JARDIM
PRODUTIVO
Texto de Fernanda Regaldo
Luzia, Raquel, Baiano e Lindaura se espremem entre os primeiros passageiros das linhas 328 e 1780. Apesar das enormes sacolas que carregam, ninguém reclama. Os agricultores do Jardim Produtivo já são conhecidos nos ônibus em que circulam toda manhã de segunda-feira para garantir que as seis escolas municipais com as quais assinaram contrato receberão as verduras da semana. Os motoristas os cumprimentam e param fora do ponto. Os trocadores dão uma mãozinha com as sacolas.
O Jardim Produtivo começou suas atividades em 2008 quando algumas ONGs, em parceria com a prefeitura de Belo Horizonte, estabeleceram no terreno de 3.500 metros quadrados pertencente à prefeitura o que seria um projeto piloto de hortas urbanas. Vinte e sete famílias do entorno participaram do curso de capacitação que deu início à horta. Hoje os agricultores do Jardim Produtivo são dez: além de Luzia, Raquel, Isaías (o Baiano) e Lindaura, ali lavouram também Cassandra, Jair, Dario, Brígido, João Bosco e João de Deus. Quase todos são aposentados ou pensionistas.
As hortaliças são vendidas a um preço único: R$1, tanto para os vizinhos quanto para as escolas. Assim como nas hortas caseiras, reinam soberanas as couves, resistentes nos canteiros e certeiras na gastronomia – o oposto dos pimentões, que quase ninguém consegue plantar e que não gozam de tanta unanimidade à mesa. Entre os clientes da vizinhança, os produtos mais disputados são quiabo e taioba. É somente nos casos de entregas a domicílio (feitas por Baiano com o carrinho de mão) que os preços sobem, chegando a R$2. A demanda, segundo os agricultores, é sempre grande. O que falta é mão de obra. O trabalho na horta é pesado e é difícil encontrar quem se disponha a fazê-lo. “O povo é preguiçoso”, eles concluem, unânimes no julgamento.
A partir de 2010, os agricultores que antes compartilhavam plantio e colheita optaram por um esquema de canteiros individuais. “Ninguém mexe no canteiro do outro”, conta Dona Luzia, explicando que, dessa forma, evitam desentendimentos. Apesar de não haver hierarquias oficiais, Dona Luzia é a administradora geral da horta, descrita pelos outros como “chefe” ou “microempresária”. É ela quem emite notas fiscais, paga as contas e resolve problemas práticos de toda natureza. De olhos claríssimos e pele escura, Dona Luzia tem uma beleza forte, um pouco oriental. Mas o filho reclama que ela anda feia: segundo ele, o trabalho com a horta a deixa descuidada. Dona Luzia, rindo, diz que não liga.
As verduras de segunda-feira são entregues até 9:30 da manhã, horário em que as cantineiras começam a preparar as refeições. O material para a merenda nas escolas municipais é fornecido pela prefeitura. As folhas, no entanto, por serem muito perecíveis, são compradas diretamente pela escola. “As escolas daqui compram, por semana, mais ou menos 30 molhos de cebolinha e salsinha, 100 molhos de couve, 100 pés alface, 30 de almeirão e 20 de acelga e couve chinesa”, calcula Dona Luzia.
Em Minas Gerais, é comum se referir à capital do estado como Cidade Jardim. Sites oficiais, blogues amadores e apresentações de PowerPoint anônimas enaltecem a arborização da cidade com fotografias, atuais ou antigas, que raramente deixam de incluir ficus, quaresmeiras ou ipês, por mais que a cidade registre recordes em derrubadas de árvores (foram mais de 11,3 mil em 2011) e tenha perdido cerca de 62,5% de suas áreas verdes nos últimos 15 anos.
O conceito de Cidade-jardim nasceu na Inglaterra, nos mesmos anos em que, sobre os escombros de um vilarejo de nome Curral Del Rey, erguia-se a nova capital das Minas Gerais, uma das primeiras cidades planejadas do Brasil. Ebenezer Howard, idealizador das Cidades-jardim, propunha um modelo urbanístico em que a autossuficiência alimentar das cidades seria garantida por cinturões verdes que também fariam uma integração entre os modos de vida urbano e rural. As Cidades-jardim de Ebenezer teriam 32 mil pessoas, cujas vidas seriam organizadas sobre 2.400 hectares em círculos concêntricos, controlados e ajardinados.
