LÍNGUA
VEGETAL
GUARANI
Texto de Izaque João
Palavras mordidas, série de desenhos de conversas com formigas saúva de Ana Flávia Marú
No pensamento kaiowá, todas as plantas possuem uma ocupação, uma função e um modo de vida na Terra, estabelecidos em tempos primordiais. Só quando passarmos a apreender os conhecimentos que elas nos trazem poderemos cuidar delas, respeitar seu território e conviver de maneira harmoniosa.
Para compreender o que é um animal ou uma planta no pensamento kaiowá é preciso conhecer a história da origem, ypy, que fala sobre o surgimento e a criação de tudo. Todas as coisas possuem uma origem divina. Cada coisa que existe – humanos, aves, animais, plantas, objetos – foi criada pelas divindades no Áry Ypy, tempo-espaço da origem, e a elas pertence. As narrativas míticas revelam o processo da criação e definem as regras, os hábitos e os comportamentos que devem ser seguidos, bem como as estratégias políticas de relacionamento com os deuses que se expressam em cantos-rezas-danças. Tais regras são fundamentais para a interação e reciprocidade com o mundo divino. Dessa maneira, o espaço terrestre ocupado pelos Kaiowá é entendido como um local político-social, que depende da reza para seu equilíbrio.
Foi através do canto da divindade criadora que as essências dos animais e dos vegetais foram criadas, o que nós denominamos de rekorã ypy ou princípio distintivo da vida. No momento da origem, a divindade definiu para cada ser seu espaço de vida, seu território/hábitat, seu comportamento e sua função na Terra, sua língua, sua alimentação, sua forma de caminhar, etc. Todas as ações e normas sociais foram estabelecidas no tempo-espaço primordial.
Divindades, espíritos, humanos, animais e vegetais residem em ambientes diferentes e possuem comportamentos específicos à sua forma de vida. O gavião, por exemplo, é uma ave carnívora. No pensamento kaiowá, desde o princípio foi estabelecido que sua comida seria a carne de outro animal. Outras aves se alimentam de insetos ou de frutas, e esse tipo de comportamento foi estabelecido no seu rekorã ypy. Com os vegetais acontece a mesma coisa. Na sua criação já foram concebidos seus ciclos, suas fases e as estações em que frutificam e florescem.
Durante a constituição inicial do cosmos, cada espaço foi reservado de forma específica para cada espécie, segundo sua condição e função. Cada ambiente é, então, considerado pertencente a um tipo de ser particular, quer dizer, é seu espaço destinado originalmente. Se há espaços de convivência compartilhados e superpostos pelos seres, existem territórios que lhes foram designados especialmente. É possível atravessar e se locomover por esses espaços específicos sem, com isso, se apropriar deles. Nós, Kaiowá, sabemos, portanto, que cada animal e cada vegetal tem seu ambiente, sua forma própria de agir, de se alimentar, de se movimentar e de se comunicar.
Para alojar e acomodar as plantas em um ambiente adequado é necessário dialogar com a yvyresapa, o alicerce primordial da Terra, que propicia e mantém a diversidade vegetal. No mundo subterrâneo, as plantas, por meio de suas raízes, se entrelaçam umas às outras como uma forma de cooperação mútua e para manter o equilíbrio para a convivência coletiva.
Na origem, todos os seres tinham forma humana. Houve, no entanto, um ponto crítico e crucial nos primórdios em que plantas e animais foram dotados de “roupas” que ocultaram sua característica originária. Na cosmologia kaiowá, os seres habitam dois planos: o plano terrenal, localizado na Terra; e o plano divino, localizado no além, denominado de yvy rendy, patamar divino. Os ñanderu, rezadores kaiowá, explicam que, no yvy rendy, todos os seres caminham e são imortais. Os moldes originários das plantas e dos seres sagrados encontram-se no yvy rendy, que não é a Terra que estamos pisando, mas é uma Terra que está além da nossa imaginação e que nossos olhos não conseguem enxergar.
