LIBERDADE PARA DESACATAR
“Me desacatou / Vou lhe reprovar
Guarde na memória / Hei de me vingar.”
(Francisco Alves, Desacato)
“Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”. Palavra de ordem comum em manifestações de esquerda, a frase foi tida como crime no dia 30 de outubro de 2018. Em manifestação contra o presidente eleito Jair Bolsonaro, alguns jovens foram presos sob acusação de desacato e vandalismo após a dispersão do ato. Policiais também reagiram diante da alcunha de “fascistas” que lhes foi dirigida. A prisão foi mais tarde suspensa judicialmente.
A narrativa é familiar. Remete-nos às manifestações de junho de 2013, que trouxeram à tona o recurso indiscriminado ao “crime de desacato” como técnica de intimidação policial. A acusação de desacato era combinada com outros delitos – resistência, associação criminosa e vandalismo – no contexto de uma série de prisões arbitrárias de manifestantes. A invocação do desacato é ritual quase onipresente nesse caldo de truculência policial.
Além de reforço a prisões arbitrárias, o desacato foi usado, nas manifestações, como forma de silenciar críticas à atuação policial. Até quando hostilizadas por policiais, pessoas foram presas por desacato ao reagirem às ofensas. É o caso de uma jovem carioca que, depois de ser assediada por policiais e se indignar, foi presa em flagrante pela prática do crime – teria ofendido a “honra funcional” dos agentes públicos em questão.
Fora de manifestações, o uso do desacato como forma de intimidação é rotina, especialmente em abordagens policiais, mas também por outros agentes públicos. Tornou-se célebre o caso, no Rio de Janeiro, em que uma funcionária do Detran, ao abordar o juiz que dirigia, sem habilitação, um carro sem placas de identificação, deparou com forte resistência do magistrado. Por falar que o juiz “não era Deus”, recebeu voz de prisão por desacato. Em toda e qualquer repartição pública somos lembrados da ameaça por avisos que ostentam o teor do artigo 331 do Código Penal.
“Vem cá, você quer ser preso?” – foi este o reflexo do ministro Ricardo Lewandowski ao ouvir, dentro do avião, um passageiro com câmera na mão que se dirigira a ele para dizer que “o STF é uma vergonha”. Pediu, em seguida, que o comissário de bordo acionasse a polícia para prender o passageiro por desacato. A conduta de Lewandowski foi publicamente apoiada por cinco associações corporativas de magistrados.
O crime de desacato também é mobilizado como fundamento ad hoc para prisões arbitrárias. Em Curitiba, um advogado negro foi abordado por policiais ao ouvir música alta do lado de fora do seu carro. Foi acusado de roubo do veículo e humilhado. Ao afirmar ser advogado, foi acusado de falsificar sua carteira da OAB. Mesmo sem oferecer resistência, foi algemado e, dentro da viatura, levou pancadas na cabeça. Levado à delegacia, na ausência da verificação de qualquer crime, foi autuado por suposta prática de desacato aos policiais que o abordaram. Os policiais afirmaram: “Disse que era advogado e que ninguém prendia ele”.
Há outros crimes que se prestam a finalidade parecida de abuso de poder. O Código Penal também prevê proteção especial a agentes públicos no que tange a crimes contra a honra em geral (injúria, calúnia e difamação). Estabelece uma causa de aumento de pena para situações em que tais crimes são cometidos contra agente público em razão do exercício das suas funções.
Um caso recente ilustra essa prática. Em setembro de 2017, em meio à operação Ouvidos Moucos, que investigava um esquema de desvio de recursos federais na UFSC, uma série de mandados de prisão temporária (técnica rotineira em investigações recentes contra a corrupção) foram expedidos. Um deles se direcionava ao então reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier, acusado de ter obstruído investigações internas na universidade.
Preso, algemado e despido, ele foi interrogado por sete horas. Permaneceu um total de 30 horas sob custódia da polícia, até ser solto pela juíza que substituía a responsável pelas investigações. O ex-reitor da UFSC tornou-se símbolo do esquema investigado, e o fato foi amplamente repercutido pela imprensa nacional. Com a reputação manchada, foi afastado do cargo e proibido de retornar à universidade. Cometeu suicídio no dia 3 de outubro de 2017, trajando uma camiseta da UFSC e portando, no bolso, um bilhete: “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade”.