Howard divulgou suas propostas um ano depois da inauguração de Belo Horizonte. A nova capital, em cujo desenho estavam previstas zonas de sítios e chácaras e colônias agrícolas, concretizava um projeto modernizante que não era, segundo o arquiteto e historiador Tito Flávio Aguiar, exclusivamente urbano-industrial. A elite mineira era essencialmente agrícola, assim como boa parte da população do Estado, e para um povo arraigado à terra, a nova modernidade se traduziria igualmente nos plantios. Belo Horizonte havia de se tornar referência também na agricultura.
Planejada para comportar 100 mil pessoas em seu centenário, a capital viu um crescimento acelerado e inesperado, remodelando-se de fora para dentro. Seus subúrbios, que nasceram das chácaras e colônias agrícolas, transformaram-se em aglomerados superpopulosos que abrigavam, paradoxalmente, cada vez mais gente vinda do campo – enquanto os campos no estado, esvaziados, sucumbiram às monoculturas, sobretudo de eucalipto. O progresso chegou, à sua maneira, extrapolando os planos – e no centenário, em 1997, os habitantes já rondavam a casa dos 2 milhões.
A agricultura urbana de microescala sempre existiu, na maioria dos casos sem nenhum planejamento, tanto em Belo Horizonte quanto nas outras cidades brasileiras, em latas, vasos, bidês, bacias, lajes ou lotes vagos em zonas pouco regularizadas. Os agricultores do Jardim Produtivo gostam de repetir uma anedota que aponta para a relação, sempre intricada, entre o formal e o informal: “Isso de agricultura urbana, nossos pais já faziam”.
Apesar do plantio persistir na cidade, os quintais e hortas de periferia vêm sucumbindo ao adensamento e a um modelo urbano-paisagístico de aridez, sufocados, em suma, pelo mercado imobiliário e pelo gosto, um tanto duvidoso e estranhamente unânime, pelo cimento. Levantamentos da prefeitura apontam que quase 2/3 do território da capital tem taxas de impermeabilidade superiores a 51%, sendo que, em quase 1/5 da área da cidade, esse índice supera os 71%. Paralelamente, a população dessas periferias tem cada vez menos acesso a alimentos não processados.
Belo Horizonte e algumas grandes cidades como São Paulo e, mais recentemente, João Pessoa, contam com leis ou programas de agricultura urbana, mas não há normativas que obriguem o poder público a se comprometer ou a incentivar ações isoladas. Na maioria dessas cidades não há ações propositivas, faltam linhas de incentivo financeiro e sobra burocracia para o uso consentido de terrenos públicos.
O Jardim Produtivo é um dos poucos exemplos de horta comunitária em Belo Horizonte e o único, junto com a vizinha Vila Pinho, a contar com apoio da prefeitura, que arca com despesas de água, luz e alguns insumos e fornece assistência técnica. Através da Secretaria Municipal Adjunta de Segurança Alimentar e Nutricional (SMASAN), a prefeitura supervisiona também cerca de 170 outras hortas, a maioria em escolas e asilos, cuja função, escala e envolvimento da comunidade, no entanto, são diferentes.
Outras hortas comunitárias na cidade se organizam sem autorização ou até mesmo em confronto com a prefeitura (como no caso das hortas na ocupação Dandara, cuidadas por Dona Fátima, ou da Vila Acaba Mundo, sob responsabilidade de Seu Antônio, onde ronda a constante ameaça de despejo), o que faz com que tenham poucas garantias em relação a futuras colheitas. Quase todas têm cultivos oscilantes, dificuldades de organização e pouca aderência de agricultores, tendendo a precisar, mesmo que parcialmente, de apoiadores externos como ONGs e movimentos sociais.
No segundo andar espartano de um edifício no centro da cidade, entre divisórias bege, Caio Vieira, engenheiro agrônomo da pequena equipe da Gerência de Apoio à Produção e Comercialização de Alimentos da SMASAN, explica que a agricultura urbana encontra grandes obstáculos. O primeiro é a própria constituição de grupos de pessoas dispostas a cultivar.
Caio acredita que hortas comunitárias seriam de grande benefício para os moradores da cidade e para a própria prefeitura, uma forma ideal de controlar a expansão urbana. Uma política forte e consistente de hortas urbanas, ademais, poderia se tornar um instrumento importante para fazer valer a função social da propriedade.