Os ñanderu contam que o que vemos, com nossos olhos, aqui no plano terrestre, como planta, árvore ou animal, na realidade tem forma humana no yvy rendy. As mesmas árvores que vemos aqui, se fossemos lá, do outro lado do mundo, no além da Terra, no yvy rendy, as enxergaríamos como pessoas que caminham, mas o seu andar não é igual ao dos animais ou ao dos humanos. A caminhada vegetal é considerada a mais bonita.
Em sua teoria do perspectivismo ameríndio, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro explica que “o modo como os seres humanos veem os animais e outras subjetividades que povoam o universo — deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos — é profundamente diferente do modo como esses seres veem os humanos e se veem a si mesmos”. De acordo com essa teoria, animais e outros seres seriam considerados como ex-humanos.
Contudo, nem animais nem plantas são ex-humanos. Na cosmovisão kaiowá esses seres continuam tendo características humanas no patamar destinado aos vegetais ou aos animais e assim por diante. O que diferencia plantas e animais dos humanos foi estabelecido no seu princípio de vida, o que os Kaiowá denominam ohekokuaa, a própria sabedoria sobre seu modo de ser, de viver, de gerar conhecimento, de agir, de se comportar e se comunicar. Diferentemente do que a biologia entende por “espécies”, para o povo Kaiowá o que as define e as diferencia é o seu ohekokuaa, definido no Áry ypy.
O ohekokuaa é um instrumento de ação que vincula a vida e os saberes de cada um dos seres; ou melhor, define desde o modo de vida até os comportamentos, as relações com os outros seres, seu lugar de moradia e pertencimento. O ohekokuaa se constitui como um preceito divinal que articula dois movimentos da origem: -heko, que significa vida ou dar vida, referindo-se também ao desenvolvimento e crescimento; e kuaa, que é um sufixo que indica um conjunto de saberes. O surgimento das plantas, dos animais e de outros seres não foi dado de forma imediata, mas aconteceu em várias fases até se constituírem de forma plena.
No momento da criação, os tekoaruvicha, divindades, se reuniram e fizeram surgir as plantas – e todos os outros os seres – através de cantos. A palavra expressa através do canto constituiu tudo o que existe. Ñanderuvusu foi quem, através de seus cantos, definiu a essência das plantas e demarcou seus saberes dentro de sua condição vegetal. No ohekokuaa se prescreveram, assim, as funções das plantas no espaço social, inclusive seu modo de interação com os humanos e outros seres não humanos. As divindades começaram a andar pelo mundo, e onde passavam, cantavam; e assim começavam a nascer e crescer diferentes vegetais, formando grandes florestas.
As plantas são seres especiais desde o começo dos tempos. Na superfície da terra, elas influenciam todos os outros seres e, no mundo subterrâneo, também interagem com os seres que ali habitam. As plantas precisam de terra para poder nascer, crescer e firmar suas raízes. Se a biologia entende que para o desenvolvimento das plantas elas precisam de uma terra boa, no nosso modo de pensar há outras questões a serem consideradas.
O finado rezador Lício Toriba, com quem conversei bastante, me explicou o que é a raiz das plantas. A raiz se esparrama debaixo da terra, onde se encontra com outras raízes. As plantas não ficam isoladas nem sozinhas, porque senão elas ficam muito tristes. Quando as raízes se entrelaçam, elas fortalecem umas às outras. Lício me disse que nós também somos assim. Quando ficamos sozinhos, ficamos tristes, mas quando temos outras pessoas para conversar, dialogar e intercambiar, conseguimos viver felizes. A raiz fica debaixo da terra para que as plantas possam se comunicar entre si – é dessa forma, omohekorã. É “assim que foram criadas”.
As folhas também têm suas especificidades. Elas caem e têm seu barulho próprio. Aparentemente, é algo insignificante ver uma folha cair e fazer barulho. No entanto, essa também é uma forma de comunicação suave. Inclusive, esse balanço foliar está no Jerosy Puku, o Canto Longo, ritual. Seu movimento não é apenas movimento, é também uma forma de dançar. Galhos de árvores se esfregam uns nos outros produzindo sons que, às vezes, são advertências. Todas essas falas das plantas e das árvores que conseguimos ouvir, mas não entender, são o yvyra ayvu, ou a linguagem das árvores. Ou ka’aguy ayvu, a linguagem da mata.
