JEROSY PUKU
Texto de Izaque João
Cerimônia do Milho Branco, fotografia de Gilmar Galache
Jakaira ojaty jave he’i aiporami he’i: eretyarõ arã aiporupi he’i, nderekuarã ha ereikuaa va’erã apyre’ỹ peve guarã he’i Jakaira [jakaira, no exato momento da plantação, disse: desenvolve como pode, mas seu futuro você sabe é infinito e assim vai ser] conta Luiz Aguja, xamã da aldeia Panambizinho. Muitas famílias tradicionais de Panambi e Panambizinho, em Dourados, Mato Grosso do Sul, relembram como era a organização dos Kaiowá no grande espaço do território conhecido por Ka’aguyrusu, bem como na vida cotidiana. As famílias recordam as festas de rituais importantes que reuniam grande número de pessoas, em diferentes locais, anualmente.
O tekoha guasu, o grande território onde os Kaiowá desenvolviam suas relações sociais, era coberto de mato verde (ka’aguy), com variados recursos para sua sobrevivência (caça, pesca, coleta, etc.). Rusu define o grande espaço sem barreira física que favorecia os Kaiowá a viverem de acordo com as leis do seu próprio sistema tradicional, fundamentado a partir das normas de parentesco e de aliança política. Isso significa que no período do Ka’aguyrusu, cada grupo de parentes era liderado por um grande xamã, sendo as unidades de espaço cobertas de vegetação variada. Para ter acesso a esse local e fixar o grupo, era necessária sua inspeção pelo líder espiritual, antes da ocupação, para constatar se o espaço era apropriado para morar e desenvolver suas atividades.
No entendimento dos líderes espirituais, as singularidades do mundo físico necessitam, inevitavelmente, de canto para continuar a sua existência para sempre, caso contrário, o mundo vai se acabando aos poucos. A atividade de agricultura no sistema kaiowá tradicional possui várias regras criadas desde o princípio de sua existência, sendo concebida como um conjunto de fenômenos dependentes da prática de rituais.
De acordo com a lógica do Kaiowá, a terra foi criada a partir da substância do xiru (bastão sagrado), o jasuka. No princípio da existência da terra, o nhanderu guasu entendeu que a terra necessitava ser sustentada pelo xiru. Desde então, o xiru ryapu guasu (divindade dona do xiru), com a sua inteligência, ordenou ao seu yvyra’ija um canto específico para cada fenômeno natural. Com essa exigência, o nhanderu guasu instituiu as regras relativas aos cantos referentes ao xiru e sua criação. Dessa forma, os Kaiowá entendem que os cantos compõem a própria estrutura do xiru ou kurusu e ele se expressa através dos cantos.
Porém, para o xiru se tornar um dos instrumentos fundamentais para equilibrar todas as espécies de fenômenos, é preciso ser alimentado pela reza, para continuamente retribuir de maneira adequada para os seres humanos. O xamã de Sucuri’y explica que os não-kaiowá acham que o xiru é apenas um pedaço de pau, mas para o Kaiowá é, na verdade, a personificação da divindade. O xiru se encontra na residência do xamã e se o rezador parar de cantar, o nhanderu guasu movimenta o xiru, deslocando-o levemente, causando um tremor de terra, chamado kaja’a nheoepenha ou outros fenômenos, como terremotos e maremotos.
O xiru ryapuguasu (dono do trovão) é aliado inseparável do nhanderu guasu, que deu àquele a responsabilidade de criar a superfície da terra, modelando-a com os elementos que compõe sua geografia, como mato, montanha e água. Esses elementos do espaço terrestre são interpretados pelos Kaiowá como pertencentes aos deuses, que possuem linguagens próprias e específicas de acordo com sua função no equilíbrio do espaço físico.
A divindade denominada jakaira, com sua sabedoria, criou o milho branco e os demais produtos agrícolas. No local que o jakaira escolheu para realizar a sua atividade agrícola, não foi necessário o uso de força física, pois o trabalho foi efetuado na base de reza. O milho saboró é uma planta retirada de uma das partes da vestimenta usada na cintura do jakaira, o ku’akuaha, do qual uma pequena parte se transformou, de maneira mágica, na semente do milho branco que, através da reza, germinou. Isso significa que, para o Kaiowá, o milho saboró, desde o princípio de sua criação, precisa seguir as mesmas etapas de trabalho, desde seu cultivo até a colheita, instituídas pelo jakaira: deve-se cantar para plantar, para ser protegido das pragas e, por último, na colheita, quando ainda está verde (avati kyry), para que possa ser consumido sem riscos para a saúde. Depois da colheita, o milho ainda precisa passar pelo jehovasa, quer dizer, uma “benção” realizada pelo xamã, para depois ser distribuído.
