JARDINS
COMESTÍVEIS
Texto de Fritz Haeg
O gramado frontal está tão profundamente incorporado na psyche norte-americana que nem o enxergamos mais, pelo menos não aquilo que ele realmente é. O que significa aquela separação entre a casa e a rua? Por que o gramado está lá? Ou melhor, por que não tem nada lá?
Cresci cercado por grama. Esse é um fenômeno norte-americano comum. Talvez seja essa a primeira experiência que temos na infância com alguma coisa viva, em crescimento: uma superfície gramada aparada. Como as ideias de uma criança sobre o que é “natural” são afetadas por isso? Claro que não há nada de natural num gramado, que é uma paisagem industrial disfarçada de material orgânico.
Quando adolescente, passei muitas tardes de fim de semana cortando grama. Eu adorava. Quanto maior a grama, maior a minha satisfação ao passar sobre ela e revelar a superfície aparada e novinha em folha, com aquele cheiro fresco. Suponho que a maior parte da minha juventude ao ar livre tenha se passado na grama. Ela é o primeiro elo defensivo entre a família unida e o resto. É a fronteira que mantém, física e psicologicamente, o mundo selvagem, a cidade e os estranhos a uma distância segura.
Na Inglaterra
O gramado teve as suas raízes na Inglaterra e é a base para qualquer paisagem inglesa típica. Apesar da repressão artificial a outras plantas, um gramado bem aparado até faz algum sentido na Inglaterra, onde a garoa é frequente e o clima é frio. Animais pastavam, vários jogos aconteciam no gramado e o mundo selvagem havia sido civilizado e evitado pela linha precisa onde a grama acabava.
O gramado frontal nasceu da vaidade e da decadência, sob o pressuposto de que a terra fértil era infinita. O proprietário de terras inglês, no período tudoriano, mostrava sua vasta riqueza deixando de plantar comida na fértil e altamente visível propriedade em frente à sua residência. Ao invés disso, esse vasto espaço de terra se tornava palco para um verde ornamental, por meio do qual ele podia apresentar sua enorme casa.
Para o proprietário de terras inglês, a expansão do verde sinaliza saúde e poder. Estou convencido de que essa obsessão com o gramado é um fenômeno quase inteiramente masculino. É uma poção tóxica de sedução, agressão e dominação masculina. Seja com a intenção de atrair um par, de demonstrar riqueza, de impressionar os amigos ou de controlar toda a extensão de natureza em volta, o gramado está coberto com as digitais de tendências masculinas.
Já que a terra fértil em frente da propriedade se transformou em monocultura estéril, onde é que o cultivo de alimentos acontece? Fora da vista, é claro, escondido numa área remota da propriedade, onde os visitantes e o dono da terra nunca o verão. É provável que venha daí a noção de que plantas que produzem alimentos são feias e não devem ser vistas. Hoje essa ideia já se sustenta sozinha numa escala industrial global, com os produtos que consumimos sendo cultivados do outro lado do planeta. A única paisagem digna dos olhos do público é aquela constituída de ornamentos aparados a 2 centímetros de vida, que, inóspitos para outras criaturas, nunca mudam com as estações e, por isso, são sempre os mesmos.
O nascimento do sonho americano
Mesmo que você nunca tenha visto a propriedade Monticello de Thomas Jefferson nas montanhas da Virgínia, você talvez saiba bem o que é. Ela ainda é o protótipo do lar americano. Pode-se encontrar suas características principais em muitas construções contemporâneas: janelas paladianas, um pórtico com colunas brancas, fachada de tijolos vermelhos e um vasto gramado que domina a paisagem em volta. A casa de Jefferson é intrínseca à tradição das propriedades inglesas. Senhora de si, ela vistoria – afastada da floresta e ancorada no gramado – a ilusão de independência absoluta, que ainda influencia as fantasias imobiliárias dos americanos.
Jefferson teve um caso de amor muito bem documentado com sua horta, que estava mais para uma pequena fazenda doméstica. Ele mantinha um diário detalhado de seu cultivo e evolução ao longo das estações e dos anos e devotava a ela atenção e cuidado. E, ainda assim, onde ele a colocou? A casa é claramente o foco do local, no alto da montanha e no centro de todo poder. Mas sua amada horta está escondida da visão, de lado, descendo levemente a montanha. O gramado e os canteiros de flores estão dispostos em suaves curvas decorativas, um adorável complemento para a casa, feito obviamente para o prazer.