As plantas consideradas sagradas – yruku (o urucum), ysy (a amesca) e jurakatĩngy (o cedro) – influenciam os espíritos originários de diversos níveis cósmicos, que interagem no ambiente ritual com seres humanos e não humanos e colaboram na manutenção da ordem social. O uso dessas plantas sagradas também ajuda no nosso fortalecimento físico, mental e espiritual.
Essas plantas sagradas têm seu território de pertencimento, que chamamos yvyra jekokatu rekuaty. Sua utilização em terapias medicinais ou espirituais necessita de um conhecimento profundo. Na interpretação kaiowá, a forma correta de manuseio e utilização são essenciais para obter os resultados desejados. Para utilizar o urucum, o cedro ou a amesca na cerimônia ritual, são necessários procedimentos, preparos e cuidados especiais.
As plantas têm sua própria forma de comunicação, bem diferente da nossa. Na mata, temos a oportunidade de escutá-las. As árvores podem nos indicar perigo através de barulho. Quando criança, eu ia para a mata com meu pai, ele compreendia o que as árvores nos falavam. Ele me explicava que era perigoso passar debaixo de certas árvores, dependendo do movimento e do barulho que faziam. Eram as próprias árvores que estavam nos alertando. Tem um barulho que elas fazem, parecendo um apito, que nós, Kaiowá, identificamos e sabemos perfeitamente que é um aviso para desviar.
No caso do urucum, o seu canto primordial – chamado yruku arekory – possibilita o fluxo de reciprocidade entre vegetais e humanos de forma harmônica. Se o canto não for feito ou se for proferido de forma errada, isso pode ter algum tipo de implicação, resultando em um desequilíbrio social cuja gravidade pode variar. O urucum, então, tem o poder de transformar o ambiente e para tanto deve existir um diálogo reiterado com ele, feito através dos cantos.
Eu tenho urucum em casa e sei que, de vez em quando, preciso podar seus galhos. Como ele não é apenas uma árvore, não posso apenas ir lá e podar. Primeiro, eu preciso ter um diálogo com ele e, depois, a poda tem que ser feita devagar e com cuidado. O urucum é uma planta sagrada e, ao mesmo tempo que está ocupando este espaço na Terra, também ocupa um espaço no outro lado do mundo, no yvy rendy. Então, a poda deve ser feita com muita cautela. Levou-me um tempo para compreender esses cuidados com as plantas, que fui aprendendo com os rezadores e os mais velhos.
Dentro da sabedoria kaiowá, cada planta possui uma maneira apropriada para ser cultivada. Existem algumas que são plantadas pelos espíritos, que parecem nascer naturalmente, outras são plantadas por nós, humanos, e outras são cultivadas pelos pássaros – tudo depende do lugar cósmico onde se encontram. As técnicas de cultivo também foram determinadas no Áry Ypy. As plantas alimentícias, itymbýry, cultivadas tradicionalmente pelos Kaiowá, requerem cuidados constantes, e eles devem zelar pelo seu bem-estar e seu bom desenvolvimento. Cada recomeço do ciclo das plantas é chamado de ypyky: ypy indica princípio ou origem, e ky é o momento da germinação.
Apesar das mudanças climáticas que o mundo vem enfrentando, as fases da lua, a estação chuvosa, o canto de alguns pássaros e das cigarras, a floração do ipê e a mudança da posição do sol seguem orientando a agricultura das famílias tradicionais kaiowá. Os cantos de certos pássaros nos orientam, funcionando como um calendário. Reconhecendo-os, podemos saber qual é a estação do ano, se é período de plantio ou ainda não, se já passou a época de frio no inverno, se é uma época boa com muitos peixes no rio, se vai ter um vento forte. Tem quem reconheça até a chegada da tempestade pelo canto das aves.
Cada fase de crescimento das plantas deve ser observada com muita atenção, já que as itymbýry são delicadas, sobretudo tendo uma atenção especial na fase de floração e no período de amadurecimento. Do contrário, esses alimentos podem contrair algumas anomalias e, ao ser consumidos, ocasionam desequilíbrio social ou individual. Para poder nos alimentar de forma segura e saudável, os vegetais devem ser ritualizados, itymbýry ohovasa, na cerimônia do Jerosy Puku. Na nossa concepção kaiowá, todos os produtos agrícolas possuem um princípio de hierarquia, sendo o milho saboró (jakaira) considerado o principal e o mais delicado de todos.
