IMAGENS PARA POUSAR NO FUTURO
Texto de Bernardo Gutiérrez
Jararaca, o dirigente do Comando Negro do Rio de Janeiro, olha para a câmera de televisão com o rosto tenso. Depois de ter lido os cinco pontos que o Comando Negro exige do Governo Federal, milhões de telespectadores esperam o final do discurso do negro que lidera uma revolução nunca vista na Cidade Maravilhosa. Pela primeira vez existe um comando que luta pela melhoria da vida dos favelados e que tem um plano político para o Brasil todo.
Jararaca veste uma camiseta com um punho negro, uma metralhadora e uma estrela amarela ilustrados. Uma gota de suor escorrega por debaixo de um colar de bugigangas vermelhas e negras. Jararaca segura nas mãos um papel corroído, com letras escritas a mão. Encara de frente o delegado da polícia. Conclui solene e desafiador:
“Estamos voltando uma página na história do Brasil. Este país nunca mais será igual. Bom, dia liberdade!”
A cena com Jararaca nunca aconteceu. O Comando Negro é uma invenção do escritor angolano José Eduardo Agualusa no romance O ano em que Zumbi tomou o Rio de Janeiro. Porém, a imagem do personagem que, embrenhado da cores do Flamengo Futebol Clube, enuncia demandas políticas para um Governo Federal que dá as costas aos mais pobres, adquire uma dimensão real. O que aconteceria se alguém fizesse uma versão em quadrinhos do romance de Agualusa, com imagens emocionantes do Comando Negro? E se os movimentos sociais colassem lambes nas paredes do Rio? Surgiria algum dia o tal Comando Negro? E se alguém, depois de uma onda de protestos, ousasse usar os cinco pontos do manifesto do Comando Negro para negociar com os governantes?
A ficção, segundo o filósofo francês Jacques Rancière, não é o contrário da realidade. A ficção é uma forma de esculpir a realidade, de adicionar nomes e personagens a ela, imagens e histórias que a multiplicam e a privam de seu caráter unívoco. As imagens da ficção “desdobram a realidade, redefinindo-a esteticamente”. Rancière acredita que tanto a ficção artística – no caso, imagens mentais nascidas dentro de um romance – como a ação política solapam o real, visibilizando novos sujeitos antes imperceptíveis. A ficção produz dissenso, muda os modos de apresentação do sensível. Visibilizando novas conexões, a ficção constrói novas relações entre aparência e realidade e muda a forma como o mundo é povoado por acontecimentos.
Indígenas na lua
Alguns indígenas colombianos, da etnia Embera, acendem velas na escuridão. Uma projeção visual na parede, que recria a superfície da lua, recorta as silhuetas dos corpos dos jaibanás (os xamãs) enquanto realizam um ritual ancestral para a cura e a harmonização dos seres. Todos compartilham cuias com bebida e tocam quenas (flautas andinas). A cena foi uma intervenção que o coletivo colombiano Oficina de Asuntos Extraterrestres fez no terraço do Centro de Arte Contemporâneo de Quito (CAC), no dia 7 de março de 2014. Naquele dia foi inaugurada a mostra Arte en órbita, que questionava a olhar ocidental do espaço e propunha um conjunto de imagens para descolonizar o futuro. A mostra, segundo o curador Pedro Soler, “era um chamado para a apropriação do espaço com uma atitude desafiadora, irreverente, iconoclasta, pós-colonial.” A imagem dos indígenas sobre a superfície da lua, fincando a bandeira da comunidade andina, desconstrói aquela outra imagem daquele outro astronauta (Neil Amstrong) que um dia pôs outra bandeira (a estadunidense) na lua.
O espaço sempre foi um lugar de produção de imaginários e de organização social. Quito, como outros lugares da América Latina, era um importante centro de observação astronômica na era pré-hispânica. No entanto, o imaginário do espaço exterior foi colonizado pelas superpotências. As explorações espaciais ancestrais e a produção cultural do espaço de fora do império, nas palavras de Pedro Soler, “foram invisibilizadas”. Gerar imaginários espaciais provoca mudanças sociais. Por isso, Arte en órbita lançou um pacote de imagens de outros espaços possíveis, de outros futuros viáveis. Imagens de cosmonautas do projeto artístico Agência Espacial Palestina passeando entre as oliveiras da Cisjordânia e de Gaza. Imagens dos membros do coletivo Kongo Astronauts caminhando pelas ruas de Kinshasa, construindo uma cotidianidade alternativa. As fotografias da série Carne Negra, da artista afrofuturista brasileira Leila Lopes Negalaize, estabelecem semelhança entre formas e linhas curvas e partes sexuais do corpo feminino, tecendo uma relação erótica entre o corpo da mulher negra e o mundo cósmico.