A horta escondida, por sua vez, é disposta num canteiro longo e estreito, onde, divididas por grades, culturas convergidas organizam-se em fileiras. Com aquela divisão binária entre prazer ornamental estéril e produção pragmática reclusa, Jefferson reforçou uma atitude – ainda vigente hoje em dia – com relação à paisagem nacional. Implantem o gramado e escondam o cultivo! Dada a influência inicial de Monticello, como os bairros americanos seriam hoje se Jefferson tivesse decidido plantar seus alimentos em frente à casa?
As guerras mundiais deixaram muitas fazendas em más condições nos Estados Unidos. O governo federal criou então uma campanha para encorajar americanos a cultivar seus alimentos em suas propriedades. Primeiramente chamados de Jardins de Guerra e, mais tarde, de Jardins da Vitória, eles rapidamente se tornaram populares por todo o país. No final da Segunda Guerra Mundial, 80% das donas de casa americanas estavam cultivando alguns de seus próprios alimentos. Meses depois do Dia da Vitória, essa atividade diminuiu rapidamente. Com seu desaparecimento, lá se foram, entre a maioria dos americanos, os conhecimentos sobre como cultivar seu próprio alimento.
Hoje podemos ver algumas evidências de como seria uma vizinhança de jardins da vitória nos Schrebergärten alemães. Esses jardins comunitários foram desenvolvidos como um programa social na Berlim do século XIX. Terrenos em cinturões verdes na periferia da cidade foram concedidos aos residentes como oportunidade de fazer curtas viagens até os jardins de cultivo de flores ou alimentos para um descanso dos confinamentos de suas vidas urbanas.
Em cada terreno, era construída uma pequena cabana, e muitos acabaram mudando para esses pequenos abrigos depois que a cidade foi bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial. Visitar esses jardins, que ainda podem ser encontrados em toda a Alemanha, é como pisar tanto num passado agrário quanto num futuro utópico. Cada quintal é uma mostra diversa e abundante do cultivo de alimentos. A maioria dos jardins está meticulosamente podada e mantida numa extensão tal que parece claro que não se trata apenas de sobrevivência – eles também existem para serem jardins deliciosamente agradáveis. Nessa incrível vizinhança de jardins, quadrantes modestos são subservientes à terra que alimenta os residentes.
De volta aos Estados Unidos: a introdução do lazer nos fins de semana, a abundância de água fresca, a produção de pesticidas industriais, a disponibilidade do cortador de grama e de gasolina barata e a ampliação do acesso à casa própria com os novos avanços na moradia suburbana nos anos 1940 e 50 resultaram no gramado americano como o conhecemos hoje.
Retrospectiva e previsão
Saindo de uma depressão e duas guerras, nossos antepassados tinham todo direito de celebrar o conforto e as conveniências do progresso industrial. As compras a longo prazo e uma fé cega na capacidade de resolver problemas criaram a sensação de que as coisas só podiam melhorar. Esse é um otimismo que não temos no momento, agora que estamos chegando a um impasse com os limites de nossos recursos e terra. Como queremos ocupar o espaço que já reclamamos? Por que dedicamos tanta terra a um espaço que tem muito menos função, requer tantos recursos preciosos e horas infindáveis de manutenção, além de contaminar o ar e a água?
O gramado frontal americano é agora quase inteiramente simbólico. O drama e o espetáculo da aristocracia inglesa degeneraram-se em enfeites brandos para a nossa expansão suburbana sem fim e para a nossa alienação. A monocultura de uma só espécie que cobre nossos bairros celebra a homogeneidade puritana e uma conformidade estúpida. Um gramado ocasional para recreação pode ser uma delícia, mas a maioria deles só é ocupada quando está sendo cortada. O gramado de hoje se transformou numa superfície padrão para nosso espaço privado defensivo. Se você não sabe o que colocar lá, plante grama e continue regando.
Nos Estados Unidos planta-se mais grama do que qualquer outra espécie: os gramados atuais cobrem mais de 30 milhões de acres. Dada a maneira como esbanjamos recursos preciosos, já que os colocamos em qualquer lugar onde haja humanos, alienígenas que aterrissassem em qualquer cidade americana acreditariam que a grama é a substância terrena mais preciosa de todas.
