MADRI DO
COMUM
Texto de Bernardo Gutiérrez
Los Madriles, FRAVM, Zuloark + Lys Villalba, [VIC], Paisaje Transversal e Todo por la Praxis
Uma deriva por iniciativas cidadãs de Madri que conformam redes potentes de vizinhança capazes da criação, gestão e transformação dos espações públicos.
Difícil escolher uma lembrança pessoal de Madri. Passeando pelas ruas da cidade, percebo que a maioria das minhas postais-lembranças são coletivas: aulas públicas nos parques, espaços autogestionados, assembleias nas praças, “ocupas”, protestos, marchas, festas no espaço público. Talvez o peso dos últimos sete anos seja exagerado na minha memória. Apesar de ter estado ausente em muitos momentos dos últimos tempos, essa Madri coletiva, mestiça, irreverente e aberta às vezes parece ocupar minha memória toda.
Como era Madri antes do grande espaço cultural autogestionado La Tabacalera, antes da explosão do 15M, antes do processo municipalista que colocou o Ahora Madrid, essa frente popular sui generis, no governo da cidade? Voltar para Madri depois de alguns anos no Brasil provoca ainda mais perguntas. Qual é o espírito da cidade? Quais os novos códigos, lógicas, subjetividades?
Perambulo pelas ruas madrilenas perdendo rumos, chegando atrasado a citas, tentando reconhecer cantos do passado, debruçado sobre as novas perguntas que o regresso formula. Como passará para a história essa Madri coletiva, subterrânea por muitos anos e institucionalmente quase incontrolável? Quais os imaginários compartilhados? Talvez, por não ter respostas, tento olhar para o futuro.
Imagino a Madri do ano 2040: um cartão-postal da Madri de 2016, após anos de esquecimento e poeira, chega ao endereço de uma casa editora vintage da cidade, que ainda publica livros de papel. O cartão postal tem uma foto do Campo de Cebada e uma frase: “Feliz año desde la comuna de Madrid”. O editor do futuro, descendente dos indignados que ocuparam as praças da cidade em 2011, entenderá perfeitamente o cartão-postal. E o colocará no quadro-negro da parede, onde os séculos XX e XXI estarão divididos em décadas. No espaço reservado a cada década, um cartão-postal de uma cidade e um parágrafo.
No espaço dos anos 1920, haverá o cartão de um cabaret burlesque da Berlim dadaísta. No dos anos 1930, haverá uma imagem de migrantes do mundo todo dançando tango em Buenos Aires. Os 1980 serão representados por uma foto de punks londrinos. Os anos 10 – de 2010 a 2020 – por um postal da “Comuna de Madri”. Melhor ainda: um cartão-postal da “Madri do comum”, uma cidade viva, transversal, oblíqua, intensamente social, com espaços públicos politizados, tecnologias livres, espaços autônomos e resilientes, reinvenções institucionais e novas pontes entre o “dentro” e o “fora”. Como será que os historiadores se lembrarão da Madri do comum, a cidade do cartão-postal que chegou ao futuro?
El Campo de Cebada, o poliesportivo público cuja construção nunca foi levada a cabo por causa da crise, se tornou uma das caras de Madri. O lugar, no histórico bairro da Latina, tem som de fundo: skate, basquete, burburinho de conversas. Vejo uma horta coletiva, espaços autoconstruídos, mobiliário feito com material reciclado. Num canto, um palco. Não conheço ninguém: os arquitetos, ativistas e membros das assembleias do 15M quase não vêm mais. Vejo cidadãos: adolescentes, aposentados, vizinhos, um ou outro turista. São eles que habitam o espaço. El Campo de Cebada não tem mais cara de espaço militante: é um espaço de todos e todas, aberto, difícil de controlar. O novo devir do Campo me parece um sucesso.