O suicídio de Cancellier gerou revolta dentro e fora da universidade contra a ação das autoridades envolvidas na investigação. Em um ato comemorativo do aniversário da UFSC, foram colocadas faixas em protesto, em uma delas lia-se: “Agentes públicos que praticaram abuso de poder e que levaram ao suicídio do Reitor. Pela apuração e punição dos envolvidos e reparação dos malfeitos!”. Por não ter se oposto à instalação da faixa, o atual reitor da universidade foi denunciado pela prática de injúria contra agente público – teria, “por omissão”, ferido a honra funcional da delegada responsável pelas investigações.
O crime de desacato está longe de ser uma exclusividade brasileira. Diversos países da América Latina possuem leis de desacato, com conteúdo similar ao do Código Penal brasileiro. Esse quadro motivou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a elaborar, em 1995, um relatório no qual se posiciona pela incompatibilidade de crimes de desacato com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que protege a liberdade de expressão. Além desse relatório, a CIDH emitiu, em 2000, uma Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, na qual reitera esse entendimento. Em 2002, a Relatoria Especial sobre a Liberdade de Expressão da CIDH alertou para o risco de crimes contra a honra serem empregados com a mesma finalidade intimidatória que o desacato.
Na Europa, há previsão de penas mais graves para difamação ou injúria praticadas contra agentes públicos em diversos países (como Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Estônia, França, Holanda, Itália, Luxemburgo, Malta, Polônia e Portugal), apesar de a Corte Europeia de Direitos Humanos já ter se pronunciado no sentido de que a liberdade de expressão para crítica de agentes públicos deve ser mais ampla do que o ordinário, e não mais restrita. Nos Estados Unidos, algumas leis estaduais estabeleceram delitos similares ao desacato, punindo ofensas dirigidas a policiais durante o exercício do cargo. Foram consideradas inconstitucionais pela Suprema Corte, por violarem a liberdade de expressão. Um trecho da decisão no caso Houston v. Hill ilustra bem o espírito por trás da deliberação da Corte: “A liberdade de indivíduos se oporem ou desafiarem verbalmente a atuação policial sem que, por isso, corram risco de prisão, é uma das principais características por meio das quais distinguimos uma nação livre de um Estado policial”.
A discussão sobre a compatibilidade do crime de desacato com a liberdade de expressão não é, no Brasil, uma preocupação apenas teórica. Projetos de lei que propõem a abolição do crime tramitam no Congresso. O tema também alcançou os tribunais e deu início a um debate ainda pendente de resolução definitiva pelo STF. O ponto de partida para a controvérsia judicial no Brasil é o relatório da CIDH. A CIDH entende que a maior proteção dada a agentes públicos, por meio do crime de desacato, não está em sintonia com a democracia. Por exercerem uma função de interesse coletivo, agentes públicos deveriam estar sujeitos a um controle democrático mais rigoroso, não o contrário. O crime de desacato inverteria a ordem democrática dos fatores: dá-se proteção especial a quem deveria estar mais sujeito a críticas. Assim, não só se produz discriminação injustificada entre agentes públicos e cidadãos, como se facilita a intimidação arbitrária e prejudicial ao debate de ideias próprio à esfera pública.
Fundamentados na orientação da CIDH, magistrados de primeira ou segunda instância passaram a tomar decisões favoráveis à incompatibilidade do crime de desacato com a CADH. O movimento não foi unânime, pois houve julgados em sentido contrário. A controvérsia jurisprudencial chegou ao STJ, que emitiu duas decisões a respeito. A primeira se deu no Recurso Especial 1.640.084-SP, julgado em dezembro de 2016, que decidiu pela incompatibilidade do desacato com a CADH à luz dos mesmos fundamentos dos relatórios da CIDH. Em maio de 2017, contudo, essa decisão foi revertida pela 3ª Seção do STJ no Habeas Corpus 379.269.
O debate acerca do desacato chegou ao STF pelo Habeas Corpus 141.949, decidido pela 2ª Turma no começo de 2018. O caso questionava a legalidade da prisão, pela Justiça Militar, de um civil que teria desacatado sargento do exército ao chamá-lo de “palhaço”. Os ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski ratificaram a constitucionalidade do crime de desacato. O ministro Luís Edson Fachin restou vencido ao defender a orientação dada pela CIDH.
Conhecidos por abraçar o “garantismo penal” nos casos da Lava Jato, doutrina jurídica que confere maior peso à proteção de direitos do réu, foi curioso e contraditório que os ministros da 2ª Turma não tenham dado a mesma prevalência à liberdade ao analisar o crime de desacato. Validaram um crime que não só é inspirado em raiz autoritária e discriminatória, mas cuja prática convida ao arbítrio. Sintomático, nesse julgamento, foi o desabafo de Gilmar Mendes sobre a perda de qualquer respeito à autoridade nos dias de hoje. Essa perda seria exemplificada, segundo o ministro, pela exigência de fiscalização de militares na segurança pública no Rio de Janeiro para evitar violações de direitos humanos.