Só que a grama devora recursos e polui. Ela é incansavelmente acertada por aparadores e cortadores, cujos motores de dois pistões são responsáveis em muito pela emissão do gás que agrava o efeito estufa. Na presença da luz do sol, os hidrocarbonos dos aparadores reagem com os óxidos de nitrogênio e produzem ozônio. Para erradicar plantas invasoras, a grama é entupida de pesticidas e herbicidas, que escorrem em seguida para os nossos lençóis freáticos graças ao uso de mangueiras e aspersores. Isso acaba com nossos recursos de água, que já não são muitos.
Enquanto isso, é em lojas que confrontamos nossa comida. Frutas manipuladas e vegetais embalados em plástico e isopor são cultivados não pelo seu sabor, mas por sua aparência, uniformidade e facilidade de transporte. E químicos são jogados sobre eles para que sejam controladas as doenças e as pestes características de um ecossistema desequilibrado.
Os produtos de um jantar padrão americano são transportados de caminhão por, em média, 2.500 quilômetros até chegarem à mesa. Não sabemos a origem de nossas frutas e vegetais, nem quem as cultivou. Talvez tenhamos nos esquecido de que as plantas eram as responsáveis pela refeição produzida em série que estamos consumindo. Esse descolamento da fonte de nossa comida cria uma atitude descuidada acerca do nosso papel de guardiães da terra que nos alimenta.
O jardim começou atrás dos muros, uma trégua, um compromisso entre as necessidades humanas e os recursos naturais. Na maioria das línguas a palavra “jardim” deriva de “recinto”. As paredes do jardim protegeriam o cultivo humano dos perigos selvagens nas extensões indomadas. Agora que um mundo selvagem intocado pelos seres humanos não existe mais, as paredes do jardim caíram. O recinto, espaço cultivado protegido atrás da casa, não é mais um modelo que vale a pena. A rua inteira deve ser vista como um jardim e, por extensão, toda a cidade que estamos criando. Nós interferimos em todos os níveis de função ambiental e, sem muros restantes, temos que cumprir o papel de jardineiros planetários.
Jardins comestíveis
O projeto Jardins Comestíveis propõe a substituição do gramado frontal por uma paisagem comestível altamente produtiva. O alimento cultivado em nossos jardins nos conectará com as estações, com os ciclos orgânicos da terra e com nossos vizinhos. O espaço banal e sem vida de grama uniforme em frente à casa será substituído pela abundância caótica da diversidade. Ao nos tornarmos jardineiros, reconsideraremos nossa conexão com a terra: o que tiramos dela, o que colocamos nela. Cada horta-jardim será uma expressão única de sua localidade e dos desejos de seus habitantes.
Nossa rua
Os Jardins Comestíveis servem de provocação à rua. O que acontece quando nós compartilhamos uma rua com esses jardins? Os jardineiros de hortas frontais tornam-se artistas de rua para nós. Ao saírem pela porta a fim de cultivar suas plantas, eles instauram um ritual diário para os vizinhos. Nós os conhecemos melhor do que àqueles que têm gramados. Conversamos com eles sobre como suas plantas estão indo. Eles geralmente podem comer tudo o que estão cultivando e, assim, nos oferecem a última colheita de tomates ou abobrinha. Mudamos de caminho só para passar perto da horta e ver o que está acontecendo. O simples fato de ver uma horta crescendo já tem efeitos profundos. Quando observamos as sementes brotarem, as plantas amadurecerem e uma fruta ser produzida, não podemos fugir, acabamos nos envolvendo. Tornamo-nos testemunhas e, a partir de então, cúmplices e parte de uma história.
Nossos vizinhos
O que acontece quando um Jardim Comestível não é bem recebido pelos vizinhos? Por que algumas pessoas se sentem ameaçadas por ele? Anarquia, roedores, desvalorização fundiária, expressão singular, natureza indomada, plantas feias e o seu aspecto no inverno são algumas das razões dadas. Paira ainda um senso geral de que os jardineiros do projeto tenham infringido alguma lei desconhecida de decência. O gosto do público ainda é a favor da conformidade quando o assunto é o jardim frontal. E qualquer tipo de desvio da norma aponta um lapso social, para não dizer moral. A aparição abrupta desse tipo de horta numa rua de gramados infinitos pode ser surpreendentemente chocante, mas, depois que os vizinhos observam-na crescendo, eles costumam voltar. Eventualmente as ameaças evocadas por essa intrusão selvagem na vizinhança podem ser catalisadoras de questões. Quão distantes estamos do centro de nossa humanidade para o ato de cultivar nosso próprio alimento ser considerado rude, inconveniente, ameaçador, radical e até mesmo hostil?