Os produtos agrícolas precisam do processo de jehovasa, benzimento ou ritualização, para desenvolver-se de maneira adequada e se transformar em alimento. O termo jehovasa possui múltiplas explicações. Poderia simplificar dizendo que é um gesto feito com as mãos, para frente, para a direita e à esquerda, que tem um significado importante na nossa vida espiritual. Segundo o rezador Luiz Anguja, da aldeia TI Panambizinho, ele representa a caminhada em busca dos elevados patamares celestiais e serve para a comunicação com as divindades.
Se o jehovasa não for feito, essas plantas não vão mais se reproduzir, não vão mais existir na Terra. Seria como se as divindades recolhessem esses exemplares e os levassem de volta para o yvy rendy, porque sem jehovasa não é possível que elas vivam no nosso espaço terrenal. Contudo, esclareço que, para os Kaiowá, não faz sentido a ideia de extinção. Para nós, o que acontece é o recolhimento, a retirada do exemplar da Terra. Na região onde eu moro hoje em dia, já não há muitas plantas que existiam antigamente. A mesma coisa está acontecendo com os peixes. Quando os rios são muito poluídos, se a todo momento se está jogando agrotóxico nas águas, os peixes também desaparecem, quer dizer, eles são recolhidos. Não é uma extinção. É uma recolhida.
Quando as plantas deixam de existir no mundo terrenal, o conhecimento sobre elas também desaparece. Se eu falar de uma planta que eu conhecia para as crianças e os jovens e ela já não existe, eles nunca terão a oportunidade de entender e, muito menos, de conhecer suas histórias. Junto com o recolhimento dos seres também se perdem conhecimentos.
Há, no entanto, uma possibilidade de trazer esses seres recolhidos de volta. Há mais ou menos dez anos, quando participava de um aty guasu, ou grande reunião, ouvi os ñanderu conversando. Hoje, infelizmente, todos eles são falecidos. Estavam comentando que existe uma forma de trazer as coisas de volta, o que é realizado por meio de um canto, que se chama omopyrũ (“vou trazer de volta”). Esse canto pode fazer retornar plantas, pássaros ou peixes “extintos”.
É possível trazê-los de volta, contudo, desde que exista uma água que não esteja poluída, que exista mata, que haja frutas e alimentos que eles possam consumir, ou seja, que exista o ambiente adequado que lhes corresponda. Cada canto é específico, quer dizer, há um canto próprio para os animais, para as aves, para os peixes, para as plantas. Esses cantos funcionam como uma negociação, um diálogo com o dono deles. Os donos são aqueles que permitem o retorno, são os responsáveis por devolver sua criação no plano terrenal. No caso dos materiais sagrados – mimby (flauta sagrada), mbaraka (chocalho) e tantos outros –, uma vez recolhidos não é mais possível trazê-los de volta porque seu território original não é na Terra, é no além, lá em cima. Aqui, só estão de empréstimo.
Esse recolhimento também atinge o comportamento das pessoas. Para nós Kaiowá, todas as coisas anormais precisam ser equilibradas, precisam ser controladas, e para isso deve haver uma pessoa que conheça e possa estabelecer um diálogo. Não é qualquer pessoa que tem essa capacidade. Se alguém me pedir “Izaque, você poderia cantar para impedir tal coisa?”, ou “Izaque, você poderia trazer de volta tal espécie?”, eu não conseguiria fazer. Quem tem esse conhecimento é o ñanderu, o rezador, que adquiriu essa sabedoria ao longo da sua trajetória de vida.
Para nós, Kaiowá, as plantas não são apenas recursos. Cada uma possui uma função no mundo terrenal que vai além de sua utilidade para os humanos, porque, além de formar parte da vida terrestre, nos trazem conhecimentos e colaboram equilibrando o espaço sociocosmológico. Se a ideia de domesticação nas sociedades não indígenas está ligada ao progresso, à evolução, ao controle e à subjugação, no pensamento kaiowá entendemos que é urgente desvincular a ideia de submissão das plantas e destacar que elas nos trazem conhecimentos ancorados nos preceitos de existência e no surgimento dos vegetais.
