JANE JACOBS
REVISITADA
Texto de Michael Bourne
Subúrbios imaginários, imagens de Ross Racine
Há algumas semanas, deixei de lado o livro Morte e Vida de Grandes Cidades, de Jane Jacobs, para visitar o quarteirão da rua Hudson, em Manhattan, onde a autora viveu quando escrevia seu clássico livro sobre o planejamento urbano. Um quarteirão à frente as lojas exibiam marcas icônicas da moda – Steve Madden, Juicy Couture, Coach, Michael Kors – mas o antigo quarteirão de Jacobs mantém seu charme despojado, misturando pequenos prédios residenciais com um restaurante, um bar, um salão de manicure, uma bodega e uma lavanderia. Parei então no número 555, o edifício onde Jacobs viveu com seu marido e três filhos, agora ocupado por uma loja chamada GlassyBaby. É um empreendimento curioso. A loja dedica-se a um único produto: porta-velas baixinhos e redondos, feitos à mão, disponíveis em dois tamanhos e numa gama de cores que vai do rosa choque ao marrom.
Seria a loja um exemplo daquele tipo de negócio único que, segundo Jacobs, as cidades devem atrair para permanecerem vivas? Ou haveria algo vagamente sinistro no fato do edifício que já abrigou Jane Jacobs, a rainha da diversidade urbana, ter se tornado uma loja que estoca prateleiras e mais prateleiras de objetos inúteis e idênticos, exceto por sua cor? Jacobs teria certamente algo a dizer sobre o assunto, mas ela morreu em 2006 e tudo que temos agora são seus livros, entre os quais o mais conhecido completa 50 anos.
Morte e Vida de Grandes Cidades é uma leitura formidável, cáustica, carregada de críticas e observações sobre o funcionamento das grandes cidades, apresentadas numa prosa clara e direta. Entretanto, não é preciso ser economista para perceber que as observações de Jacobs sobre as virtudes de ruas generosas e vizinhanças diversas abordam pouco aquilo que realmente matava as grandes cidades americanas na metade do século passado: a perda de sua base produtiva. É por isso que qualquer um que queira entender Jacobs deveria ler os livros que publicou em seguida, particularmente The Economy of Cities (ainda sem tradução). Junto ao livro anterior, formam um tratado único e revolucionário sobre como cidades prosperam ou falham. A mensagem de Jacobs é simples: uma cidade, e portanto uma sociedade, vive e morre de acordo com sua capacidade de construir um ambiente criativo por e para seus cidadãos. Argumento que pode ajudar a decifrar um enigma: Nova Iorque, que 40 anos atrás ia em direção à bancarrota enquanto o resto da nação prosperava, agora prospera enquanto o resto da nação vai para o buraco. Há muitas razões por trás disso, mas quem estiver atrás de uma boa explicação para o renascimento milagroso de Nova Iorque faria bem em ler Jane Jacobs.
Nascida em 1916 e criada na Pensilvânia, Jacobs mudou-se para Nova Iorque nos anos 30. Sem formação em planejamento urbano, ela se destacou na política nova-iorquina graças a seu trabalho na liderança do bairro, opondo-se ao conhecido planejador Robert Moses, que queria construir uma via expressa de 10 pistas sobre Manhattan, um projeto que, se construído, teria arrasado os bairros Little Italy e Soho. Moses é mencionado somente de passagem nos livros de Jacobs, mas eles são uma contraposição explícita a sua visão de cidade. Moses e arquitetos com pensamentos similares, como Mies van der Rohe e Le Corbusier, queriam limpar as cidades, substituindo cortiços por grandes complexos residenciais circundados por parques e grandes avenidas. Na prática, isso significava demolir bairros inteiros e amontoar milhares de pessoas pobres em edifícios que logo se tornariam locais inseguros e marginalizados.