A constitucionalidade do desacato é um tema que permanece em aberto. Aguarda-se manifestação definitiva do STF a respeito, em ação proposta pelo Conselho Federal da OAB. Resta saber quando o caso entrará na pauta de julgamento.
Como a jurisprudência favorável à constitucionalidade do crime de desacato fundamenta sua posição? O argumento parte de um lugar comum indisputado: a liberdade de expressão não é um direito absoluto, e pode ser legitimamente restringida pelo Estado dentro de certas condições. Dessa premissa, sem maiores mediações, ainda não se chega a qualquer conclusão sobre a constitucionalidade do desacato.
Conforme o ministro Gilmar Mendes, o exercício da liberdade de expressão, dentro de “marcos civilizatórios bem definidos”, não estaria sob ameaça. O desacato permitiria coibir excessos e compatibilizar direitos colidentes. Evitaria, assim, que a prática ilimitada dessa liberdade viole os direitos à honra, à intimidade e à dignidade. Não haveria, em qualquer caso, censura prévia.
No entanto, como a lei já impõe restrições à liberdade de expressão para proteger a honra individual, o argumento favorável ao desacato precisa ainda justificar o tratamento diferenciado dado ao agente público. Tem de explicar, em outras palavras, a necessidade dessa restrição adicional: diante de um agente público, a fala ofensiva de um indivíduo pode ser considerada, além de crime contra a honra, crime de desacato. A jurisprudência traça quatro linhas argumentativas nesse sentido.
Primeiro, identifica-se o objeto de proteção do crime de desacato. Ele não é, como no caso de injúria, difamação ou calúnia, o senso de autorrespeito (honra subjetiva) ou a reputação (honra objetiva) da vítima. Sua previsão se justifica pela necessidade de tutelar o “prestígio da Administração Pública”, a função pública em si, a “honra funcional” do agente. Argumenta-se, de um lado, que a proteção desse prestígio é necessária como forma de resguardo da própria autoridade estatal. De outro lado, defende-se que a tutela do prestígio da Administração é necessária para garantir o bom desempenho da função pública e para promover, assim, o interesse público.
A segunda linha argumentativa vem dos votos vencedores de precedente do STJ. Nessa decisão, ministros entenderam que crimes contra a honra seriam insuficientes para a proteção do agente público. Por um lado, injúria, difamação ou calúnia contra agentes públicos no exercício das suas funções são crimes que dependem de autorização do ofendido para que o acusado seja processado. O argumento afirma que, por isso, o agente público ficaria desprotegido, o que estimularia certo desleixo no exercício das suas funções. Por outro lado, haveria situações que ferem a respeitabilidade da função pública que não se enquadrariam no crime contra a honra. Sem o desacato, essas situações não poderiam ser punidas, e o prestígio da Administração ficaria desguarnecido.
A terceira linha justifica a diferença de tratamento entre agentes públicos e os demais cidadãos sem depender da noção de prestígio da Administração. Ela enfatiza que os primeiros estão sujeitos a maiores ônus do que os últimos: justamente pelo fato de os agentes públicos terem mais responsabilidades (sujeitos, por exemplo, a violências e crimes específicos, que não se aplicam a todos), estaria justificado que tenham, em contrapartida, maior proteção.
O fato de o ofendido, no caso julgado, ser um militar (chamado de “palhaço”) serviu de argumento adicional para Gilmar Mendes defender a aplicação do crime de desacato. Segundo o ministro, “estamos num ambiente muito definido, que é o ambiente militar. Nós todos sabemos […] que as instituições militares, tais como previstas no texto constitucional e legal, louvam-se, estruturam-se no arcabouço da hierarquia. […] Imaginem, num sistema como este […] um sargento ser chamado de ‘palhaço’. Isso, de fato, distorce por completo o sistema. Claro que isso nada tem a ver com liberdade de expressão. Isso, na verdade, transcende toda a ideia de legalidade […] de disciplina, de organização que se tem que ter no âmbito deste tipo de instituição”. Contudo Mendes não elaborou critérios que explicassem por que um civil, que está fora da organização militar, deveria se submeter à rigidez hierárquica das Forças Armadas.