Os figurinos que a artista russa Alexandra Exter fez para o filme Aelita, Rainha de Marte em 1924 atravessam as décadas com irreverência, associando a feminidade ao espaço. Nyota Upenda Uhura, a tenente da série Star Trek, primeira mulher negra espacial, fez com que uma criança do Alabama, Mae Jemison, sonhasse com o espaço.. No ano 1992, 26 anos depois do lançamento de Star Trek, Mae Jemison seria a primeira afrodescendente astronauta. O afrofuturismo eclético iniciado pelo músico Sun Ra nos anos 1970, que seguia o caminho desbravado pela tenente Uhura, invocava um futuro no qual os negros teriam o controle do seu próprio destino. O afrofuturismo, presente em filmes e em bandas míticas como a Parliament, utilizava a imaginação para alavancar a autorrepresentação e a mudança social da raça negra.
A ilustração Screen from All New Gen, que o coletivo ciberfeminista VNS Matrix lançou em 1992, continua alterando nosso presente e inspirando a luta de mulheres do mundo todo. Todas essas imagens do futuro interferem nos imaginários criados pelo poder. São imagens que ressignificam, combinam, desconstroem e reinventam os supostos valores universais do progresso branco nascido no Iluminismo europeu. São munição para lutar no presente.
Qual o verdadeiro poder da imagem? Que mecanismos fazem das imagens armas tão potentes?
Uma síntese de um mundo
No início do romance A Cartuxa de Parma, Stendhal descreve como uma charge desenhada num guardanapo ativa uma revolta popular. Quando, em maio de 1796, o exército francês chega em Parma, um jovem pintor chamado Gros escuta em um café terríveis histórias sobre o arquiduque de Parma, que está especulando com o trigo. Gros, escreveu Stendhal, “pegou a lista dos sorvetes impressa numa folha de papel pardo ordinário. No verso da folha desenhou o gordo arquiduque; um soldado francês lhe dava um golpe de baioneta na barriga, e em vez de sangue dali saía uma quantidade incrível de trigo. […] O desenho deixado por Gros em cima da mesa do Café Servi pareceu um milagre caído do céu; foi gravado durante a noite e no dia seguinte o venderam a vinte mil exemplares”. A imagem, sem nenhuma palavra, já estava na mente dos habitantes de Parma durante os anos do despótico governo do arquiduque. Aquele guardanapo fez realidade uma imagem compartilhada secretamente por toda a população.
A charge de Gros é descrita na introdução do livro The Design of Dissent pelo dramaturgo Tony Kushner como uma verdade flagrante que ainda precisa ser organizada e formulada. Uma verdade que não pode ser expressa, que só pode ser sussurrada: “Uma verdade aprisionada por trás da superfície do discurso público é finalmente divulgada, proclamada aos quatro ventos, um grito de rebelião que diz tudo, um grito que talvez seja ainda mais poderoso porque é expresso por um desenho, inteiramente visual, sem necessidade de palavras”. O desenho do Gros tem uma característica que está presente nos melhores desenhos de protesto da história: a síntese.
A síntese era a chave do material agit prop (agitação e propaganda) dos artistas envolvidos na Revolução Russa e dos cartazes políticos da Revolução Cubana. Os pôsteres políticos utilizam uma grande variedade de apelos emocionais. A imagem normalmente é auxiliada por algumas palavras. A síntese pode revelar uma situação injusta. Pode fazer aflorar um mal-estar coletivo ou um desejo de mudança. A síntese é também uma característica de algumas fotografias icônicas da história. Se na língua inglesa os termos picture (fotografia) e image (imagem) estão claramente diferenciados, em português imagem pode englobar todas as variantes pictóricas e inclui tanto as imagens físicas (fotografias, quadros) como as imagens mentais. A virgem de Guadalupe com o capuz negro usado pelo movimento zapatista mexicano (o pôster do primeiro aniversário do alçamento zapatista) ou a fotografia de uma criança palestina jogando uma pedra contra um helicóptero israelense são imagens que sintetizam uma época. Não é uma síntese que simplifica: é uma condensação, uma desfragmentação de mal estares e desejos dispersos.