O primeiro grande insight de Jacobs foi perceber que as cidades não são máquinas para se viver, mas organismos vivos. Futuros planejadores, dizia, devem pensar as cidades em sua complexidade. Mas se uma cidade é um ser vivo, ela também pode morrer, e o segundo grande insight de Jacobs foi perceber que cidades são espécies que se autopropagam. Injetar dinheiro indiscriminadamente em uma cidade é como enfiar um tubo de alimentação goela abaixo de um doente terminal: pode impedir que ele morra, mas dificilmente vai ajudá-lo a se levantar da cama. A melhor forma de estimular a economia de uma cidade é livrá-la dos obstáculos arquitetônicos, governamentais e econômicos que impedem as pessoas de levarem seus empreendimentos pessoais e coletivos adiante.
Jacobs inicia seu estudo urbano no nível do quarteirão, utilizando seu pedaço da rua Hudson como laboratório. Com uma visão aguçada e muito bom senso, ela descreve como um quarteirão bem sucedido atrai usuários diversificados, não só residentes, mas comerciantes e visitantes de outras áreas da cidade, que acabam por cuidar uns dos outros. Quando funciona, um quarteirão de sucesso é o cenário para o intricado balé no qual os dançarinos têm papéis diferentes que reforçam milagrosamente uns aos outros, e compõem o todo. O balé de uma boa calçada nunca se repete e está sempre repleto de improvisações. Num bom quarteirão, as ruas devem ser curtas, com calçadas amplas, com prédios novos e antigos, e ter uma variedade de negócios que atraia uma diversidade de residentes e comerciantes.
As ideias contidas em Morte e Vida de Grandes Cidades são tão sensatas, em sua promoção da diversidade e da tolerância, que é fácil esquecer que, enquanto as habitações sociais de Moses eram socialmente problemáticas, também o eram os cortiços que elas substituíam. Por mais de um século, de 1840 a 1950, ondas de imigrantes vindos de toda parte do mundo desembarcaram nos bairros mais pobres de Nova Iorque. Esses imigrantes se dispunham a conviver com a criminalidade e a infestação de ratos porque, por piores que fossem essas condições, eram mais promissoras do que em seus países de origem e porque sabiam que seus filhos e netos poderiam deixar os guetos e se tornar parte da classe média americana. Isto aconteceu década após década, expandindo a base produtiva do país – até que, no final dos anos 1950, os empregos começaram a diminuir.
Em Morte e Vida, Jacobs não aborda os dínamos econômicos que engrandeceram Nova Iorque e cuja falência quase mergulhou a cidade na bancarrota. Se pararmos na leitura de Morte e Vida, poderíamos concluir que, enquanto Jacobs era uma planejadora visionária, ela pouco entendia de economia urbana. Talvez ela mesma tenha pensado isso, porque ela parece ter passado os anos seguintes estudando o assunto. Esse estudo prolongado resultou em dois livros, Economy of Cities (1969) e Cities and the Wealth of Nations (1984). É neles que Jacobs discute como grandes cidades como Nova Iorque podem renascer.
A história da reviravolta de Nova Iorque é sobretudo econômica. Depois de décadas de estagnação causada pelo declínio da indústria local, a cidade embarcou na onda da globalização, que demandava capital nas finanças, na mídia e no design de produtos de alta tecnologia. A ascensão dessas indústrias gerou uma economia de serviços efervescente, que absorveu novas ondas de imigrantes, e a cidade se tornou de novo um colosso mundial.
Mas por que uma cidade como Nova Iorque se recuperou quando uma cidade como Detroit, que tinha uma base industrial mais sólida, entrou em decadência? Para Jacobs, a resposta está na capacidade dos habitantes de uma cidade para inovar. As cidades crescem, segundo ela, por um processo que chama de substituição da importação. Isso ocorre quando comerciantes locais produzem, eles mesmos, os bens e serviços que costumavam importar. E então usam as habilidades obtidas com essa produção local para criar novos produtos, que podem exportar. Detroit, ela argumenta, começou como um porto de distribuição de farinha pelos Grandes Lagos. Logo, os fabricantes locais começaram a construir seus próprios barcos e ficaram tão bons nisso que começaram a fabricar navios. Isso não só trouxe dinheiro para os cofres locais, como foi a base da cultura de fabricação de motores, apropriada por Henry Ford quando ali fundou sua fábrica de automóveis.
