ISTO É COMIDA
DA ÁFRICA
Texto de Judith A. Carney
Decantações, fervuras e temperamentos, série de pinturas de Josi
O papel dos africanos escravizados nas culturas de arroz nas colônias não se restringiu à mão de obra. Contra a narrativa histórica hegemônica, que sempre colocou os colonizadores europeus em primeiro plano, relatos orais permitem traçar uma história diferente, em que o arroz se populariza graças à iniciativa e aos conhecimentos, tecnologias e preferências alimentares de pessoas vindas da África.
A maioria das pessoas associa o arroz à Ásia. O grão, no entanto, é originário também da África. Entre as duas dúzias de espécies do gênero Oryza, apenas duas foram domesticadas, uma na Ásia (Oryza sativa) e a outra na África Ocidental (Oryza glaberrima). Embora a Ásia seja, há muito, associada à cultura do arroz, a África não o é. Os europeus costumavam comprar arroz excedente de sociedades africanas para abastecer navios negreiros durante a era da escravidão transatlântica, mas nem Lineu, o pai da taxonomia, nem seus sucessores imaginaram que o cereal teria se originado em qualquer outro lugar que não a Ásia.
Estudiosos atribuíam a presença precoce do cereal na África Ocidental à passagem de navegadores portugueses, que carregavam sementes da Ásia para a costa da Alta Guiné. Essa visão só seria contestada no final do século XIX, quando os botânicos coloniais passaram a suspeitar que o arroz vermelho cultivado em toda a África Ocidental francesa era de uma outra espécie. Em meados do século XX, a comunidade científica internacional corroborou essa hipótese. No entanto, a confirmação botânica da existência de uma espécie nativa africana domesticada de maneira independente não afastou a visão predominante de que os europeus teriam introduzido a cultura do arroz na África Ocidental e nas Américas.
Uma exceção notável, porém, ocorre em comunidades no nordeste da América do Sul, onde descendentes de escravizados e quilombolas celebram o arroz como parte de sua herança africana. Do Suriname às Guianas e da Amazônia aos estados brasileiros do Amapá, Pará e Maranhão, uma tradição da história oral sustenta que uma mulher africana teria trazido o arroz da África escondendo grãos em seus cabelos. As preciosas sementes que escaparam da detecção dos senhores teriam dado início ao plantio do arroz nesses lugares. Essa contranarrativa contrasta nitidamente com os relatos escritos, que creditam aos navegadores europeus a introdução da semente asiática.
A narrativa oral associa a transferência do arroz à iniciativa africana e às preferências de subsistência dos escravizados. “Lembramos desse arroz”, me disse uma senhora de 83 anos que entrevistei em agosto de 2002. Ela era lavradora em terras que já fizeram parte das plantations de arroz da família Belfort, nas bacias do Itapecurú e do Mearim, no Maranhão. Dona Luciana contou que sua avó escravizada plantara deliberadamente uma variedade de arroz vermelho em suas roças: “Só essas mulheres sabiam desse arroz”, ela refletiu, “porque ele veio nos cabelos delas quando elas chegaram aqui no Maranhão como escravas”.
Num povoado isolado no Pará, a lenda quilombola aparece mais uma vez. Ela é narrada por uma senhora idosa, que cultivava arroz na juventude. Em sua história, é um grupo de crianças que aparece como agente de disseminação do arroz: sua mãe, incapaz de impedir a escravização dos filhos, teria enfiado grãos de arroz em seus cabelos. As lendas quilombolas revelam como os escravizados davam sentido às experiências traumáticas de seu passado, atribuindo a cultura do arroz a seus ancestrais e honrando o papel do cereal que os ajudou a sobreviver.
Estudos sobre a evolução da economia do arroz na Carolina do Sul colonial, nos Estados Unidos, jogaram uma nova luz sobre a história do cereal nas Américas. Os historiadores Peter Wood e Daniel Littlefield trouxeram uma perspectiva crítica à visão predominante de que os proprietários de fazendas, sem experiência prévia com o cultivo de arroz, teriam engenhosamente descoberto formas de preparar os ambientes pantanosos da colônia para seu cultivo. Wood e Littlefield chamaram a atenção para a familiaridade prévia que muitos escravizados da África Ocidental tinham com o cultivo do cereal, destacando, além de sua introdução precoce na colônia, a importação deliberada de grupos étnicos que detinham esse conhecimento à medida que a economia das plantations se desenvolvia.