Nossa comida
No processo de criação dos Jardins Comestíveis, encontrei algumas reações interessantes das pessoas na rua. Algumas achavam um tanto estranho ingerir algo que tivesse crescido em sua própria horta. Paradoxalmente, a maioria de nós não pensa duas vezes antes de comer algo cultivado em circunstâncias altamente misteriosas do outro lado do mundo. O que você não conhece não pode te fazer mal – o que os olhos não veem, o coração não sente. O ato de comer é o momento em que estamos mais intimamente conectados com o mundo ao nosso redor. Ingerimos matéria terrestre que cresceu ao longo de ciclos orgânicos e ambientais que se repetem o tempo todo. Nós somos os recebedores finais de estrume, corpos em decomposição, chuva e evaporação, radiação solar e assim por diante. O que acontece quando a fonte de nosso alimento está distante e escondida de nós? Ao transportar alimentos por longas distâncias, nós poluímos e gastamos uma energia preciosa. Contudo, mais importante do que isso, talvez seja o fato de perdermos a evidência visível de nosso humilde lugar na grande cadeia alimentar.
Nosso tempo
É fácil romantizar jardinagem e produção de alimentos quando a sua vida não depende do que você é capaz de cultivar. Um Jardim pode dar muito trabalho! Uma horta com pouca manutenção pode ser cheia de árvores frutíferas e perenes, caso estejam bem adaptadas a seu clima, mas uma horta frontal mais ambiciosa deve ser cheia de vegetais anuais e ervas que vão mudando a cada estação. De qualquer maneira, todo cultivo demanda uma certa quantidade de tempo e dedicação. Temos tempo suficiente para cultivar nossos próprios alimentos? Talvez uma pergunta melhor seja: como queremos gastar o pouco tempo que realmente temos? Que tal ficar lá fora com a nossa família e amigos, em contato com nossos vizinhos, enquanto assistimos com satisfação as plantas que estamos cultivando começando a produzir o alimento mais saudável da região? Vai ficar mais difícil defender o tempo que passamos sentados em nossos carros ou assistindo televisão.
E para aqueles que simplesmente não se importam, que tal se os gramados de ruas inteiras fossem entregues a equipes de agricultura urbana? Cada rua seria demarcada a partir de uma série de cultivos diversos. Os fazendeiros venderiam os produtos e dariam o que restasse às famílias cujos jardins eles estivessem cultivando. Quando comprasse uma casa, dependendo do seu gosto, você poderia decidir morar na avenida alcachofra, no círculo cítrico ou na estrada rabanete.
Nosso modesto monumento
O projeto Jardins Comestíveis não possui intenções convencionalmente monumentais; é uma intervenção relativamente pequena e modesta em nossas ruas. As hortas continuam a evoluir, mas elas estão apenas começando a ser plantadas. Com uma única estação de negligência, algumas hortas podem desaparecer completamente. Políticos, arquitetos, negociantes, cidadãos urbanos, todos nós desejamos monumentos permanentes que nos deem uma sensação de lugar e sobrevivam como um testamento duradouro para nós mesmos do nosso tempo. Estivemos aqui!
Esses monumentos têm o seu lugar, mas a capacidade de trazer alguma mudança mais significativa na maneira como vivemos é bem limitada. Uma horta pequena e bem modesta, com materiais simples e um pouco de esforço pode ter um efeito radical na vida de uma família: como as pessoas gastam seu tempo e se relacionam com o ambiente, quem elas encontram e como elas comem. Essa resposta local e singular aos problemas globais pode se transformar num modelo, pois pode ser adotada por qualquer pessoa em qualquer cidade do mundo, causando um impacto monumental.
Fritz Haeg
Arquiteto cuja prática inclui jardins, performances, design, instalações e projetos colaborativos. É autor de Edible Estates, publicado pela editora Metropolis Books.
Como citar
HAEG, Fritz. Jardins comestíveis. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 6, p. 30-37, abr. 2013.