A indústria automobilística, no entanto, foi tão bem sucedida que, com a maior inovação de Ford, a linha de montagem, passou a dominar Detroit de forma tão absoluta que não havia mercado local para mais inovações. E, como Jacobs aponta, foi só uma questão de tempo para que outras cidades (neste caso, no Japão) incrementassem as ideias de Ford e passassem a produzir carros melhores e mais baratos. The Economy of Cities previa o dilema que Detroit enfrenta hoje, de uma indústria automotiva moribunda, ultrapassada pelos competidores estrangeiros, que teve de ser resgatada pelo contribuinte americano para evitar o colapso.
Como Detroit, Nova Iorque começou como uma cidade portuária, mas seu principal subproduto foi um setor bancário robusto, que sobreviveu ao colapso da indústria na cidade. Mesmo quando Nova Iorque pediu ajuda financeira do governo em meados dos anos 1970, jovens empreendedores, muitos deles filhos e netos de imigrantes que um século antes viviam nos guetos, foram inventando novas maneiras de ter e financiar grandes empresas. Sim, os banqueiros não são flor que se cheire e recentemente o setor bancário precisou de uma ajuda financeira do governo maior que a indústria automobilística. Mas, queira-se ou não, Nova Iorque é hoje a grande cidade mais segura da América, com uma economia e uma diversidade cultural relevantes. Em grande parte porque soube reinventar suas atividades produtivas a partir de mecanismos de crédito diversos.
Isso nos traz de volta à loja GlassyBaby. Ao sair dali, tinha certeza de que Jane Jacobs teria concordado comigo que a loja era uma triste nota de rodapé sobre o que havia se tornado o seu bairro. Uma loja inteira dedicada a porta-velas? E depois, haveria uma loja que só vende bandeirolas tibetanas? Um petshop especializado em brinquedos mastigados orgânicos? Agora, vejo que estava errado, principalmente porque eu, que tenho a mente menos sutil que a de Jacobs, deixei que meus preconceitos pessoais me influenciassem.
Apesar do que Jacobs poderia pensar da GlassyBaby, ela teria visto a loja de outra forma: um negócio pequeno, especializado, que traduz suas teorias econômicas. De acordo com o seu website, a GlassyBaby teve inicio quando sua fundadora lutava contra o câncer e encontrou alívio nas velas que espalhava pela casa. Ela logo começou a fazer seus próprios porta-velas e a distribuí-los, primeiro como presentes para amigos e depois vendendo a desconhecidos. O mercado para o produto se revelou tão forte que ela ensinou outros sopradores de vidro a fazer glassybabies e abriu outras lojas. Em 2009 o CEO da Amazon comprou 22% da jovem empresa.
Como Jacobs descreve, uma pessoa esperta e criativa adaptou um produto importado a suas necessidades, contratou outras pessoas para ajudá-la a produzir e vender, e agora tem suporte financeiro para exportá-lo a outras cidades. A proprietária da GlassyBaby, com nada mais que um pouco de vidro colorido e uma boa ideia, criou dinheiro e empregos onde eles não existiam antes.
Michael Bourne
Escritor, articulista da revista The Millions e professor da Fordham University. Vive no Brooklyn, em Nova Iorque.
Ross Racine
Artista, trabalha com desenho digital e construção de paisagens imaginárias. Vive entre Montreal e Nova Iorque.
Como citar
BOURNE, Michael. Jane Jacobs revisitada. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 4, p. 39-41, set. 2011.
Tradução de Fernanda Regaldo e Roberto Andrés.