Essas regras precisam ser efetuadas com o objetivo de purificar o milho, para que se torne um alimento especial, extremamente importante para todas as divindades. A xíxa, ou jakairary, bebida feita de milho saboró, apropriada para todas as divindades, inclusive para o xiru, é denominada rekory (caldo do seu próprio corpo). Na concepção do xamã, o jakaira guasu e o jakaira mirĩ são os principais responsáveis pela reprodução de todos os seres que tenham vida, tanto é que, na parte introdutória da reza, invoca-se ytymby jasuka, substância de onde germinam todas as espécies de plantas.
De acordo com o mito kaiowá da criação, a primeira roça foi plantada pelo Jakaira. No dia seguinte, ele avisou Pa’i Tambeju que podia ir colher o milho. Este ordenou à sua filha que fosse buscar o milho, mas esta questionou, dizendo que não poderia estar maduro, uma vez que havia sido plantado no dia anterior. Jakaira voltou para dizer novamente ao Pa’i Tambeju que a roça estava pronta e este avisou sua mulher para que fosse colher o produto, mas, quando lá chegou, percebeu que o milho não estava maduro. Conforme a explicação do xamã, isso foi um castigo do Jakaira, pela desobediência da moça e é por isso que o milho demora cinco meses para ficar pronto para a colheita.
Todos os produtos agrícolas possuem um princípio de hierarquia, mas é através da representação do milho saboró, considerado um cereal sagrado, que se realiza o ritual jerosy puku. Todas as espécies de grãos tradicionais, como os feijões, são dependentes do desenvolvimento do milho saboró e do seu espírito jakaira. Outras espécies fibrosas (que tem um “fio” ou bagaço central – haviju – como a mandioca, moranga, abóbora, batata-doce e cana-de-açúcar) são dependentes da banana, que é considerada uma planta que representa itymbyry ruvixa.
O xamã compara o milho saboró a seu corpo. Cada parte do corpo representa uma parte do milho: a flor (ipoty) é a parte que enfeita o mbaraka (chocalho, instrumento inseparável no canto kaiowá,) e o ku’akuaha ou xumbe (faixa de algodão usada na cintura). O xamã ressalta que, após passar o ritual do batismo do milho, o consumo dos alimentos de milho ajuda as pessoas a incorporar a alma das divindades, dando força ao canto, em um sentido amplo, como por exemplo, para fazer chover.
Cada estação de ano necessita de um canto específico para que o tempo contribua, dando eficácia para todos os seres vegetais produzirem melhor. Em outro sentido, a reza e o conhecimento tradicional representam uma forma eficaz de proteger o grupo dos espíritos antissociais e, assim, torna-se uma estratégia política para o Kaiowá, através do poder espiritual.
O sistema mbyá guarani em relação à época de plantio se baseava no tempo de floração do tajy ou ipê, que servia como instrumento de alerta para iniciar o plantio do milho saboró, no mês de agosto. Outra planta nativa, denominada pelo Kaiowá como guembe, em seu período de maturação mais ou menos no final do mês de agosto, orienta o início do cultivo de outros produtos agrícolas. Dessa maneira, o cultivo de várias espécies agrícolas, iniciado no período certo e submetido ao jehovasa, é determinante para o seu desenvolvimento mais rentável.
Segundo os xamãs de Panambi, a maior parte do plantio de produtos agrícolas é feito baseado nas fases de lua, no canto dos pássaros e, sobretudo, no uso específico da reza. No caso, a reza é considerada como uma proteção para que as plantas não sejam atacadas por insetos e sejam protegidas contra os espíritos maléficos. Por exemplo: a mandioca é plantada na lua cheia; o porongo, quando canta o makamã (espécie do gavião), mais ou menos em outubro, e isso ocorre antes do sapo ou kururu cantar. Assim, é possível a renovação das espécies do mundo físico.
Para o Kaiowá, o milho e a mandioca são alimentos importantes para consumir acompanhados de todos os tipos de carne ou de peixes. A preparação dos pratos depende da arte das mulheres. Os derivados do milho e da mandioca, como hu’i (fubá grosso), hu’I tine (fubá de milho mais mandioca amolecida na água), xipa, tapopĩ (farinha de mandioca), pirekái (mandioca assada), mandi’o mimõi (mandioca cozida), entre outros, levados para a pescaria ou caçada, devem ser consumidos completamente durante o período destas atividades. Caso restar algum tipo de alimento, não é permitido trazer de volta para casa, pois, na concepção kaiowá, esse se torna contaminado pelos espíritos antissociais, não tendo mais condições de ser consumido. Portanto, nesses casos a sobra deve ser jogada fora antes de voltar para a aldeia.