Embora se baseiem em apenas um estudo, pesquisas arqueológicas no delta do rio Níger, no Mali, confirmam a presença de arroz africano no horizonte do solo há cerca de 2 mil anos. Evidências botânicas sobre índices de diversificação de espécies e pesquisas em linguística histórica sobre o surgimento da palavra “arroz” em línguas africanas sugerem que a domesticação do Oryza glaberrima ocorreu entre 2.000 e 3.500 anos atrás. Desde a sua provável domesticação nas zonas úmidas do Mali, o arroz africano difundiu-se por uma vasta área. Às vésperas do tráfico transatlântico de escravizados, o cereal já era plantado ao longo da costa do Senegal até a Costa do Marfim, bem como no interior, até o lago Chade.
Quando os traficantes europeus de escravos chegaram à África Ocidental, encontraram por lá densas populações que prosperavam com as conquistas botânicas de suas civilizações que, além do arroz, haviam domesticado o sorgo, o painço e o inhame. Seguindo o precedente estabelecido pelos portugueses, os navegadores europeus passaram a contar com muitos desses alimentos básicos, e rotineiramente compravam excedentes como provisões para os navios negreiros. Séculos de escravidão transatlântica trouxeram repetidas remessas de alimentos africanos para as Américas, bem como a oportunidade de que os escravizados restabelecessem suas preferências alimentares no novo continente.
No período de formação do trabalho nas plantations, entre 1550 e 1640, é provável que mais de um terço dos africanos forçados à escravidão transatlântica tenham vindo de regiões de cultivo de arroz da África Ocidental. Pessoas originárias dessas regiões correspondiam a cerca de 40% dos africanos escravizados nas plantações da Carolina do Sul e a dois terços daqueles destinados às plantações do Maranhão. Os estoques de alimentos que ocasionalmente sobravam dos carregamentos de escravizados permitiam que essas pessoas restabelecessem seu cultivo em seus canteiros de provisão. Era nesses canteiros que os proprietários de escravizados encontravam muitas dessas plantas pela primeira vez.
No Brasil, o arroz se estabeleceu como cultura de subsistência no primeiro século da colonização, assim como muitos alimentos originários da África. O padre jesuíta José de Anchieta observou em 1560 que “há muitas abóboras e feijões da Guiné melhores que os portugueses”. Outros alimentos africanos introduzidos no início da era das plantations incluíam o quiabo, o feijão-guandu, o feijão-fradinho, o painço, o sorgo, o inhame, o dendê, o hibisco, a vinagreira, a pimenta malagueta, o tamarindo e a mamona. Muitas dessas plantas dão aos pratos regionais brasileiros seu sabor distinto, como em outras tradições alimentares da diáspora. Como lavradores e cozinheiros de culturas de subsistência e de exportação nas economias de plantation, os africanos escravizados deixaram um legado culinário que ainda não foi suficientemente reconhecido nas abordagens históricas dos percursos alimentares no Atlântico ocidental.
Essa negligência decorre, em parte, de um viés acadêmico em que a semente tem mais importância do que as formas culturais de conhecimento que orientam o estabelecimento de determinados cultivos. Ao enfatizar a difusão de sementes de uma parte do mundo para outra, em vez dos propósitos a que essas sementes servem e dos processos que levaram a seu estabelecimento nos locais de origem, os europeus se colocam em primeiro plano nas narrativas históricas.