Nunca imaginei que esse poliesportivo em ruínas que fica a 200 metros da minha antiga casa fosse virar um espaço do comum que a prefeitura do conservador Partido Popular teve que ceder aos movimentos sociais. Há anos que Madri tem espaços coletivos cedidos pela prefeitura, quase sempre depois de tensões e ocupações. Esto es una Plaza, um jardim comunitário do bairro de Lavapiés que foi pioneiro no uso de ferramentas digitais para a autogestão, é um dos mais históricos. Mas El Campo de Cebada tem algo que outros espaços não têm: trata-se de um espaço aberto em que é difícil controlar o que acontece. É um espaço no qual os coletivos e articuladores iniciais praticaram o Do It For Others (DIFO): fazer, construir para que outros desfrutem do espaço. Nem sempre esses outros contribuem para o bem comum: há pessoas que deixam lixo no chão e grupos que querem apenas filmar um videoclipe patrocinado pela Red Bull porque El Campo de Cebada agora é chic. Ainda assim, o espaço sobrevive. Virou referência para outros espaços. Continua aberto. Mudando.
Já houve, por aqui, chuvas de assembleias, eventos culturais, aulas públicas, festivais. Coletivos de urbanistas articularam o processo de autoconstrução: bancos, hortas, a infraestrutura poliesportiva. No entanto, conversando em bares e encontros com algumas das pessoas mais envolvidas na gestão do Campo de Cebada, sinto que o momento é outro. Sinto cansaço. “Os que tornamos possível o Campo de Cebada não queremos mais tomar conta, participar”, comenta um dos envolvidos desde o início.
A época dos grandes ícones da autogestão madrilena parece chegar ao fim. La Tabacalera, por exemplo, continua viva, cheia de eventos e festivais. Mas os articuladores confessam que a autogestão dessa antiga fábrica de tabaco é desgastante e que não souberam resolver alguns problemas (o tráfico de drogas, por exemplo). A era acaba mas, ao mesmo tempo, esses grandes ícones do comum que são La Tabacalera, El Campo de Cebada ou a “ocupa” El Pátio Maravillas abriram horizontes: seu espírito espalhou-se pelos bairros. Madri tem hoje centenas de espaços autogestionados, ocupados, coletivos, do comum.
O projeto Los Madriles – Atlas de Iniciativas Vecinales, ainda em fase inicial, já mapeou 112 espaços da cidade que operam a partir da autogestão. Essa nova cartografia do comum de Madri inclui hortas urbanas, cooperativas culturais, “ocupas” (na Espanha, conhecidos como “Centros Sociales”), espaços voltados para a sustentabilidade, bancos de tempo (dentre os quais tem especial importância o Intercambiadero), espaços públicos articulados coletivamente, espaços de ensino e aprendizado (como o Instituto Do It YourSelf), cinemas comunitários (Cinema Usera), centrais térmicas auto gestionadas (Central Térmica de Orcasitas), mídia livre autônoma… E o mapa inicial de Los Madriles é só a ponta do iceberg.
Diego, do Todo por la Praxis, um dos coletivos envolvidos no mapa, confessa que a lista é bem maior: “O mapeamento deve incluir mais de 500 iniciativas. Tirando alguns projetos de bairro um pouco tradicionais, podemos falar de uns 300 projetos voltados para a autogestão”. Isso sem falar do crescente Mercado Social de Madri, que envolve centenas de cooperativas e empresas orientadas para o bem comum e para a sustentabilidade. Como foi possível a explosão social e coletiva da Cidade do Comum? Que cores, sabores, cheiros há no cartão-postal que chegará ao futuro?
Bebo vinho na banca La Siempre Llena, no Mercado de San Fernando, em Lavapiés. Arancha, velha conhecida no ecossistema social de Madri, me explica o “milagre” de um mercado tradicional que, no ano de 2010, estava à beira do abandono. Quando as bancas tradicionais de frutas, verduras, peixe, carne, começaram a fechar por causa da crise, os coletivos e vizinhos do bairro, talvez o mais ativista da Espanha, começaram a intervir, alugando bancas. “A maioria são cooperativas, grupos de amigos fazendo coisas juntos”, explica Arancha. O mercado não só renasceu, como também evitou o “raio gourmetizador” que transforma mercados de bairro em “mercados-caros-pra-turista-ver”. Em La Siempre Llena, encontro por acaso Enrique Flores, que relatou em quadrinhos a vida social dos últimos cinco anos de Madri. Imagino como seriam as ilustrações de Enrique do Mercado de San Fernando, com balões-conversas: livros ao peso em balanças de frutas em La Casqueria, sushi com quadrinhos mangá no restaurante japa, cooperativas ecológicas de fruta, bares históricos, bancas de queijos artesanais que tocam vinil no fim do dia, um estúdio de arquitetura sem muros, hackers que instalam software livre, danças coletivas de swing… O Mercado de San Fernando já faz parte da constelação de espaços madrilenos que poderíamos considerar Incubadoras do Comum, espaços transversais e conectores, oblíquos e transfronteiriços, assimétricos e multiplicadores.