Cerca de um ano depois de Luzia e seus companheiros darem início a seu Jardim Produtivo, uma outra agricultora começava a transformar seu jardim nos Estados Unidos. Inexperiente, ela se perguntava se teria sucesso com o cultivo e até mesmo se não estaria cometendo infrações por plantar em terreno público. Mas suas colheitas têm sido fartas, sua família se alimenta com o que é produzido ali e sua horta habita páginas de revistas, jornais e livros – o que ela mesma escreveu tornou-se best-seller. Em 2012, seu marido foi reeleito presidente.
Michelle Obama conta em seu livro American Grown que a mãe, ainda pequena, ajudou a família no cultivo de um Victory Garden do bairro. Os Jardins da Vitória eram hortas de cultivo coletivo (em lotes públicos) ou individual (em quintais) que cidadãos, nos Estados Unidos e na Europa, foram incentivados a plantar nos anos entorno às duas guerras mundiais, para garantir alimentos frescos em áreas urbanas. Muitos jardins coletivos ainda existem em cidades europeias (em certos casos, há filas de espera de anos para um naco cultivável de terra), mas os Victory Gardens praticamente desapareceram nos Estados Unidos, apesar de já terem chegado a produzir, em 1943, cerca de 40% das frutas e verduras consumidas no país.
Apesar de Barack Obama ser acusado de conduzir uma política ambígua na agricultura (com o apoio a pequenos agricultores dividindo a cena com inúmeras facilitações para produtos geneticamente modificados e para o agronegócio), a horta da primeira-dama é um marco simbólico importante no que diz respeito à alimentação e ao tempo livre num país assolado pela obesidade e pelos shopping centers. Montada com apenas US$ 200, na frente de casa, ela sugere a reinserção da agricultura como prática social.
Mundo afora, afloram exemplos de como o poder público começa a entender o cultivo como forma de repensar relações entre cidadãos, cidade e natureza e, inclusive, cidade e campo. Além de gerar espaços de lazer e encontro e alimentos saudáveis, a agricultura urbana tem um impacto menos agressivo de expansão sobre áreas verdes remanescentes nas cidades. Ela também pode diminuir impactos ambientais causados pelo transporte de alimentos produzidos fora e, em última instância, transformar o modelo de produção vigente, aliviando a demanda nos campos e apontando para modelos de maior diversificação.
Em Londres, o prefeito Boris Johnson, do partido conservador, aliou-se a uma ONG para mapear e tornar públicos, através de um sistema online que pode ser alimentado pelos próprios usuários, pontos de cultivo urbano coletivo ou terrenos disponíveis para esse fim. O objetivo do projeto era ter 2012 hortas até 2012, ano das Olimpíadas. Foram registradas 2024 e o prefeito afirma que hoje há 50 hectares de terra na cidade onde crescem frutas e hortaliças – ou mato, porque, assim como as pessoas, as hortas são difíceis e inconstantes.
Em Vancouver, o prefeito Gregor Robertson também estabeleceu uma meta: 5.000 hortas comunitárias até 2020. Em Nova Iorque, onde mais de 500 hortas e jardins comunitários já contam com o apoio da prefeitura, o prefeito Michael Bloomberg solicitou à sua equipe que mais áreas públicas subutilizadas e cultiváveis fossem mapeadas e disponibilizadas aos cidadãos. Por mais que a maior parte dos terrenos disponíveis para o cultivo esteja nas bordas dos centros urbanos, o incentivo à agricultura inclui também regiões centrais e bairros de classe média.
Em Seattle, o primeiro parque público com paisagismo inteiramente comestível está sendo implantado a menos de 4 km do centro da cidade. O parque, de 28.000 metros quadrados, foi planejado com a comunidade local, que pôde palpitar sobre suas espécies preferidas e que participa ativamente das discussões e do plantio. A organização de grupos de pessoas é tão fundamental para a formação de hortas nas cidades quanto os incentivos públicos em suas mais variadas formas.
Em Todmorden, na Inglaterra, frutas e verduras plantadas em canteiros públicos por moradores voluntários passaram a fazer parte do paisagismo urbano de toda a cidade. Em São Francisco, uma das mais importantes experiências de agricultura urbana é auto-organizada e acontece bem no meio da cidade, no local onde antes houve um viaduto que foi demolido. Em várias cidades espanholas, como Madri ou Sevilha, onde a volta das hortas está fortemente associada à crise econômica que aflige a Europa (e acontece graças, em parte, à estagnação do mercado imobiliário), associações de todas as classes juntam-se para cultivar em seus próprios bairros, o que garante produtos mais saudáveis e, quase sempre, mais baratos.