Em quarto lugar, tenta-se responder à abertura dada, pelo desacato, à arbitrariedade policial. Gilmar Mendes argumentou que a punição do desacato é legítima na medida em que o abuso de poder pelas autoridades públicas seja também punido por lei. Rogerio Schietti Cruz, ministro do STJ, reconheceu a existência de uma prática abusiva reiterada por policiais no que diz respeito ao desacato, mas argumentou que a coibição de atos abusivos era uma tarefa do Judiciário. E a mera existência de abusos não seria motivo, portanto, para abolir o crime, menos ainda para declarar sua inconstitucionalidade.
Essas linhas argumentativas são insuficientes para justificar a persistência do desacato na ordem jurídica brasileira. Perguntar se a criminalização do desacato é compatível com a liberdade de expressão continua a ser urgente, pois as respostas até aqui ensaiadas são claramente insatisfatórias e superficiais.
Não basta, nesse exercício, dizer que direitos fundamentais não são absolutos, nem que a liberdade de expressão comporta restrições, desde que bem justificadas e proporcionais. As controvérsias não residem nessa premissa elementar, já bem aceita na doutrina constitucional, mas nos seus desdobramentos. O diabo mora nas distinções analíticas a construir a partir dessa premissa. Difícil é o passo argumentativo seguinte: construir critérios para saber quais restrições a liberdade de expressão admite à luz do projeto brasileiro de democracia constitucional. Essa fórmula não está na letra da Constituição, por mais que a procuremos. Depende de uma teoria política da liberdade de expressão, conectada ao ideal democrático. E essa teoria é indissociável de uma interpretação constitucional.
Para que o desacato tenha sentido jurídico, seria necessário justificar o tratamento diferenciado dado a agentes públicos. A resposta de que o desacato tutela o “prestígio da Administração Pública” não é suficiente para tanto, em ambas as suas formas. Em primeiro lugar, o argumento consequencialista, segundo o qual essa proteção é uma necessidade para a boa prestação de serviços públicos, depende de uma relação causal que não possui plausibilidade empírica. O prejuízo concreto ao serviço público pela não tipificação do desacato é apenas uma especulação hipotética. Por que uma atitude reverencial do cidadão, temeroso de que sua crítica possa cruzar a linha do desacato, significaria melhor desempenho da função pública? A hipótese especulativa contrária é, no mínimo, igualmente plausível: insular servidores de críticas e intimidar cidadãos com a sombra do desacato pode piorar a qualidade do serviço público. Numa democracia afinada à luz de valores liberais, presume-se a liberdade, não a autoridade, e restrições à liberdade exigem justificativa robusta. Portanto, cabe ao Estado, e não ao cidadão, o ônus de demonstração empírica da hipótese de prejuízo ao serviço público na ausência da tipificação do desacato.
Em segundo lugar, o argumento deontológico afirma que a proteção do prestígio da Administração Pública é um bem em si mesmo, como forma de resguardo da própria autoridade estatal. Respeito à autoridade de decisões estatais, contudo, não se confunde com reverência a agentes investidos na função pública. Por meio do desacato, não se está protegendo a autoridade do Estado, na acepção de poder legítimo que merece ser obedecido. Tampouco garante-se obediência a decisões estatais, já que para isso o direito penal prevê outros crimes (como o crime de desobediência, por exemplo).
Numa democracia, o cidadão é livre para participar da esfera pública e sujeitar o poder a crítica vigilante. E pode contribuir, por meio do debate de ideias, para o controle de decisões estatais. A liberdade de expressão – inclusive contra o Estado – não é apenas prerrogativa individual, mas um bem essencial à saúde da democracia.
O “prestígio” da Administração não se conquista pela ameaça de processo judicial e prisão ao indivíduo que ocasionalmente interpela um agente público de forma crítica ou até destemperada, mas de políticas públicas satisfatórias, transparentes e sensíveis à dignidade dos cidadãos. A ameaça permanente do desacato não gera prestígio, e tampouco uma relação de respeito mútuo entre agente estatal e cidadão, mas uma relação moldada pelo medo do arbítrio. Sem resguardo da capacidade de o cidadão se opor a condutas de autoridades públicas, livre do receio de prisão, a democracia se debilita.
O argumento que afirma que a previsão de crimes contra a honra de funcionários públicos não seria proteção suficiente, pois o ofendido teria que fazer representação contra o agressor, também não convence. Não há por que imaginar que essa exigência enfraqueceria a proteção do agente público. Em casos de violência doméstica, por exemplo, a necessidade de que a vítima faça representação pode, de fato, ser um grande obstáculo à eficácia da lei. No caso do desacato a agentes públicos, entretanto, a hierarquia está invertida: este detém poder de coação em relação ao cidadão comum.