A conformação de florestas, então, é entendida como resultado de uma atuação conjunta de animais, seres humanos e não humanos, seres visíveis e invisíveis que produzem diversidade vegetal: plantas comestíveis, frutíferas, sagradas, medicinais, dentre outras. As florestas também albergam distintas espécies de seres, são a sua casa. Nesse entendimento, reflorestar é uma forma de dar continuidade à existência e à manutenção da diversidade.
As narrativas kaiowá demonstram que, com nossos olhos humanos comuns, estamos cegos à forma peculiar de vida das plantas e vivemos surdos à sua língua, quer dizer, não conseguimos nem vê-las em sua forma original nem entender suas falas. A nossa comunicação possui uma absoluta desarmonia com as plantas, não só pela falta de entendimento, mas também porque a linguagem vegetal é perfeita. Cada palavra pronunciada pelas plantas não possui imperfeição.
Seu Atanásio Teixeira, um rezador muito importante para os Kaiowá, que mora atualmente na TI Aldeia Limão Verde, em Dourados, Mato Grosso do Sul, me contou que, nos tempos primordiais, os nossos ouvidos humanos foram cobertos com sete camadas de algodão sagrado, mandiju ete, o que nos impede de ouvir e compreender as línguas de outros seres, diferentes de nós. Isso acontece para não ouvirmos os diálogos das divindades do outro lado do mundo, e só conseguirmos ouvir o que está deste lado. O mesmo acontece com nossos olhos. Seu Atanásio me disse que nossos olhos também estão cobertos por camadas que nos impedem de enxergar a forma original dos seres. Nós vemos um pássaro apenas como um pássaro, com suas penas e seu bico. Quando, na realidade, esse pássaro é uma pessoa na sua forma autêntica originária.
Os olhos comuns, às vezes, podem até enxergar, mas não compreendem o que veem. Por exemplo, às vezes vemos relâmpagos no céu. Esses relâmpagos, na realidade, não são apenas relâmpagos, são uma forma de diálogo, uma troca de experiências entre as divindades ou entre seres não humanos. É a mesma coisa com as aves. Nós as ouvimos sem saber que muitas vezes elas estão realmente se comunicando entre si. Às vezes, as aves estão cantando seu guahu, tipo de canto-reza-dança; outras vezes, estão falando conosco para nos alertar de situações ruins. Todo guahu tem sua história e tudo o que existe fala através de seu guahu, relatando através do canto como viveu no tempo da origem.
As aves também são nossas companheiras. O já falecido rezador Paulito Aquino, que morava na aldeia TI Panambizinho, comentou que um pássaro, que conhecemos como ja’o (inambu), alertou, a ele e a sua mãe, de um perigo na mata, e indicou o caminho certo para seguirem. A linguagem dos pássaros existe de diferentes formas, mas nossos ouvidos muitas vezes não conseguem compreender o guyra ayvu ou linguagem das aves. A comunicação pode ser realizada de outras formas também, não só pelo canto, mas por uma comunicação não verbal, como o seu comportamento e as suas reações, como no movimento das árvores que indicaram à Paulito o caminho correto.
Para compreender e dialogar com os vegetais e outros seres não humanos é preciso ter um preparo espiritual especial, de corpo e de mente. Não é qualquer pessoa que atinge esse preparo, pois ele exige uma dedicação plena, exclusiva e difícil. Por esse motivo, muitas pessoas abandonam esse preparo espiritual e analisam as plantas e os animais a partir de uma concepção que não lhes é própria, fora do contexto, pois é mais fácil. São os xamãs as únicas pessoas que possuem as capacidades para assumir o papel de interlocutores ativos para dialogar com as plantas e outros seres não humanos, podendo escutar e compreender as vozes de diversos seres e conversar com eles. Nesse sentido, qualquer indivíduo é leigo, porque não possui as habilidades do xamã de transitar por esses diversos níveis cósmicos.