A cultura do arroz, contudo, é resultado de mais do que a mera troca de sementes: as cascas indigestas precisam ser retiradas por meio de um método de processamento que mantenha os grãos inteiros. Até meados do século XVIII, quando os moinhos mecânicos foram finalmente aperfeiçoados, apenas o pilão africano servia a esse propósito. Relatos escritos que creditam aos europeus a introdução da cultura do arroz nas Américas não abordam a questão de que ela dependia de tecnologias e conhecimentos africanos cruciais. Uma análise da história do arroz no continente, portanto, exige atenção à escravidão transatlântica, a modalidades étnicas e de gênero de conhecimento agrícola, e à iniciativa dos escravizados na afirmação de suas preferências alimentares históricas.
Referências ao cultivo do arroz aparecem tão cedo na história do Brasil que até o século XX alguns estudiosos acreditavam que se tratasse da domesticação de uma espécie nativa. A confusão resultou da presença de quatro espécies indígenas selvagens de Oryza no Brasil, que cresciam espontaneamente ao longo das margens dos rios. Quando Lineu estruturou seu sistema de classificação de plantas, em 1753, apenas uma espécie domesticada de arroz era conhecida, a O. sativa asiática. Fontes de arquivo fazem referência frequente a um tipo de arroz vermelho no início da colonização do país, mas não especificam nitidamente se se tratava de um grão cultivado ou selvagem.
É de Pero de Magalhães Gandavo a referência mais antiga ao cultivo do arroz no Brasil. Ele observa a presença do cereal na Bahia em 1568. Como portugueses e seus escravizados haviam se estabelecido na área, a referência é provavelmente a uma espécie de Oryza domesticada, e não a uma selvagem. Um relato do frei católico Gaspar Madre de Deus, de dez anos antes, também sugere que o arroz já estava sendo plantado aqui. O frei registra vendas de arroz sem beneficiamento perto do Rio de Janeiro no período entre 1550 e 1557. Esses dois registros indicam que o arroz já estava sendo cultivado 20 anos após o estabelecimento das primeiras plantações de açúcar nas regiões de escravização africana mais densa.
É com o Tratado descritivo do Brasil, escrito entre 1570 e 1587 pelo açucareiro baiano Gabriel Soares de Sousa, que podemos confirmar o cultivo intencional do arroz. Soares observou que escravizados cultivavam o cereal para sua alimentação em pântanos de várzea, bem como em terras secas com precipitação de chuva. As referências ao cultivo do arroz aumentam nas décadas seguintes com a expansão da economia das plantations por todo o Nordeste do Brasil. Em 1618, o açucareiro e senhor de engenho Ambrósio Fernandes Brandão notou que o arroz havia ultrapassado o milho como o segundo alimento mais consumido (o primeiro era a mandioca), o que sugere que o cultivo do cereal já vinha ocorrendo há algum tempo em Pernambuco e na Paraíba. Escrevendo alguns anos depois sobre São Luís, no Maranhão, Simão Estácio da Silva observou que “havia muito arroz na área e era bom”. Não sabemos se o arroz se estabeleceu na região durante a colonização francesa (1594-1615) ou após a reconquista portuguesa; no entanto, Silva observou que os franceses haviam introduzido muitas plantas e animais no Maranhão. O cultivo do arroz era tão difundido no Nordeste que em 1627 o Frei Vicente do Salvador escreveu que ele era cultivado por toda parte.
No século XVIII, o naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, que empreendeu a primeira expedição científica do país (1783-93), observou que apenas um tipo de arroz, vermelho, era plantado no Pará antes da introdução de uma variedade branca, na década de 1760. Amplamente disseminado, o cultivo do arroz vermelho havia sido incentivado pelas autoridades coloniais, de modo a fornecer sustento à população pobre. No Pará e no Maranhão esse arroz era conhecido como arroz vermelho ou “arroz da terra”, levantando a possibilidade de que este último nome fizesse referência à espécie africana O. glaberrima.
