INDIGENAÇÕES
Texto de Wellington Cançado
Los Awajún y los Wampis desenhos de Gerardo Petsaín
A invenção andina do Estado plurinacional e intercultural, radicalizada com a decretação do território autonômico Wampis em 2015 na Amazônia peruana, atualizam o debate das sociedades contra o Estado e apontam para a viabilidade prática de uma vida terrena, autogovernada e visionária para índios e outros indígenas.
Em 2008, começaram a circular entre os Awajún, os Wampis e os Ashaninka, na Amazônia peruana, histórias de seres sobrenaturais, de pele clara, equipados com carapaças indestrutíveis, descidos do céu em cápsulas luminosas ameaçadoras. Conhecidos como “vultos”, “marcadores” e “gringos voadores”, esses seres atacavam os indígenas, roubavam suas crianças, introduziam substâncias estranhas em seus corpos e extraíam a gordura, os olhos e o coração para minar suas energias vitais e inibir suas capacidades reprodutivas.
Gringos voadores, segundo os relatos, eram quase sempre homens, mas, em alguns casos, mulheres; voavam graças às suas asas metálicas ou a pequenos motores acoplados à barriga. Surgiam à noite ou de madrugada, emitindo luzes multicoloridas e flashs poderosos capazes de cegar as suas vítimas indefesas. Muito comumente levavam consigo um pequeno freezer com diversos compartimentos onde, meticulosamente, armazenavam os órgãos retirados das pessoas.
Certa vez, fartos dos invasores, os Ashaninka se organizaram para emboscá-los. Logrando capturar dois desses seres, cuidaram logo de queimá-los em uma grande fogueira. Em outra ocasião, um infeliz Ashaninka, que, tendo capturado um gringo voador em circunstância não esclarecida, resolveu acoplar o pequeno motor à sua própria barriga e, sem controle, depois de voar em altíssima velocidade por quilômetros, acabou por aterrissar muito longe de sua aldeia. Confundido com um gringo, foi morto de forma brutal pelos habitantes locais.
Nas comunidades Awajún e Wampis, bem mais ao norte da Selva Central, nas versões da época, os “marcadores” surgem com mais frequência como homens brancos que, acompanhados de uma jovem, sua “secretária”, e com o propósito de vacinar ou medicar as crianças, acabam por marcar as vítimas com uma tatuagem permanente do número 666 (“a marca da besta no Novo Testamento”) ou com um código de barras típico de produtos comerciais. O contato com os “marcadores” levou os Awajún e os Wampis a recusarem as campanhas oficiais de vacinação e produtos com códigos de barra, especialmente o leite, os cereais e os complementos para recém-nascidos distribuídos pelo governo peruano e pelas ONGs atuantes na região.
Essas e outras histórias estão documentadas no ensaio “Vultos, marcadores e gringos voadores: percepções nativas da violência capitalista na Amazônia Peruana”, de Fernando Santos-Granero e Frederica Barclay. Mas, como os próprios autores advertem, essa não é a primeira vez que os povos da Amazônia associam a aparição de seres sobrenaturais ao avanço dos interesses mercantis e extrativistas sobre seus territórios e a ameaças advindas das forças do Estado. Referências aos pishtacos – estrangeiros que matam as pessoas e retiram sua pele e gordura – remontam ao século 16 e vêm intrigando pesquisadores ao longo dos tempos. E, apesar das muitas metamorfoses e variações, a emergência desses seres sobrenaturais nas mitologias andinas invariavelmente coincide com um poder externo inexplicável e alienígena, que domina e extrai as forças vitais indígenas. Gringos voadores, marcadores e vultos, os pishtacos contemporâneos, são expressões de uma longa tradição de infortúnios com um outro radical, de encontros indesejados com os brancos e seus métodos predatórios e violentos.
Os Awajún e os Wampis estão entre os mais numerosos povos nativos da Amazônia peruana, são falantes da mesma família linguística (Jíbaro) e há muito habitam a floresta do sopé andino, acumulando resistências contracoloniais e histórias de autonomia política. Ao longo dos séculos, detiveram as invasões incas e resistiram ao avanço espanhol; repeliram as missões religiosas e muitas outras incursões indesejadas aos seus territórios. Guerreiros habilidosos, na década de 1970, ficaram conhecidos por terem criado o Conselho Aguaruna-Huambisa (nomes espanhóis atribuídos aos dois povos), que significou a superação de sua rivalidade histórica, para juntos confrontarem as forças externas. Nas últimas décadas, essa reorganização interétnica regional transbordou para a prática política possibilitando que os Awajún e os Wampis conseguissem estar à frente, como gestores, de prefeituras e órgãos distritais.
Atualmente, os Awajún e os Wampis formam parte da Associação Interétnica para o Desenvolvimento da Selva Peruana (AIDESEP), a maior confederação de nativos da Amazônia e uma instância importante de resistência contra as ameaças alienígenas perpetradas pelo Estado, pelas corporações, ou, de forma cada vez mais frequente, por ambos, como aliados.
Alienígenas, viríamos a saber recentemente, após décadas de (auto)colonização mental pelas distopias hollywoodianas, não estão restritos aos sistemas estelares distantes e não se apresentam somente na forma de seres bizarros ou humanoides dispostos a nos abduzir na primeira oportunidade.
Aliens, inclusive, assim como no clássico filme homônimo, antes de cogitarem viajar anos-luz para ameaçar os únicos humanos (re)conhecidos da galáxia, viviam tranquilos em seu cosmos próprio até serem abruptamente perturbados por exploradores destemidos e mercenários brutais em busca de recursos há muito exauridos em sua Terra natal.
Alienígenas, descobriríamos em uma aula pública na Cinelândia, são o oposto de indígenas, estes sim “gerados dentro da terra que lhes é própria, originários da terra em que vivem”.
Não parece ser um paradoxo que a simpática criatura reptiliana do referido filme, molestada pelos forasteiros enquanto hibernava confortavelmente em seu óvulo gosmento e translúcido, acabe por levar a pecha de alienígena?
Quanto aos indígenas, “pertencer à terra, em lugar de ser proprietário dela” é o que os define. Nada que ver com os desorientados descobridores rumo ao Oriente, que, acreditando terem chegado na à Índia, sujeitaram os milhões de inquilinos da Terra sem Mal à categoria de “índios” e a transformaram em um brasil perpétuo.
Então é isso: se o antônimo de indígena é alienígena, o contrário da terra própria só pode ser mesmo a pátria involuntária. E os seus nativos, os involuntários da pátria.
“Os involuntários da pátria” é o título da aula proferida por Eduardo Viveiros de Castro durante o ato carioca da mobilização nacional Abril Indígena, dedicada, esse ano, ao debate sobre “resistência, terra e autodeterminação”. E é também a origem de todas as aspas acima, além de ser o estopim para essa digressão entre ficção científica e cosmo-política, que, de repente, parecem saídas de um mesmo mito de origem. Os involuntários da pátria, que conclama o antropólogo (“desertai-vos!”), somos “nós, os ‘outros índios’”, aqueles que não são índios, mas que “se sentem indígenas”, indígenas no sentido de “gerados dentro da terra que lhes é própria, originários da terra em que vivem”.
E sendo os índios os primeiros indígenas do Brasil, são estes também os primeiros involuntários da pátria. Mas isso nunca foi nenhum empecilho à deserção dos muitos outros e diversos indígenas que “rexistem” no Brasil e ao Brasil, pois a “indigeneidade” é uma relação, uma formação discursiva e inclui não somente índios, mas todos aqueles que se identificam como indígenas: “o povo LGBT, o povo negro, o povo das mulheres”, quilombolas, ribeirinhos, etc. E até mesmo “nós brancos”, não representados como cidadãos, rebelados contra as forças unificadoras desse Estado e dessa nação, a que convencionamos dar o nome da primeira espécie que extinguimos.
Ser contra o Estado pode até ser uma opção para nós-brancos-indígenas e tem sido uma condição compulsória para os demais involuntários da pátria, mas a virtude de ser contra o Estado sempre foi mesmo dos índios que cá estavam, nessas terras baixas da América do Sul. Não somente porque instados a resistir contra a colônia alienígena que aportou – para ficar – por essas bandas há cinco séculos, mas, antes, por serem a não sujeição a leis exteriores ou à vontade de outrem aspectos constituintes de suas “sociedades primitivas”.
“Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro… Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social planetário”. Sem que lhe déssemos muita atenção, Oswald de Andrade havia se manifestado de forma mais poética e profética, e quando ainda era tempo.
Mas se “antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”, foi como “gentes sem fé, sem lei, sem rei” que os índios foram retratados por Pero de Magalhães Gândavo nos idos de 1576 e por tantos outros viajantes e cronistas: sem Estado, sem religião, sem economia. Relatos que não somente perduraram pelos séculos como acabaram por estigmatizar os ameríndios como sociedades “da falta”.
O etnocentrismo evolucionista que continua a exalar dessa narrativa demoraria um bocado para ser abalado, e a “revolução copernicana” do etnólogo francês Pierre Clastres na década de 1960 viria a ser um passo importante, quando, ao se debruçar sobre a dimensão política das sociedades indígenas, entre os Guayaki, os Guarani e Yanomami, Clastres se propõe a reposicionar a categoria de “primitivo” no debate contemporâneo, formulando a tese do “contra-Estado”.
O Estado, nos diz Clastres, “não é os ministérios, o Eliseu, a Casa Branca, o Kremlin…” O Palácio do Planalto, podemos logo acrescentar, nos incluindo na conversa. O Estado é o exercício do poder político como coerção, à força. Ou bem entendido, é o murro na mesa desferido pela ex-presidenta diante de ribeirinhos atônitos e prestes a terem suas vidas inundadas pela usina de Belo Monte.
Clastres, um anarquista libertário atuante em Maio de 1968 e opositor da guerra empreendida pela França contra a independência argelina, no seu já clássico e cada vez mais incensado ensaio A sociedade contra o Estado, de 1974, propõe que as sociedades indígenas se mantêm em guerra e em constante hostilidade para criar “a todo o tempo o múltiplo”, preservar sua autossuficiência – “quase se poderia dizer, na autogestão”. E que enquanto os seus chefes não detiverem nenhuma autoridade, capacidade de ordenar ou de se tornarem déspotas, simplesmente contando com o prestígio do uso da palavra sem força alguma de lei, não poderá haver unificação totalizante, não poderá prosperar um Estado.
A noção de “contra o Estado” funda-se, pois, tanto no esvaziamento de qualquer força coercitiva da chefia indígena, quanto na guerra como estratégia de recusa à concentração do poder, possibilitando que as comunidades permaneçam demográfica e territorialmente restritas, condição básica para sua indivisibilidade.
As sociedades contra o Estado, frequentadas por Clastres, não se constituíam, entretanto, pela falta de um Estado e de tantas outras coisas que os brancos bem-mandados consideravam imprescindíveis ao seu mundo, pois não se trata de “atraso” ou mesmo de incapacidade de governar-se, mas, antes, de mecanismos sociais complexos de recusa deliberada à hierarquia, à obediência e ao poder centralizado.
O critério da falta, determinante no contraste tipológico entre selvagens e civilizados, será ponto de grande consideração para Clastres também no que diz respeito à sobredeterminação das sociedades modernas no plano econômico. Ou, como diria o próprio, “dois axiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ocidental, desde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve sob a sombra protetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo categórico, pois é necessário trabalhar.”
Ao contrário de Marx e Engels, ideólogos do comunismo sem classes, para os quais o Estado é uma criação dos poderosos para gerir os seus negócios, Clastres acreditava não no poder econômico, mas sim no poder político – no Estado – como a grande força instauradora das classes, pela divisão crucial entre quem comanda e quem obedece, já que quem comanda exerce o poder de mandar nos outros e “pode dizer-lhes: Trabalhem para mim.”
Contrariando a caricatura – repetida à exaustão desde a chegada dos europeus por estas bandas – na qual os índios são preguiçosos e a ideia, em termos antropológicos, de que as sociedades indígenas estão baseadas em uma economia de subsistência, Clastres argumenta serem estas as primeiras sociedades da abundância. Sociedades que recusam o excesso inútil e o acúmulo para produzirem somente as “necessidades energéticas” diárias. “Nada poderia estimular a sociedade primitiva a desejar produzir mais, a alienar o seu tempo num trabalho sem finalidade, enquanto esse tempo é disponível para a ociosidade, o jogo, a guerra ou a festa”.
A atualidade do pensamento de Pierre Clastres, para além da urgência atual de todo o tipo de “contras”, está no desmantelamento daquela fixação tipicamente europeia, incapaz de imaginar alternativa que não o Estado como o destino inexorável de toda e qualquer sociedade. Está na inspiração à ação política como recusa ao poder e na possibilidade de conjuração coletiva das forças basilares dos nossos Estados, mas, também, na invenção premente de outra “economia política da vida”. E, ainda mais, uma atualidade que impregna a viabilidade, cada vez mais prática do que teórica, de que aquele Estado-nação alienígena importado em naves transatlânticas pode ser desafiado e transformado por uma (filosofia) política indígena.
Em 29 de novembro de 2015, reunidos na comunidade de Soledad, 300 representantes de 85 comunidades Wampis decretaram o autogoverno de seu território integral, Iña Wampisti Nunke, de 1,3 milhões de hectares de floresta e 10.613 indivíduos.
O território autodeclarado “integra diversos espaços onde os habitantes se relacionam entre si. Entsa, o espaço aquático, onde vivem os tsunki shuar. Nunka, o espaço da terra, onde estão os seres vivos com os quais nos relacionamos permanentemente, as pessoas humanas, os animais e seus donos, iwanch y tijae, as plantas da natureza e suas mães, especialmente Nunkui, que vive no interior da terra, os rios e as montanhas sagradas. Nayaim, o ar, o espaço do céu que não está separado da terra, onde vivem Etsa (sol), o guia, Yaa (estrelas) e Nantu (lua) assim como Ujumak e muitos outros seres e pelos quais chegam os mortos e ancestrais da nação. Todos estes espaços estão vivos e dependem uns dos outros”.
Enquanto no sistema de governo tradicional Wampis, a população é liderada por visionários de renomada fama guerreira, para efeitos da governança territorial, o governo autônomo decidiu estabelecer eleições democráticas com representantes provenientes de 27 comunidades, tendo sido eleitos Wrays Pérez Ramirez como o primeiro presidente, pamuk, e os 21 membros do parlamento, El Uun Iruntramu (instituído em fevereiro de 2016).
Nascido de um processo histórico na Comunidade Nativa de Bagazan del Morona em 1995, o antecedente imediato da declaração do governo autônomo foi a Cúpula Wampis para o Território Integral e Governança Autônoma, celebrada em meados do ano passado, ocasião na qual foi aprovado, por 120 representantes de comunidades Wampis, o Estatuto Autonômico do Governo Territorial da Nação Wampis.
Logo em seu Preâmbulo, o Estatuto estabelece que, dentre outras coisas, a livre determinação compreende o direito à autonomia e ao autogoverno de acordo com a sua cosmovisão, mesmo que homens e mulheres da nação Wampis continuem a ser cidadãos peruanos, gozando de igualdade, de todos os direitos e deveres dos demais.
A constatação da urgência de constituição de um governo autônomo Wampis remonta a séculos de violência estatal e diversos pactos e acordos recentes não cumpridos pelo Estado peruano, em conflitos fronteiriços com o Equador, na criação de áreas de preservação e na concessão de estradas, minas e outras atividades em seu território. Mas foram mesmo os confrontos entre os Awajún e os Wampis com o governo do presidente Alan Garcia, para quem a floresta peruana era um “vazio ocioso”, que vieram a desencadear a “Insurgência amazônica” e o episódio que ficaria conhecido como “o massacre de Bagua”.
No curto período entre maio e junho de 2008, foram encaminhados “excepcionalmente” pelo governo de Garcia onze Decretos Legislativos que objetivavam efetivar o Tratado de Livre Comércio (TLC) entre o Peru e os Estados Unidos, criando condições para espoliação dos territórios indígenas e expropriação dos recursos naturais da selva por grandes corporações nacionais e multinacionais.
Mas, já em agosto, as comunidades indígenas empreendem um conjunto de ações como parte da “Grande Mobilização Nacional dos Povos Indígenas”, e, durante a contraofensiva, o líder indígena e presidente da AIDESEP Alberto Pizango pondera ao jornal La Republica: “nós não somos contra o desenvolvimento como nos acusam. Queremos o desenvolvimento da selva, mas desde que seja da nossa própria perspectiva. De que nos serve ter água, luz, telefones se vemos nossas comunidades destruídas e inundadas por pragas sociais?”.
Sem diálogo com o governo, um grupo de cerca de 2.000 membros da etnia Machiguenga captura uma dezena de embarcações de transporte de combustível da empresa argentina Pluspetrol. No dia seguinte, cerca de 600 Awajún ingressam nas instalações da PetroPerú enquanto outro grupo toma a Central Hidroelétrica de Aramango. Pouco depois, comunidades do Baixo Urubamba ocupam plataformas, heliportos, oleodutos e acampamentos de petroleiras.
Em rechaço a “pouca vontade demonstrada” para discutir o pacote de Decretos e em resposta ao estado de emergência imposto pelo governo devido aos protestos, Pizango anuncia publicamente que, a partir de então, os indígenas haviam decidido colocar em vigência suas próprias leis e declara que os seus atos estavam amparados pelo “direito à insurgência”, previsto no artigo 46 da Constituição Peruana.
Um ano após os Decretos Legislativos e muitos enfrentamentos entre o Estado e os indígenas, no dia cinco de junho de 2009, aproximadamente cinco mil Wampis e Awajún bloqueiam a rodovia Fernando Belaúnde Terry, que conecta a selva setentrional ao Pacífico, próximo à cidade de Bagua, em um trecho conhecido como “A Curva do Diabo”.
Entre as cinco e seis da manhã, um grupo de 369 membros da Polícia Nacional do Peru, da Direção de Operações Especiais e efetivos do Exército, por ordem direta do presidente, avança sobre os manifestantes, atirando bombas de gás lacrimogêneo de helicópteros (algumas versões contam de disparos de metralhadora) enquanto, no solo, a polícia disparava de veículos blindados, com fuzis de assalto contra a multidão.
Durante o confronto, a população de Bagua, indignada, incendeia instituições estatais e imóveis do partido oficial. Em um posto da companhia estatal PetroPerú, a 80 quilômetros da curva diabólica, 11 soldados tomados como reféns são mortos e degolados assim que a notícia do massacre de Bagua chega. Ao término do confronto, 25 soldados e 9 indígenas estavam mortos, mais de 200 haviam ficado feridos e, até hoje, a quantidade de desaparecidos segue indeterminada.
Em diversas aparições públicas, ministros qualificariam as demandas dos manifestantes como “caprichos,” e o presidente minimizaria a morte dos indígenas, aos quais se referiu como “pessoas de segunda classe”, responsáveis por fazerem o país retroceder a estágios “primitivos, não civilizados e irracionais”. Campanhas publicitárias são velozmente lançadas na imprensa nacional com os slogans “12 milhões de hectares para 400 mil nativos? 15 milhões de hectares como santuários naturais?”.
Alberto Pizango é responsabilizado pelas mortes e denunciado pelo governo por rebelião e conspiração contra o Estado (podendo ser condenado à prisão perpétua em um processo que continua a se desenrolar até hoje).
Anos após o massacre, vazamentos do WikiLeaks revelaram que o Departamento de Estado norte-americano pressionava o governo peruano, colocando em xeque o recém-assinado Tratado de Livre Comércio se os protestos não fossem contidos.
O “Baguazo”, como os habitantes locais vieram a se referir ao massacre, foi um ponto de inflexão para os movimentos indígenas no Peru e demais povos andinos, pela constatação generalizada de que a aliança mortífera entre a violência Estatal e o poder das corporações acabaria por exterminá-los muito brevemente.
Marisol de la Cadena, envolvida com os dilemas políticos da indigeneidade contemporânea e com os conflitos entre os grandes projetos de desenvolvi-mento nacionais e os indígenas, relata a estigmatização progressiva destes como “velhos comunistas” dedicados a impedir o progresso com “roupagens ambientalistas”. Mas, para o colombiano Arturo Escobar, mais do que “estar contra” o Estado e seus sócios, as diversas formas de resistência das populações selváticas esboçam a possibilidade de uma “biodemocracia” com ênfase no controle local dos recursos, na redefinição da noção de produtividade, na diversidade cultural e biológica e na autonomia territorial. Talvez a insurgência Wampis esboce não a recusa ao Estado em termos clastreanos, mas, sim, o seu redesenho cosmoprático, numa espécie visionária de perspectivismo político.
O certo é que, depois do Baguazo, os indígenas nunca mais fecharam estradas, porque já conheciam as armadilhas do Estado peruano, veio a dizer certa vez Alberto Pizango. “A grande lição de Bagua para os indígenas foi a necessidade de passar do grande protesto para a grande proposta, e da grande proposta para a grande ação, que consiste no exercício pleno da livre determinação dos povos”.
Uma definição trivial de Estado é aquela que descreve uma nação politicamente organizada e unificada através de seus sistemas – educativo, jurídico, etc. – e também de seus mitos fundadores e suas ficções identitárias, a bandeira, o hino. Mas se sem o uso da força não há Estado, as nações, diferentemente, são constituídas por vontade própria e estão fortemente implicadas com o território, com a língua e com as tradições compartilhadas. Enquanto uma nação pode sobreviver ao enclausuramento arbitrário estatal – fato corriqueiro há pelo menos cinco séculos –, o Estado subsiste fundamentalmente de seu caráter mononacional e monocultural – pelo menos até bem recentemente – e, por isso, a intransigência maiúscula e singular: Estado-nação.
Mas, na última década do século passado, esse hífen inconveniente entre Estado e nação começará a ruir precisamente quando movimentos indígenas andinos, fartos da herança excludente, etnocida e invisibilizante à qual estão submetidos desde sempre, se propõem a inventar um outro Estado, plurinacional e intercultural, capaz de incorporar suas cosmologias e modos de vida. O ativismo conscientemente propositivo desses movimentos, especialmente no Equador e na Bolívia, vai então desencadear as constituições plurinacionais e interculturais aprovadas em 2008 e 2009, respectivamente, dando início a um processo de transição do Estado-nação colonial para formas plurais de Estados-nações.
Não sem que o lugar subalterno imposto aos “latino-ameríndios” (maiorias demográficas nos Andes) fosse reiterado sistematicamente para a deslegitimação jurídica e a descaracterização narrativa da plurinacionalidade como formas de separatismo e independentismo oportunista, em um viés novamente nacionalista e europeu.
Nina Pacari, ativista ligada ao movimento indígena e hoje juíza da suprema corte do Equador, insiste na potência da plurinacionalidade para fraturar a falsa homologia entre as nações e o Estado, mas também para superar o eurocentrismo dominante. Afinal, se cada nação estabelece relações particulares com o território, são precisamente as especificidades entre o povo e a terra que a instauram, e legitimar tais nações perante o Estado significa preservar suas relações e seu modo de governo do território. Mas, como bem sabemos, a terraplanagem dos relevos sociais, políticos e econômicos foi e continua a ser o motor do Estado moderno. E, no caso de Pindorama, de uma modernidade em moto-contínuo.
“Seria possível pensar o Estado brasileiro como plurinacional, e não apenas pluriétnico ou plurirracial?”, pergunta Sylvia Caiuby Novaes no ensaio “Nações Indígenas” ainda na década de 1980, três anos antes da Constituição de 1988, ao refletir sobre a dificuldade histórica das relações índios-Estado no Brasil e os obstáculos de se pensar os índios como nações com direitos soberanos sobre o seu território.
Renato Sztutman, etnólogo, professor da USP e ainda garoto na época da pergunta de Sylvia, nos oferece uma resposta interessante ao escrever sobre as metamorfoses da obra de Pierre Clastres. Para ele, “no Brasil, a construção de uma consciência pan-indígena – de um indianismo político propriamente dito – seria bastante recente se comparada a outros países da América Latina. Isso não implica a impossibilidade de refundação do Estado, mas sim a necessidade de um maior aprendizado da experiência moderna do Estado. Poderíamos objetar que a construção desses Estados plurinacionais na Bolívia e no Equador, em que a população declarada como indígena é imensa, teria como modelo um Estado indígena, de matriz andina, capaz de garantir um certo equilíbrio entre a imposição de uma unificação política e ritual e a autonomia das comunidades agrícolas. Como evidencia Salvador Schavelzon, em seu estudo minucioso sobre o processo da Constituinte na Bolívia, uma das questões centrais ali discutidas foi o lugar das comunidades agrárias, estas que representariam um ‘contra o Estado’ dentro do Estado. Ou seja, o desafio seria como trazer para o Estado o sentido da autonomia dessas comunidades, e assim pensar ‘um Estado que também fosse um não-Estado’. Um desafio ainda maior seria o de pensar uma refundação do Estado no caso de certos atores indígenas das terras baixas sul-americanas, para quem o Estado, seja qual for sua geometria, permanece uma experiência alienígena, ainda que não destituída de possibilidade.”
Cindindo o universalismo da figura estatal, a indigenização plurinacional e intercultural andina, radicalizada com a insurgência inaugural Wampis, engendra contraestados de desalienação de milhares de índios, mas também aponta para a viabilidade prática de uma vida terrena, autogovernada e visionária para todos aqueles que, seja lá a qual terra pertençam, voluntariamente também se sintam indígenas.
Wellington Cançado
Editor da PISEAGRAMA.
Gerardo Petsaín
Ilustrador indígena Wampis da Amazônia peruana. Em 2002 foi eleito prefeito de Domingusa. Atualmente reside em Santa María de Nieva.
Como citar
CANÇADO, Wellington. Indigenações. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 9, p. 66-75, set. 2016.