ITAOBIM
Bruno Vilela
e Nuno Manna
A referência é 2001 do Kubrick mesmo. Só que entre a aurora do homem na idade das pedras e a exploração do espaço lunar está ontem. Uma dúzia de macacos vestidos de astronautas acordou e avistou a coisa, destacando-se em meio à paisagem estéril. O objeto definitivamente não estava lá ontem à noite; nem mesmo parecia estar lá quando tocou o despertador do celular, 15 minutos atrás. A estranha coisa tinha acabado de brotar, em algum momento durante a função soneca. Diante dela, os macacos astronautas (que passaremos a chamar de “homens” por economia textual) teriam arregalado os olhos, não fosse pela quase total perda da capacidade de se assombrarem diante do extraordinário e pela remela matinal. Mas a narrativa pedia: os homens ergueram-se e foram admirar o objeto misterioso.
Alguns deles resmungaram rabugentos. Bem no domingo?!, ouviu-se. Um dos homens, cutucado pelo narrador, teve que interromper o bocejo e soltar um protocolar O que será essa coisa tão enigmática?, enquanto ajustava a calça do moletom que lhe revelava o cofrinho. E todos se reuniram em volta do objeto, intrigados, porque os calendários não previam nada extraordinário naquela data; porque eles não sabiam quem tinha enviado o objeto, se o pessoal do bando vizinho ou a Americanas.com; e porque ninguém explicou o que exatamente deveria ser feito com o negócio, nem para quê ele servia.
O narrador tentou tocar, como em Uma Odisseia no Espaço, Assim falou Zaratustra do Strauss, para ver se inspirava o pessoal, se despertava interrogações um pouco menos pragmáticas, mais inquietantes. A música não só não adiantou como deu margem para que um dos homens perguntasse se não tinha uma da Claudinha Leitte. O narrador desligou a trilha sonora, engoliu seco e empurrou o micareteiro para perto do maravilhoso objeto.
Com um muxoxo, o homem (que passaremos a chamar de Davi) resolveu tocar a superfície da coisa. Nenhuma reação. O narrador pigarreou, apontando para a escada à esquerda. Davi respirou fundo e começou a escalar, até chegar ao topo da coisa. De lá, olhou para os outros homens, que se distraíam lá embaixo assobiando e cutucando as unhas. Olhou então para a rampa a seus pés. Davi juntou a com b, sobe com desce, daqui para lá, sentou-se e, com um pequeno impulso, começou a escorregar. Enquanto deslizava pela curva trajetória da plataforma, ele foi sendo tomado por uma desconcertante excitação; sentiu que viajava tão veloz quanto o sangue que corria em suas veias; seus poros abriram-se como crateras, captando o deslocamento do ar como uma poderosa ventania! A experiência causava-lhe medo e alegria. Assim falou Zaratustra voltou a tocar, em seu ápice de explosão, sem que o narrador sequer precisasse dar o play.
Lá embaixo, os outros esperavam o momento em que Davi deslizaria para fora da plataforma e cairia no chão duro. A expectativa de ver o colega se esborrachando chegou a animar os mais espíritos de porco. Mas a viagem de Davi culminou com uma explosão fresca e molhada dentro de uma imensidão azul e tratada a cloro! E os pratos de Strauss foram percutidos uma derradeira vez.
Enquanto Davi mergulhava profundamente no incomensurável, os outros homens desistiram de esperar e foram embora. Passaram na padaria, compraram frango assado com farofa e se divertiram a valer assistindo à Turma do Didi.
Bruno Vilela
Fotógrafo.
Nuno Manna
Jornalista, convidado a escrever esse conto a partir da fotografia de Bruno Vilela.
Como citar
MANNA, Nuno; VILELA, Bruno. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 3, p. 39, jul. 2011.