No Atlântico oriental, as ilhas de Cabo Verde, que distam de 460 a 750 quilômetros da costa do Senegal, surgiram como pivôs do comércio transatlântico no primeiro século da escravidão vinculada às plantations. O arquipélago é favorecido por correntes marítimas que carregavam embarcações da costa da Alta Guiné até a Amazônia oriental e o Caribe. Ponto de articulação entre a Europa, a África e as Américas, ali paravam rotineiramente navios que se abasteciam de escravizados e provisões. Despovoada na época de sua descoberta, em 1455, a ilha de Santiago tornou-se um próspero núcleo do tráfico negreiro. Em 1466, a Coroa portuguesa concedeu aos mercadores de Santiago privilégios comerciais na região entre a Senegâmbia e Serra Leoa, o que levou milhares de plantadores de arroz escravizados ao arquipélago. Aqueles que não eram vendidos como escravos transatlânticos trabalhavam no cultivo de algodão, açúcar e índigo, além de tecer e tingir tecidos (“panos”), que eram trocados por mais cativos. Os comerciantes da ilha detiveram o monopólio da venda de africanos escravizados até 1647, quando a Coroa portuguesa passou a permitir a cobrança de impostos diretamente nos portos africanos.
A colonização de Cabo Verde e sua emergência como entreposto crucial para a expansão portuguesa além-mar exigia a produção de cereais que alimentassem a sua população e abastecessem as caravelas nas viagens de ida. O clima tropical árido do arquipélago era inadequado para o cultivo do trigo e da cevada, grãos preferidos pelos portugueses. Os alimentos culturalmente procurados para o consumo e as liturgias dos portugueses (pão, vinho e azeite) tinham que ser importados da metrópole. Para o sustento diário, o cultivo do sorgo e do painço, cereais domesticados na África e resistentes à seca, complementavam as remessas de arroz do continente africano. Um registo de arquivo de 1498 documenta, apenas naquele ano, vários carregamentos de arroz da Guiné para Cabo Verde, fortemente indicativos da existência de um comércio de arroz africano. Tais carregamentos só poderiam ter sido de O. glaberrima africana, uma vez que ocorreram antes de Vasco da Gama contornar o Cabo da Boa Esperança ao regressar das Índias em 1499.
Em 1522, o arroz africano estava disponível em tal quantidade em Cabo Verde que um capitão português comprou três embarcações cheias. Em 1530, um navio partiu das ilhas em direção à Bahia carregado de mudas de cana-de-açúcar, inhame africano e arroz em casca. Dado o papel do cereal no comércio cabo-verdiano, o arroz levado para a Bahia em 1530 era quase certamente do tipo O. glaberrima, possivelmente introduzido na região por cativos familiarizados com seu cultivo e moagem. É dessa forma que as culturas alimentares africanas seguiram sua jornada geográfica através do Atlântico até as sociedades das plantations.
É pouco provável que o cultivo do arroz no Brasil tenha se originado em Portugal com variedades asiáticas. O arroz não era plantado em Portugal às vésperas da expansão marítima. Não há registro de seu cultivo sob domínio mouro entre os séculos VIII e X, embora algumas experimentações com o cereal possam ter ocorrido durante o reinado de Dom Diniz (1279-1325), conhecido como o “Rei Lavrador” por seu interesse pela agricultura. O arroz passou a ser cultivado em Portugal durante o século XVI, quando africanos escravizados começaram a transformar os estuários de água salgada dos rios Tejo e Sado em campos de arroz. A expansão do cultivo, no entanto, foi restringida pelo surgimento de economias de produção de arroz em outros lugares.
No século XVIII, Portugal passou a importar arroz da Itália e da Carolina do Sul. As classes médias urbanas da Europa católica procuravam cada vez mais o cereal para acompanhar pratos com peixe nos dias santos, que eram cerca de cem por ano. A emigração e a escassez de mão de obra agrícola contribuíram para o aumento da demanda por grãos importados, algo que viria a se tornar uma característica crônica da economia portuguesa e que levaria o primeiro-ministro da Coroa, o Marquês de Pombal, a promover a plantação de arroz na Amazônia oriental de forma a reduzir a dependência de fornecedores estrangeiros. Em 1781, todo o arroz importado por Portugal veio da colônia, produzido no Maranhão, no Pará e no Amapá.