Através do preparo espiritual ao longo de sua vida, os ñanderu e as ñandesy vão aprendendo. Como diz Atanásio no livro Cantos dos animais primordiais, que organizei recentemente, “para compreender cada canto ou para conhecer os muitos saberes antigos, é preciso muitas etapas de ensino, assim como nas escolas, para adquirir conhecimentos profundos, tem que se frequentar a escola todos os dias. Só assim nós vamos conseguir entender aqueles que falam sobre a vida plena”. É assim que, com o tempo, as camadas que tampam seus olhos e ouvidos são retiradas e eles conseguem não só enxergar e ouvir as formas originais, mas compreender e memorizá-las para se comunicar com outros seres. Se todas as pessoas tivessem acesso a esse tipo de conhecimento, poderiam entender que as plantas não são apenas plantas.
É nesse caminho do conhecimento e do xamanismo indígena que as ciências deveriam se ancorar para entender melhor sobre a importância e a diversidade das plantas e dos animais. A partir do momento que os não indígenas entenderem qual é a ocupação, a função e o modo de vida das plantas aqui na Terra, estabelecidos em tempos primordiais, será muito mais fácil cuidá-las, protegê-las, respeitar o seu território e conviver com elas harmoniosamente.
Nas escolas indígenas, procuramos trabalhar vinculando nossos próprios valores e conhecimentos tradicionais. Vários professores e professoras trabalham com seus estudantes não só na sala de aula, mas fora do prédio escolar, na beira do córrego, no rio, na mata. Isso é essencial para que crianças e jovens possam conhecer de perto a importância das plantas.
A filosofia e a ciência indígenas, ao contrário do que muitos pensam, não são pensamentos fantasiosos nem apenas empíricos. A ciência ocidental tem muitas vezes uma interpretação oposta à ciência indígena, deslegitimando-a. A palavra mito nem sequer existe na língua kaiowá; para nós, esses são conhecimentos que se originam das narrativas do tempo-espaço da origem e, por isso, são nossa filosofia e não podem ser reduzidos a um pensamento imaginário. Felizmente, há estudos que tomam como ponto de partida os conhecimentos milenares dos povos indígenas e que mostram que interagimos de forma recíproca com a diversidade de seres, construindo harmonia e convivência de maneira conjunta.
O que aconteceria se derrubássemos todas as árvores? Se o Brasil virasse um deserto – como seria a vida? Como seria o ar que respiramos? Como viveríamos no dia a dia? Agora, há cada vez menos árvores. Praticamente só existem monoculturas ao redor de nossas aldeias. O ambiente cósmico é organizado, cada ser ocupa um espaço específico e cumpre uma função particular, conforme foi estabelecido na sua origem. A floresta e a mata são os lugares apropriados para a produção e a reprodução dessas espécies, sejam elas vegetais, animais ou seres espirituais. Por sua vez, cada ser possui um papel importantíssimo para a construção e a manutenção contínua das florestas e matas. Os ñanderu insistem em nos lembrar que nós, humanos, não vivemos sozinhos, não estamos isolados e precisamos uns dos outros. A sociedade e a ciência não indígenas precisam compreender qual é o lugar das plantas na Terra e qual é sua função, porque só assim poderão cuidar delas, respeitar seu território e se relacionar com elas para viver em harmonia.
Izaque João
Professor, pedagogo e pesquisador do povo Kaiowá, mestre em História pela UFGD e doutorando em Antropologia pela USP. Coordenou o Curso Intercultural Indígena Ara Verá e co-realizou o documentário Monocultura da Fé (2018).
Ana Flávia Marú
Artista e arquiteta urbanista nascida em Itumbiara (GO). Integra o grupo História Natural de Goyaz, é mestranda na UFG e artista colaboradora do espaço independente Muquifu Cultural em Goiânia.
Como citar
JOÃO, Izaque. Língua vegetal guarani. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, edição especial Vegetalidades, p. 46-53, set. 2023.
Esta edição especial da revista foi produzida colaborativamente pelos editores Felipe Carnevalli, Fernanda Regaldo, Paula Lobato, Renata Marquez e Wellington Cançado e pelas editoras convidadas Anai Vera, Bianca Chizzolini e Karen Shiratori.