja a capacidade de guiar modos de ser e agir no mundo. Ou melhor, instauram mundos no mundo. Eles são, em uma palavra, performativos. E aqui, no caso da invasão europeia nas Américas, inexistem simetrias: o mundo que se forja na ocupação deste território se faz apenas na medida em que se sufoca outro. A distinção entre sufocamento metafórico (estrangular determinada comunidade até que deixe de existir) e sufocamento como ação violenta ativa cai por terra. Sufoca-se na medida em que se impede que o outro, o não europeu, crie as próprias formas de vida.
Outro aspecto dessa situação é a construção política da vulnerabilidade. Angela Kaxuyana, importante liderança indígena do norte do Pará, questiona a tese de que os indígenas, por sua memória genética, teriam imunidade mais baixa aos vírus. Para ela, os indígenas não são vulneráveis, mas sim “colocados em situações de vulnerabilidade”. Os brancos levam com facilidade a doença para dentro dos territórios indígenas, mas não os tratamentos.
“A gente é colocado em situação de vulnerabilidade, porque não é só a doença em si. Estamos falando de invasão dos territórios, contaminação dos rios, pressão psicológica por invasão de garimpeiros e madeireiros e insegurança territorial, no caso dos territórios não demarcados. Imagina que, a qualquer momento, a sua casa na cidade pode ser invadida… Isso vai te adoecer”.
O alto índice de mortalidade entre indígenas não decorreria, assim, da ausência de uma herança genética capaz de lidar com os vírus dos brancos. A vulnerabilidade é criada por condições históricas, sociais e políticas – e não inatas. Na Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana, de onde Angela vem, as 574 pessoas que vivem ao redor de quatro rios distintos têm acesso a apenas uma casa que funciona como posto de saúde.
É por situações como essa que pesquisadores vêm atentando para outro termo para tratar do que vem acontecendo em todo o mundo com a dispersão do vírus Sars-Cov-2: uma sindemia. Sindemia é um neologismo entre sinergia e pandemia e foi cunhado para dar conta do modo como a propagação e a letalidade de um vírus dependem de condições sociais e sanitárias já existentes. Em bairros ou regiões mais pobres, com menor acesso a saneamento básico e sistemas hospitalares de qualidade, existem mais doenças não tratadas e maior facilidade de dispersão e letalidade de vírus.
As estruturas racistas do Estado passam pela própria malha de infraestrutura pública. O que ocorreu no início de 2021 em Manaus, e que se repete em outras cidades pelo país enquanto edito este ensaio, evidencia que se mata não apenas quando se sufoca ativamente, mas também quando se impede que pacientes tenham acesso a um simples tubo com oxigênio. Racismo estrutural, sem dúvida, mas também racismo infraestrutural, das próprias estruturas do Estado, que submete enormes porções de terra ou populações a sistemas hospitalares quase inexistentes.
Em meio ao processo de eugenia em curso, a asfixia faz com que matar e deixar morrer se tornem equivalentes.
* Agradeço as leituras e os comentários de Amanda Massudci, Daniel Jablonski, Evandro Cruz Silva, Jan Bittencourt, Jennifer Queen, Luiza Sigulem, Mari Casalecchi e Rodrigo Bressane. Erros e equívocos são, é claro, todos meus.
Fábio Zuker
Jornalista e antropólogo, é autor dos livros Em rota de Fuga: ensaios sobre escrita, medo e violência (Hedra, 2020) e Vida e morte de uma baleia-minke no interior do Pará e outras histórias da Amazônia (Publication Studio SP, 2019).
Rogerinho Rodrigues
Lusobrasileiro, ilustrador formado pela UFMG, residente na cidade de americana, SP. Tem como bússola a curiosidade pelas possibilidades do desenho na construção de narrativas.
Como citar
ZUKER, Fábio. Histórias de não respirar. Piseagrama, Belo Horizonte, nº 15 [conteúdo exclusivo online], dezembro de 2021.
Este número da revista teve como editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado.