INSTANTE EM
QUE O PRESENTE
TOMBA A HISTÓRIA
Texto de Cacá Fonseca
– E que interesse teria eu naquilo?
Estar ali no meio da multidão poderia apagar o meu próprio questionamento sobre o assunto mais polêmico dos últimos tempos na cidade de Salvador: unir uma informe multidão de espectadores para assistir ao evento da demolição do estádio de futebol “Fonte Nova”. Mas era imperdível, queria ver, ouvir, pois estava cheia de dúvidas sobre tudo que emergia e implodia em torno da manhã de 29 de agosto de 2010 em Salvador.
– Sai daí, vai, você está na minha frente! – grita, alterada, uma mulher de 40 anos toda adesivada com números eleitorais –Eu vou subir aqui! – apontando para a grade que a separava da área do camarote vip, preparado especialmente para o espetáculo da demolição.
Ela queria ver aquilo que já havia acontecido virtualmente nos canais de simulação da internet veiculados pelo jornal “A tarde”, principal mídia impressa de Salvador. Etapa por etapa, pilar por pilar já haviam caído num replay insistente e publicitário como mais um lance de futebol daquela arena. Repetição simulada do que ainda não foi, mas já se faz como realização e acontecimento programado, em que o instante da destruição simulada e da construção imediata da nova arena do estádio sequer pareciam separados. Era um continuum vertiginoso, entre o que foi e o que será.
E estávamos ali no instante, durante o passado e o presente, num intervalo entre o ícone moderno e fantasmagórico e o vazio empilhado de entulho. Separavam-se definitivamente passado e futuro numa coexistência intrigante, duas existências instantaneamente simuladas no vídeo “informativo”. Inquietantes pela visada contínua e esvaziadoras da nossa capacidade de elaborar algo sobre um tempo tão encarnado em nosso presente e tão instantâneo em nosso passado.
A produção moderna da arquitetura em edifícios e cidades foi (e ainda é, em eventos que atualizam o ímpeto moderno) hegemonicamente orientada pela égide do progresso, que tem na construção do novo uma totalidade utopista. No final do século XIX e ao longo do século XX, a destruição planejada mobilizou avassaladores processos de modernização das cidades sob a insígnia da renovação para a constituição de valores universais – uma concepção formal para os ideais sociais progressistas.
Incidências singulares desses processos desenrolaram-se em Paris, Rio de Janeiro, Salvador, onde movimentos operados por regimes de apagamento e de visibilidade engendraram linhas de forças. Essas linhas são substratos intensivos de realizações históricas derivadas numa constituinte formal, a própria construção da materialidade urbana moderna. E, entre os ícones de tais processos, figura a Fonte Nova, cuja própria denominação anuncia a renovação e a tábula rasa a ela subjacente.
Seria mesmo a Fonte Nova ali na minha frente ou só um fantasma de tais substratos? Ela mesma, motivo de toda aquela multidão, emanava uma possível irrealidade, própria a uma existência que ainda não desapareceu, mas cujo sentido parece vagar pela incerteza de sua persistência no tempo e no espaço. Observava, na iminência entre um passado contundente e um futuro apoteótico na Copa de 2014, aquela materialidade urbana, intensiva em tempo e vida, meticulosamente preparada para ser demolida em dezessete segundos.
A Fonte Nova e tudo aquilo do seu entorno pairavam sobre um domingo fantasmático. As lajes apinhadas de gente protegidas do sol escaldante pelos sombreiros de praia pareciam um camarote improvisado separado categoricamente do camarote oficial. Sucessivas CAMADAS da segregação de sentidos: uma rua, uma grade, um grupo de seguranças, uma produtora de rádio de controle em punho, um tapume e finalmente um toldo. Camarote-laje sobre encosta e camarote-tela plana, dois níveis sucessivos de “camaroteamento”, um duplo das inúmeras ações de loteamento na cidade de Salvador.
Inúmeras CAMADAS encobriam de prestígio um lugar naquele sol plasmado em novas fontes – jornalísticas, históricas, afetivas. À sombra, naquela implosão astronômica de energia e tempo, impunham-se à cidade pobres e ricos testemunhos de um átimo da explosão do tempo na história e da história no tempo. Sucessivos espantos e mais um: avistei, do outro lado da grade, aquela que dividia os dois camarotes, adentrando algumas camadas de segregação, o secretário de cultura do Estado da Bahia, todo de branco, com a prestigiosa pulseira vermelha dos camarotes da demolição em punho.
A demolição simulada ocorria diante dos meus olhos na tela plana do camarote vip, policiado por produtora, seguranças e laptops, que conseguiam ver pelas frestas do tapume de separação. Um espetáculo midiático e urbano sob os domínios da fraude do tempo plano, o tempo real das transmissões ao vivo.
– Aquele era o tempo real?
Plano de demolição, plano de construção, plano de revitalização. Planos secretos, políticas em plano, estampados em adesivos e coladas às camisas de toda ordem – ano de eleição, multidão em foco e obviamente apinhamento também de números, planos e políticas eleitorais convertidos em adesivos anunciando o novo estádio de futebol. Uma nova arena para o show do futebol, evento central no espetáculo contemporâneo, em que a cultura assume a centralidade da cognição superfaturada do capitalismo.
– O que será que o secretário de cultura está fazendo ali nos camarotes da demolição?
Uma aparição messiânica das insígnias do tombamento do tempo – agora literalmente, tombar no espaço um tempo, mas sem inventariar passados, pois é no durante que ele, o secretário, legitimava em alguma medida tal ocorrência.
Uma amiga, sempre em dúvida sobre a vida, meio afeita à filosofia das subjetividades urbanas, insistia:
– Porque é que a gente quer ver isso? Porque a gente está aqui? – sentindo o sol queimar nossas testas.
Ocupávamos uma daquelas camadas da segregação, estávamos na rua, entre o camarote-laje e o camarote-plano. No nosso lugar não havia os toldos tensionados e perfeitamente instalados do camarote-tela plana nem tampouco os sombreiros de praia instalados nas lajes das casas amontoadas sobre as ladeiras e a encosta. Sombreiros, cadeiras de plástico e de praia, cerveja em lata no isopor, bandeirolas eleitorais, celular e máquina fotográfica em punho erguiam-se num outro nível de camarote, o camarote-laje. Num domingo, em que esses lugares do camarote-laje se revalorizaram no mercado imobiliário altamente inflacionado pelos enquadramentos da paisagem. A partir da vista de maior disponibilidade, a objetiva fotográfica registrava e supervalorizava, em frações de minutos, os espaços opacos, desprezados durante todo o restante do tempo na cidade.
Talvez seja o metro quadrado mais caro do mundo na relação espaço-tempo, um recorde: durante dezessete segundos de uma manhã de domingo vale R$10.000,00. O preço do ineditismo, da melhor transmissão, do efêmero eternizado que passa a configurar um segundo histórico na vida de uma cidade, de um governo, de alguns engenheiros, das pessoas que vivem naquelas casas encostadas à Fonte Nova. Espaço-tempo ínfimo, hiperinflacionado pelo discurso da modernização, em confronto com a produção da memória.
Algumas presenças como secretário, mídia, seguranças e a minha própria tornavam a atmosfera suspeita. Um tempo que, apesar de demorar segundos, seria estendido por anos como data histórica das demarcações cívicas.
– Tem um certo civismo, me lembra um pouco 7 de setembro. 29 de agosto, vai virar feriado municipal, motivo de piada, axé.
– Quebra-quebra, é explosivo, leva o maior jeito de refrão de música de carnaval da Bahia.
Talvez haja oposição ao axé por uma vertente dessa multidão. Saudosistas respeitosos investidos de um civismo tradicionalista, apaixonados pelo futebol esporte clube, memorialistas que choram abraçados às bandeiras com um ar comovente, melancólico e empoeirado, como o horizonte após a demolição. O choro do desaparecimento de um espaço do acúmulo coletivo de um sentir pelo futebol. Comoção efusiva hasteada em bandeiras patrióticas, simbólicas e representativas desse sentir coletivo.
– UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
Vaiaram os espremidos pelos dois camarotes, ali onde me encontrava, quando alguns ilustres do camarote-plano, insatisfeitos com sua perspectiva – ainda que reduto do privilégio segregado –, resolveram subir em bancos e bloquear a nossa transmissão com seus próprios corpos. Alicerçados pelo efeito de distinção, seus corpos “camaroteados” escamoteavam em tempo real o espaço em vias de desaparecer. Inaceitável.
– UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
Um coro insistia, mas lá do outro lado, de dentro, separados por tantas camadas, os ilustres eram surdos aos barulhos da rua. A transmissão ao vivo – “plana” e em cercas – impede as demais transmissões de sentido. Afirmam-se as hegemonias no embate dos segundos da demolição e da produção simultânea das memórias.
Transmissão ao vivo num impasse entre o camarote- laje- sombreiro- cerveja em lata- apinhamento e o camarote tela plana- garçon- pulseira verde, vermelha e azul. No exato espaço entre os dois camarotes, no limite do chão, entre a encosta e a grade, o embate de corpos e visões transmitido em descompassos espaço-temporais. Os que subiam portavam os capacetes e a indumentária dos engenheiros da demolição. Ali, compartilhando o mesmo espaço do secretário da cultura, entre os corpos “camaroteados”, também subiam nos encalços da cidade-patrimônio cultural para alavancarem as possíveis valorizações da cidade-sede da abertura dos jogos da Copa 2014.
A transmissão ao vivo, a cores e em tempo real do evento da demolição: não se tratava de privilégio (ou não deveria se tratar). Mas, nas articulações das hegemonias, os interesses especulativos de uma mídia capital ativam na cidade, com incansável esforço, certos mecanismos de separação, distinção, privilégios e exclusividade para que lugar e tempo sejam hipervalorizados instantaneamente. Esses processos de segregação espacial derivam das inúmeras formas de intervenção na cidade. A demolição da Fonte Nova foi um evento transmitido inúmeras vezes pela mídia local, em telejornais e em sites de jornais locais. A demolição foi simulada incontáveis vezes por esses veículos, num processo frenético de cobertura do episódio simulado, mas ainda não ocorrido. A cidade, vista como condição de existência e prática das relações de forças, operacionaliza a criação e destruição, no sentido ontológico de fazer aparecer (emergência) e desaparecer. As práticas dos espaços configuram atribuições de valor e de sentido, em suas decorrências culturais, sociais e políticas. Os significados praticados como ação e discurso sobre a cidade poderiam ter contribuído para a permanência da Fonte Nova com suas causas diversas, já hegemônicas na produção da memória cultural, tais como patrimônio, tombamento e preservação.
Entretanto, no embate das visibilidades urbanas, as ideias de modernização e de progresso, sonâmbulas guardiãs de uma história – tão monumental e patrimonialista como essas ideias –, refizeram os valores atribuídos à velha Fonte Nova. Alternam-se os valores no mercado, em que a preservação e a modernização desfazem possíveis antagonismos para converterem-se em estratégias compartilhadas da acumulação de capital. São expressões do jogo preservação-modernização, alastradas em diversas apropriações, que a todo tempo restituem possibilidades, vivência social, cotidiano e forças. A vaia, o grito, o choro, o calor realizam no campo da sensação aquilo que processado individualmente figura a emoção, a ontologia do sentir em relação a algo na sua partilha coletiva.
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Silêncio estrondoso na multidão, a fixidez dos olhares direcionados para os primeiros estouros. O tremor reverberava do desmoronamento desenfreado daquele bloco gigante de acumulações de valores atribuídos e sentidos. O tremor atravessava todas as camadas da segregação num arrombo assustador e fazia vibrar o chão. Os pés, atravessados indistintamente nas camadas laje, chão e plano, repercutiam a sensação no corpo daquilo que foi impossível olhar. Uma nuvem de fumaça subiu feito névoa, a poeira fez do instante da demolição um espetáculo ofuscado para a transmissão ao vivo.
Camarote-laje, camarote-plano: agora, o espaço entre eles compartilhava uma mesma perspectiva, ao vivo, mas sem cores. O branco acinzentado da poeira embaçou a nitidez da imagem e, aos mais ávidos pela imagem da demolição, restava voltarem-se para as telas-planas, aquelas onde esse episódio já perdera inclusive a graça do ineditismo e convertera-se numa repetição desprovida da possibilidade de afetar, de fazer, da sensação do arrombo, a vibração imponderável do corpo. A mídia insistente, divulgadora da sentença fatídica da demolição programada, parecia um looping assolador do instante de realidade encarnado no presente. Um rapaz envolvido numa bandeira do Bahia chorava durante a queda.
– pla…plaplaplaplaa….. zzzzzzzzzzzzzz ____
Não se firmaram os aplausos. Alguns grupos esboçaram uma reação festiva, mas não ouve ressonância diante do estrondo. A demolição tem uma potência assoladora, frustrando a sensação festiva mobilizadora das palmas. A derrocada de tamanho bloco de sentidos em fugazes dezessete segundos expõe as relações espaço-tempo e criação-destruição a um tipo de constrangimento. A contagem era regressiva como numa virada de réveillon, mas o tempo em reverso 10- 9- 8- 7… não correspondia com a síntese de passado-presente concentrada naqueles segundos.
– 6, 5, 4…
Não houve a disrupção efetiva do acontecimento, os pilares caíram antes, ínfimos instantes. A contagem imprópria dos cronômetros afinados com fogos de artifício marcou uma defasagem entre tempo real, experiência vivida e espetáculo midiático. Ainda nem havia chegado o zero e a nuvem branca já pairava fazendo a imagem-tempo congelar num fundo branco, num descompasso imperceptível para o arrombo. A insistência sobre o tempo ínfimo é só uma alegoria para pensar a passagem fraudulenta de uma história tombada ali diante de nós em pó branco.
O placar de outra contagem regressiva acendeu ainda sob a atmosfera branca da imagem-tempo congelada. Era ilegível naquele instante, mas perduraria na paisagem da demolição com a intenção de neutralizar a ruptura inerente às passagens entre preservação e modernização e de dissimular a construção histórica num continuum ficcional entre passado, presente e futuro. Digressões do tempo a fim de se instalar a expectativa modernizante numa Salvador patrimonializada. Na sucessão de duas contagens regressivas, os dezessete segundos cabais da demolição parecem uma fração inexpressiva nos 1.376 dias que anunciam a data do grande espetáculo urbano, global e midiático, o início da Copa do Mundo em 2014.
Cacá Fonseca
Bicicleteira-urbanista e designer, atenta às micropolíticas do cotidiano da cidade de Salvador, onde mora há 4 anos. Atua como editora geral da revista eletrônica Redobra, como professora e como pesquisadora do laboratório citado.
Como citar
FONSECA, Cacá. Instante em que o presente tomba a história. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 2, p. 48-51, abr. 2011.