As primeiras plantations de arroz se estabeleceram no Maranhão em meados do século XVIII, ao longo dos brejos das bacias hidrográficas do Itapecurú, do Mearim e do Pindaré, que desembocam no oceano perto de São Luís. O arroz já havia sido cultivado na região e provavelmente havia um comércio local do cereal, pois um inventário dos bens de um falecido de 1712 registra 828 litros de arroz entre esses bens. Não se sabe se esse arroz era da espécie africana ou asiática. Pombal vislumbrou uma economia de plantation alicerçada no trabalho escravo, constituída por duas culturas de exportação: o algodão, plantado em terrenos mais altos, e o arroz, plantado nos pântanos de várzea. O plantio do arroz foi estruturado com base na experiência inglesa na Carolina, privilegiando variedades asiáticas de O. sativa de alto rendimento (uma delas conhecida como carolino branco) adequadas para a moagem mecânica em larga escala. Sob as políticas de Pombal, o Maranhão emergiu como um centro de desenvolvimento concentrado de plantações. Como resultado dessas medidas, o arroz se tornou sua principal exportação no período entre 1760 e 1778.
A transição do Maranhão para uma economia de plantation ocorreu, no entanto, como um processo desigual. Um outro tipo de arroz, vermelho, há muito tempo plantado na região para subsistência e cultivado em diversos canteiros agroecológicos, prejudicou os objetivos de exportação. Esse arroz vermelho (possivelmente o O. glaberrima africano) adulterou as colheitas de carolino e foi oficialmente proibido em 1772. Buscando erradicar completamente seu cultivo nas áreas de plantação, o governador Joaquim de Mello e Povoas promulgou medidas punitivas. Os brancos que plantassem o arroz vermelho seriam castigados com um ano de prisão e multa; os índios, com dois anos de prisão; os escravizados, com dois anos de prisão e açoite.
Embora as razões por trás das medidas severas do governador não sejam especificadas, podemos especular. A interdição sugere que o arroz vermelho era amplamente plantado como cultura alimentar. No entanto, o mercado de exportação dependia de um produto de qualidade estável – sementes uniformes cujos grãos não quebrassem com a moagem mecânica. O objetivo era exportar grãos inteiros de arroz branco; a mistura com outras variedades, seja no campo ou nas fábricas, reduziria o valor do produto. Se o arroz banido fosse da variedade O. glaberrima, a ação do governador faria ainda mais sentido, dada a propensão do grão africano a se quebrar quando moído mecanicamente. Só é possível retirar a casca do O. glaberrima deixando o grão inteiro à mão, com o pilão – o método africano.
A medida do governador Mello e Povoas joga luz sobre o cenário socioeconômico da produção de arroz na Amazônia oriental durante a década de 1770, monopolizado por um punhado de proprietários ricos. Em relações de dependência com esses grandes proprietários estavam aqueles há muito acostumados a cultivar o arroz vermelho: os pobres, escravizados ou livres. Por razões que seguem obscuras, essa população subalternizada resistiu aos esforços empreendidos para coagi-la a abandonar o cultivo de arroz vermelho; foi preciso apelar a ameaças de punição.
As ambiciosas políticas de Pombal dependeram da importação massiva de africanos escravizados. Em 1755, ele concedeu a uma sociedade anônima, a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (CGPM), o direito exclusivo de fornecer africanos para a região amazônica oriental. Nos 22 anos seguintes, a Companhia transportou mais de 25 mil escravizados diretamente da África Ocidental para o Maranhão e o Pará. O historiador Walter Hawthorne nos dá estatísticas detalhadas sobre esse comércio, bem como sobre as dimensões étnicas e de gênero da política portuguesa de plantation. Em 1815, o número de africanos escravizados que migraram à força para a Amazônia oriental passou de 118 mil. Do total que chegou ao Maranhão desde a década de 1750, dois terços, ou quase 52 mil, haviam embarcado nos portos de Bissau e Cacheu, na Alta Guiné. A maioria dessas pessoas era originária de sociedades produtoras de arroz.