Contudo, as imagens dos cosmonautas palestinos tem algo mais disruptivo do que as imagens de crianças lutando contra helicópteros. O universo simbólico desenvolvido pela Agência Palestina do Espaço evoca outro futuro, outra realidade possível. As imagens enunciam um mundo. Operam sobre os desejos de um povo. Se o espaço foi construído – colonizado – como sinônimo de futuro pelas potências ocidentais, alterar suas imagens e ícones é uma forma de interferir no presente. Construir imagens espaciais na Palestina, dentro dos limites asfixiantes do conflito com Israel, é uma forma de ativar ferramentas de resistência, mobilização social e transformação coletiva.
Atalhos para o futuro
O livro O Fim da história e o último homem, de Francis Fukuyama, anunciou em 1992 o fim de todas a utopias. Após a queda do muro de Berlim e dos regimes comunistas, Fukuyama previu um novo tempo, sem lutas ideológicas, governado pelo livre mercado e pela democracia liberal. O fim da história era o previsível fim de uma modernidade europeia esgotada e, em certo sentido, fracassada. O fim da história cancelou a principal utopia do século que mais fervorosamente acreditou no futuro: a utopia do comunismo. Sem o horizonte comunista, o neoliberalismo foi se instalando, sem fazer barulho, como a única atmosfera possível, fingindo ser o sistema econômico natural do planeta. O fim da história levantou um muro. Desde então, parece impossível imaginar algo do outro lado. Impossível invocar outra ordem, outra possibilidade político-social. Impossível entrever um futuro em positivo para a humanidade. Até a tecnologia, esperança utópica durante décadas, tornou-se uma divindade despótica que anula o futuro e só reproduz fragmentos idênticos dentro de loops, dentro das bolhas de afinidade que flutuam sobre um ciberespaço povoado de fake news.
Como sair do labirinto do fim da história? Existem ferramentas ou métodos para derrubar o muro que seca a imaginação da humanidade? Ernst Bloch, em seu célebre ensaio Princípio esperança, estudou como a esperança persiste até mesmo em situações terríveis graças às “imagens-desejo” ou “imagens-anseio”. São imagens que servem como protótipos para cruzar fronteiras. Imagens carregadas de emoções. Imagens que podemos usar para pousar em um futuro sequestrado pelo fim da história. Uma “imagem-desejo” cria uma ficção condensada, um tipo de atalho para pousar no futuro.
No videoclipe Llegamos al futuro, da banda de cubana Nacional Electrónica, dois cosmonautas tentam decolar de um terraço em Havana. Essa cena, com os telhados da cidade e o oceano ao fundo, questiona a ordem. Enuncia outras possibilidades de estar no mundo. Visibiliza inclusive um sujeito coletivo que está querendo transbordar a realidade política de Cuba. Eis o mistério das imagens sintético-fictícias que, mais do que atalhos para o futuro, são ferramentas para alterar o presente. São o chão comum de um presente-futuro cheio de desvios e descaminhos. Ao final das contas, o futuro não era outra coisa que nosso presente descarnado, esse presente com final aberto. Porque imaginar, como prega o movimento brasileiro Liberte o Futuro, é ato de resistência
A espanhola Andrea de la Serna fala do conceito de “povo por-vir” para visibilizar a potência do futuro no presente. O “povo por-vir” não é o povo do futuro, mas o povo em devir, o povo que está sendo, que está em processo de subjetivação e transformação, que está criando novas formas de viver e de se relacionar com os outros. Por isso, ela escreve no artigo Um comum porvir, não devemos depositar mais as esperanças da revolução em um horizonte futuro, mas gerar as condições para construirmos o horizonte que quisermos. A humanidade, para pular o muro do fim da história e enxergar algum vislumbre de esperança, deve reinstituir a confiança nas forças do presente.
Quando aparecer um desvio, por menor que ele pareça, é preciso potenciá-lo, alimentá-lo, fazê-lo respirar. Organizar encontros, cuidar de nós mesmos em comunidade, criar imagens-desejo por toda parte. Imagens para pousar no presente-futuro, imagens habitadas por realidades-subversivas-que-estão-sendo. Não é no futuro da revolução que temos que pensar, mas nas possibilidades revolucionárias que já existem em cada pessoa e na teia das ficções compartilhadas.
Bernardo Gutiérrez
Jornalista, escritor e pesquisador hispano-brasileiro. Sua pesquisa é sobre política, movimentos sociais, cultura livre e processos tecnopolíticos.
Como citar
GUTIERREZ, Bernardo. Imagens para pousar no futuro. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 14 [conteúdo exclusivo online], jul. 2020.