No Brasil, a agricultura urbana tende a ser inserida em discussões e programas voltados à segurança alimentar. As ainda escassas ações de alcance nacional são promovidas pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e surgiram com o Fome Zero.
Um dos pensamentos que orientam essa abordagem aponta para uma questão fundamental: a falta de acesso da população mais vulnerável a alimentos frescos e de qualidade. Mas há divergências internas, sobretudo no que diz respeito à intensificação da produtividade e à subsequente venda em mercados especializados nos quais os produtos adquirem valor por serem livres de agrotóxicos e produzidos localmente. A venda dos produtos fora das comunidades em que são produzidos não resolveria o problema do acesso dos mais pobres a alimentos de qualidade. Outra questão levantada é a substituição de produtos tradicionais e culturalmente relevantes por produtos com maior saída de mercado. Por outro lado, a profissionalização da agricultura urbana e seu incentivo como atividade financeira rentável poderiam torná-la mais atraente para potenciais agricultores – e aumentaria, talvez, o número de pessoas interessadas em cultivar na cidade.
Assim como a maior parte dos agricultores do Jardim Produtivo, Dona Luzia, que já trabalhou em casa de família, lanchonete, cartório e restaurante, trabalha por prazer, apesar de complementar a renda de pensionista de forma considerável (ela calcula que seu faturamento chegue a cerca de R$1.000 por mês) com a venda de hortaliças. “Já trabalhei demais da conta. Mas o melhor trabalho é este aqui!”. O Jardim Produtivo se estabelece também como um respiro em meio à cidade, propondo um modelo de produção, abastecimento e acesso que remete a outros tempos e lógicas.
Mas se a agricultura urbana ainda é promovida de forma insuficiente e errática no âmbito da assistência social e das políticas de incremento de renda no Brasil, ela é ainda mais ausente em outras esferas como o planejamento urbano, o meio ambiente, a saúde e a qualidade de vida nas cidades. Nesse sentido, a abordagem praticada reflete, por um lado, uma situação social mas também reproduz, por outro, vícios sociais vigentes e enraizados. A população de classe média, por exemplo, raramente se inclui no debate, o que repercute na inserção geográfica das hortas urbanas, quase exclusivamente nas periferias. (Entre os poucos exemplos de auto-organização espontânea entre a classe média estão hortas relativamente pequenas como a Horta das Corujas e a Horta do Ciclista, esta última em plena Avenida Paulista, em São Paulo.)
No modelo de progresso que domina o imaginário brasileiro dificilmente encontra-se espaço para a produção local de alimentos e os pequenos cultivos. O êxito desse modelo traz, além de automóveis, cercas elétricas e comida industrializada para todos, a celebração de um outro estilo de vida. A natureza assume um papel particularmente simbólico nesse sentido, enquanto natureza dominada – ou, quase sempre, devastada –, alimentando um paisagismo um tanto estéril de arbustos obsessivamente aparados e palmeiras ornamentais. Ou, em outra escala, de quilômetros de extensão de soja, cana ou eucalipto.
Nesse contexto, é interessante notar que a atual presidenta só é vista nos 344.000 metros quadrados do jardim do Palácio da Alvorada em suas ocasionais caminhadas de emagrecimento, acompanhada do personal trainer. E que naquele mesmo jardim, em 2004, a última primeira-dama, Marisa Letícia, lançou mão de um projeto paisagístico não menos simbólico que o de Michelle Obama. Mandou plantar sobre a grama uma estrela de cinco metros de diâmetro, preenchida com sálvia vermelha, aludindo ao partido do marido – ou, talvez inadvertidamente, às monoculturas que fazem brilhar o país, conferindo-lhe o recente título de maior produtor mundial de soja.
O jardim de Dona Luzia também não é produtivo. Ou não mais. Moradora de seu bairro há cerca de 20 anos, Dona Luzia nasceu em Barra de São Francisco, no Espírito Santo, onde já plantou de tudo. Também já plantou muito no quintal de casa. O filho, no entanto, preferiu cobri-lo com uma boa camada de cimento e cerâmica, destino que coube a grande parte dos quintais da vizinhança. É por isso, ela acredita, que os produtos da horta são tão procurados.
Fernanda Regaldo
Editora da PISEAGRAMA.
Como citar
REGALDO, Fernanda. Jardim produtivo. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 6, p. 41-44, abr. 2013.