As estatísticas de Hawthorne também revelam que, de meados do século XVIII até 1787, um número extraordinariamente alto (38%) dos escravizados desembarcados no Maranhão eram mulheres. Isso provavelmente reflete o fato de que os escravizadores conheciam o papel tradicional das mulheres na cultura africana do arroz e sua experiência com o plantio, a colheita e o processamento em diferentes ambientes. Ao escolherem escravizados de grupos étnicos que praticavam o cultivo de arroz (os Bissago, Feloup [Diola] e Balanta), os portugueses emularam um padrão evidente na economia do arroz da Carolina do Sul: as importações direcionadas de experientes orizicultores. Os recém-chegados enfrentaram um regime de trabalho brutal para transformar pântanos florestais em arrozais. Agricultores, cujos sofisticados sistemas de cultivo em zonas úmidas haviam fornecido excedentes aos navegadores portugueses desde o século XV, eram submetidos, pelo resto de seus dias, a um trabalho desumanizado e, nas palavras de Hawthorne, desaculturado.
O cultivo do arroz que se estabeleceu no Maranhão seguiu técnicas utilizadas há muito tempo na África Ocidental. O terreno era desmatado e as árvores e arbustos eram queimados. Uma enxada de cabo longo preparava o campo para a semeadura, que consistia em perfurar o solo com uma vara, jogar os grãos de arroz nos buracos e cobri-los de terra com os pés, método também testemunhado nas plantações de arroz da Carolina. O arroz era desbastado e colhido, segundo relatos da época, “com uma pequena faca, cortando os caules um a um… [e] neles batendo com um galho de forma a soltar os grãos”.
Lisboa tentou estimular as plantations do Maranhão adiantando crédito aos grandes proprietários de terra para a compra de sementes asiáticas, moinhos mecânicos e africanos escravizados. Muitos plantadores de arroz, no entanto, não receberam subsídios e tiveram problemas com proprietários de usinas e varejistas, que mantinham as taxas de serviço muito altas. O armazenamento e o transporte também agravavam a situação, pois o produto armazenado sofria perdas devido ao mofo e a infestações, enquanto atrasos periódicos no início da estação chuvosa faziam com que a safra colhida nem sempre estivesse moída quando as frotas de transporte partiam para Lisboa, em agosto e setembro. Muitos dos produtores de menor escala não tinham condições de processar seu arroz mecanicamente, exigindo, assim, que seus escravos realizassem essa onerosa tarefa. Para os mercados locais e para subsistência, o arroz continuou sendo moído à mão, como na África, com o pilão. Consequentemente, dois sistemas de produção de arroz operavam na área de plantio do Maranhão. Um, para exportação, monopolizado por grandes produtores capitalizados, que detinham dispositivos mecânicos de moagem; e outro, para circulação nos mercados regionais, operado por produtores cuja relação com os primeiros era de dependência.
No início do século XIX, a economia das plantations de arroz do Maranhão começava a dar sinais de revés. A Carolina do Sul e a Geórgia recobravam sua proeminência comercial após as interrupções da Guerra de Independência dos Estados Unidos. Às vésperas da independência brasileira, em 1822, o Maranhão tinha a maior concentração de escravizados do Brasil, e também uma grande população quilombola, que chegava a milhares de pessoas. A região da fronteira com o Pará abrangia vastas áreas úmidas e densas florestas tropicais que favoreciam as fugas de escravizados e a formação de centenas de quilombos. Os assentamentos de fugitivos prosperaram plantando arroz, mandioca e outros alimentos da tradição ameríndia e africana. Essas comunidades autolibertas foram pioneiras em práticas agroecológicas sustentáveis, que permitiram que várias gerações vivessem em liberdade nas terras entre as bacias hidrográficas dos rios Turiaçu e Gurupí, que formavam a fronteira com o Pará.
Quando o cerco começou a se fechar, em meados do século XIX, expedições militares foram enviadas contra essas comunidades. As anotações de alguns dos líderes dessas expedições apontam para a abundância dos campos cultivados dos quilombos. Os aprovisionamentos apreendidos de arroz e de outros produtos de subsistência alimentavam os perseguidores. Com a Abolição finalmente decretada em 1888, a autolibertação dos membros dessas comunidades tornou-se um fato jurídico. Junto aos escravizados libertos, surgiu um campesinato para quem o arroz seguiria sendo um alimento essencial. O estado do Maranhão permaneceu como o principal produtor de arroz do Brasil até a segunda metade do século XX, quando o desenvolvimento de variedades da “revolução verde”, os sistemas de cultivo duplo e a irrigação por bombeamento deslocaram o centro da produção comercial para o sul do país.