O argumento de que agentes públicos estariam sujeitos a maiores ônus, e por isso mereceriam maior proteção, é artificial. Não se nega que, em princípio, os ônus do exercício de função pública sejam maiores do que as responsabilidades dos que atuam em interesse próprio. Mas daí não se pode inferir que, como contrapartida, o agente público mereça maior proteção à sua honra, ou que o prestígio da Administração mereça ser promovido pela criminalização do destempero crítico de um cidadão.
O mesmo equívoco é cometido ao se apontar para a criminalização de abuso de poder como contrapartida à do desacato. A previsão do crime de abuso de poder existe para moderar ou mesmo neutralizar a assimetria entre o cidadão comum e o agente público, a quem cabe exercício de coação. Pune-se o agente que, em desvio de função, persiga o cidadão. Isso é sustentado por uma clara lógica liberal, de resguardo da esfera própria de autonomia do indivíduo em face da autoridade do Estado.
O desacato é definido de forma demasiadamente aberta, sem maiores critérios de aplicação. Deixa-se a identificação do que caracteriza desacato ao capricho da autoridade policial (ao “guarda da esquina”), tornando o crime um instrumento para a repressão arbitrária – um cheque em branco nas mãos de policiais, que passam a usá-lo como ferramenta de intimidação.
Se os próprios juízes têm dificuldades de definir, com razoável precisão, os critérios que fazem determinada conduta se enquadrar como crime de desacato, imagine como deve ser para um policial, no meio do calor das trocas cotidianas. Mesmo que, posteriormente, o Judiciário possa punir o agente público por abuso de poder, ou relaxar uma prisão ilegal por desacato, o crime já terá, a essa altura, cumprido sua função intimidatória. As relações imediatas do cidadão com as autoridades públicas terão sido marcadas pelo medo e pelo espectro sempre presente da prisão em flagrante. Mesmo para manifestar indignação a uma conduta injusta ou meramente descortês do agente público ou em situações de descontrole emocional, cidadãos têm de medir as palavras e os gestos. Afinal, tudo poderá ser entendido como desacato.
Pautas pró-liberdade estão em baixa nos tempos atuais. A liberdade de imprensa é ameaçada por ataques a jornais e jornalistas. A escola, que deveria ser local de desenvolvimento de cidadãos autônomos, livre da dominação do poder familiar e religioso, sofre avanços de quem quer impor controle sobre o que lá se discute. Universidades têm se transformado em alvos principais do controle e da censura ideológica. A criminalização e a pena de prisão são os remédios instintivos para toda conduta socialmente reprovável.
O objetivo abstrato invocado para legitimar a previsão do crime de desacato – o “prestígio da Administração” – não é um bem que justifica esse tipo de restrição da liberdade e o uso da mão repressiva do Estado. Leis de desacato partilham de um pressuposto inaceitável: que o cidadão, além de dever obedecer a ordens de autoridade (e poderá ser processado por desobediência se não o fizer), e de dever respeitar a honra do agente público como a de qualquer indivíduo (e poderá ser processado por injúria se não o fizer), deve reverência ao “prestígio da Administração”. Teria um dever especial de cortesia e bom comportamento, mais exigente que o dever geral de civilidade para qualquer cidadão. Além do respeito à autoridade e à honra do agente público particular, pede-se ao cidadão delicadeza física e verbal.
Por ocuparem uma função de interesse coletivo e serem investidos de poder de coação, agentes públicos devem estar sujeitos a controles mais rígidos pelos cidadãos. Devem ter serenidade ao lidar com críticas e, caso recebam ofensas graves, terão a opção de invocar crime contra a honra. Uma relação tensa e reverencial entre cidadãos e agentes públicos não é o tipo de respeito à autoridade que revigora a cultura e as instituições democráticas. O desacato infantiliza o cidadão. A liberdade para desacatar fortalece a democracia.
Conrado Hübner Mendes
Doutor em direito e professor da USP, é autor de Constitutional Courts and Deliberative Democracy, premiado pela Associação Brasileira de Ciência Política.
Bernardo Pacola
Graduando em Direito pela USP, é bolsista de iniciação científica pela FAPESP.
Maxwell Alexandre
Artista visual, graduou-se em Design. Seu trabalho integra coleções como MASP, Museu de Arte do Rio e Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Como citar
MENDES, Conrado H.; PACOLA, Bernardo. Liberdade para desacatar. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 13, p. 02-11, mai. 2019.