Cada produto agrícola possui uma forma de consumo, para não provocar desequilíbrio social ou pessoal. Batata-doce, banana e abóbora, mesmo após o jehovasa, possuem a maneira certa de consumo: a batata só pode ser assada ou cozida na água, pois, se consumida de outra forma, aquela que ainda não foi colhida apodrecerá gradativamente na terra. A banana é outra espécie de alimento que não pode faltar na residência do xamã. O seu consumo de maneira adequada alimenta o corpo físico e a alma. É gostoso consumir banana assada, porém, o consumo só é permitido para pessoas de ambos os sexos que pararam de reproduzir. A banana assada ou cozida, consumida por jovens em idade reprodutiva, na mulher provoca ressecamento do leite materno e no homem provoca o nascimento de filhos em situação desnutrida, colocando a criança em risco extremo.
Os alimentos derivados de milho podem ser consumidos em todas as idades, mas o milho tiguéra ou avati are (aquele que nasce depois da colheita) não pode ser consumido pelas pessoas jovens de ambos os sexos, devido ao extremo risco para a reprodução humana, pois podem gerar filhos que não sobrevivem (ta’ýre ndahekói). Portanto, este milho só pode ser consumido pelas pessoas de terceira idade.
No sistema tradicional Kaiowá, as coisas materiais naturais possuem uma origem divina, ou seja, cada objeto pertence a uma determinada divindade. Cada época do ano, com seu clima diferenciado, é interpretada como um pilar da estrutura do mundo físico, os quais definem as regras sociais externas e internas do grupo, tais como: hábitos e comportamentos, a exemplo de tomar banho frio de madrugada, como forma de renovar o corpo e a alma, à semelhança do mundo físico que se renova ao final de cada inverno; ou estratégias políticas de relacionamento com os deuses, como uma reza específica para chamar a geada, para que esta termine de secar as plantas e, assim, haja condições de brotar novamente. Estas regras são fundamentais para a interação constante com o mundo sobrenatural através do canto e também para o trabalho. Dessa maneira, o espaço ocupado pelos Kaiowá é entendido como um local político-social, que depende do processo da reza para o seu equilíbrio.
Enquanto o espaço desfavorável acarretou a redução de cultivo do milho saboró na comunidade de Panambi, por outro lado a maioria das famílias do Panambizinho tem na sua roça a quantidade suficiente de avati jakaira. A roça da rezadora Anália Zevito fica em um lugar isolado, ao qual só a dona tem acesso. Segundo ela, todos os conhecimentos são herdados da sua própria família e é necessário cultivar e zelar bem pelo desenvolvimento do milho saboró, de acordo com as regras. Assim, através de seu consumo, jakaira incorpora a alma da pessoa que o consumiu, dando ênfase à voz e possibilitando ao corpo ser protegido dos espíritos antissociais. No entender da referida xamã, plantar milho saboró, de maneira adequada, no espaço isolado, agrada o jakaira. Através do milho saboró o xamã se comunica com os seres que estão em outros planos.
Entretanto, apesar de existir número suficiente de rezadores na aldeia Panambi, esses não procuram mais uma maneira de aprender e possuir o canto longo de batismo do milho saboró. Isso mostra que algo ameaçador está para acontecer na comunidade local, levando à extinção do jerosy puku em curto espaço de tempo, como um alerta. A execução do canto exige o raciocínio focado em seu prosseguimento adequado, caso contrário, a cerimônia do batismo do milho pode se tornar extremamente ameaçadora, uma vez que poderá provocar o enfraquecimento e a destruição das plantas ou atrair doenças para a comunidade.
Portanto, é imprescindível entender a importância dos espaços que a sociedade Kaiowá ocupava no tempo memorial, aquele registrado na memória dos mais antigos, quando havia as festas de kunumi pepy (ritual de iniciação dos meninos) e de jerosy puku. Neste sentido, vale a pena repetir que hoje em dia, embora muitos desses locais estejam ocupados pelo cultivo de soja ou pela criação de gado, no entendimento dos xamãs o local onde foi realizada uma festa ritual é considerado sagrado.
Izaque João
Professor, pedagogo e pesquisador do povo Kaiowá, mestre em História pela UFGD e doutorando em Antropologia pela USP. Coordenou o Curso Intercultural Indígena Ara Verá e co-realizou o documentário Monocultura da Fé (2018).
Como citar
JOÃO, Izaque. Jerosy Puku. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 6, p. 15-17, abr. 2013.