À medida que a economia das plantations e a escravidão chegavam ao fim nas últimas décadas do século XIX, a importância da história do cultivo do arroz como alimento de subsistência era sepultada, nos relatos de fazendeiros, por uma narrativa que apontava para a iniciativa e a engenhosidade portuguesas. O arroz converteu-se numa conquista do colonizador porque nessa narrativa as sementes tinham mais destaque que os mecanismos de conhecimento cultural que permitiram a implementação de seus sistemas de cultivo. De acordo com a narrativa que se tornaria hegemônica, os africanos escravizados contribuíram com pouco mais do que mão de obra não qualificada. Como sabemos, porém, as comunidades quilombolas da região amazônica contam uma história bem diferente.
Uma versão ligeiramente diferente dessa história é contada em outra antiga área de plantação. Uma mulher africana, incapaz de evitar a escravização de si mesma e de seus filhos, teria escondido sementes de arroz em seus cabelos para que pudessem comer quando chegassem a seu destino. Como os cabelos eram grossos, a mulher pensou que os grãos passariam despercebidos. No entanto, ao desembarcarem do navio negreiro, os grãos foram descobertos pelo fazendeiro que os comprou. Ao passar a mão pelos cabelos de uma das crianças, ele encontrou as sementes e exigiu saber o que eram. A criança respondeu: “Isto é comida da África”.
Há um detalhe crucial nessa versão que ilumina outra camada de memória social e de consciência histórica. Quando o homem branco descobre as sementes no cabelo da criança, revela sua total ignorância sobre elas. Ao saber o que são, ele confisca os grãos, planta-os e começa a cultivar o arroz. O homem branco cultiva o arroz como plantation. É a memória social das plantations do Maranhão que parece informar esse relato. A apropriação do arroz pelos senhores de escravizados na narrativa atesta as relações de poder que transformaram o papel do arroz na história transatlântica: de alimento de subsistência a produto de plantation.
O relato desafia veementemente a narrativa dos colonizadores a respeito do desenvolvimento agrícola, que exclui a agência e a iniciativa africanas. A economia das plantations de arroz dependeu da apropriação do conhecimento e do trabalho africanos – e isso é simbolizado na lenda quando o proprietário de escravizados rouba as sementes trazidas da África. Ao descreverem essa apropriação em termos de roubo, os relatos afrodescendentes reivindicam o arroz como uma assinatura da diáspora africana. As narrativas orais evocam o momento em que um cultivo tão central para sua identidade cultural se tornou uma mercadoria produzida sob a escravidão.
Os africanos moldaram ativamente o mundo moderno. Até a terceira década do século XIX, eles cruzaram o Atlântico em maior número que os europeus. Suas contribuições para o desenvolvimento econômico e cultural das Américas duraram quase quatro séculos, mas ainda não são reconhecidas em sua totalidade. Um olhar atento para o arroz revela como os africanos, apesar da escravidão, transferiram para o continente americano todo um sistema de conhecimento, dos campos até a cozinha, e instituíram por aqui um alimento valioso. Essa herança está nos célebres pratos da diáspora africana, incluindo o emblemático prato regional maranhense, o arroz com cuxá – preparado com folhas de vinagreira, outra planta vinda da África.
Judith Carney
Geógrafa e professora da Universidade da Califórnia, é autora de In the Shadow of Slavery: Africa’s Botanical Legacy in the Atlantic World (2013) e Black Rice (2001).
Josi
Nascida em Itamarandiba (MG), é graduada em Letras pela UFMG e Artes Plásticas pela Escola Guignard (UEMG). Recebeu o Prêmio Pipa em 2022 e o 8º Prêmio do Instituto Tomie Ohtake.
Como citar
CARNEY, Judith A. Isto é comida da África. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 12-21, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.