A energia da cidade bebe de muitos lugares. Mas há três espaços sem os quais Madri não seria a Cidade do Comum: Traficantes de Sueños, MediaLab Prado e Intermediae. A explosão do 15M, das praças ocupadas, não teria sido possível sem muitos dos encontros e articulações desse trio. Sem que tenham conexão direta com tudo o que está acontecendo na cidade, destacar a importância dos três é um ato de justiça poética.
Rascunho então três micro-cartões-postais, micro-lembranças dos últimos tempos. No MediaLab Prado, um grupo de senhoras de certa idade tricota logo abaixo de um cartaz em que se lê Objetos Comunes, bem ao lado do fablab em que makers africanos trabalham com impressoras 3D. Marcos, por muitos anos uma das cabeças mais visíveis do MediaLab Prado, sorri quando fala: “Já não temos nada a mostrar, o Lab tem vida própria, comunidades com rotinas, eventos que nem controlamos”.
Na porta da nova sede da Traficantes de Sueños, cooperativa mítica, livraria, editora, espaço cultural, centro de aprendizado, Blas fuma um cigarro. Fala com orgulho do sucesso dos cursos Nociones Comunes. Um comentário chave sobre a nova sede da “Trafis”, numa rua comercial, perto de Tirso de Molina: “Agora chegamos a mais pessoas, temos que seduzir cidadãos que não estão nos circuitos militantes”.
Azuzena, que dirigiu o Intermediae por muito tempo, está mediando uma mesa sobre práticas urbanas. Jon, do coletivo Paisaje Transversal, um dos convidados, fala sobre a importância das metodologias para criar espaços colaborativos. Alguém da Tabacalera, na plateia, comenta dificuldades do processo. A fronteira entre a moderadora, os convidados e o público parece inexistente.
Lembro-me de algumas sessões de La Mesa Ciudadana, no Intermediae, entre especialistas, amadores, arquitetos, artistas, vizinhos e técnicos da prefeitura anterior. Lembro-me também de muitos coletivos que foram vitais na reinvenção de Madri, quando a maioria das instituições era hostil e só havia algumas brechas (como o MediaLab ou o Intermediae) nas quais eram possíveis a vida comum, a cidade, os encontros. Lembro-me deles: Vivero de Iniciativas Ciudadanas [VIC], Paisaje Transversal, Todo por la Praxis, Basurama, Zuloark, ChiquiTetos, Esto es una Plaza. Tem mais. Muitos mais. Nos últimos tempos ganharam visibilidade os Bancos Expropiados (sucursais de bancos fechadas que foram ocupadas e transformadas em centros sociais), la Casa Roja (um cinema e estúdio de cinema ocupado), La Dragona (que instalou um hackerspace no cemitério municipal La Almudena) ou La Gasoli (um posto de gasolina abandonado, transformado em centro social). Poucas cidades do mundo oferecem um repertório tão amplo, vibrante e eclético de centros sociais.
E penso, sorrindo, no novo paradigma cultural baseado na troca, no relacional, no transversal, que virou o DNA de Madri nos últimos anos. Um paradigma e algumas práticas que configuraram um imaginário que acabou conquistando a prefeitura com uma frente cidadã, Ahora Madrid, embebida do espírito do 15M e com um formato que vai bem além dos partidos clássicos. Como está funcionando o diálogo entre o Ahora Madrid e os movimentos? Como é a nova troca entre dentro e fora? Como é a relação entre o novo governo e o comum?
A rua Almendro 3, no bairro da Latina, é uma autêntica República das Crianças: tem assembleias mirins, que incluem até megafones. A criançada manda lançando ideias para transformar o espaço. Os pais mandam obedecendo. Alberto Nanclares, membro do coletivo Basurama, um dos envolvidos na gestão desse novo espaço do comum, reflete sobre os jogos, as ruínas, a crise, as crianças: “Adoro ver crianças brincando e sonhando sobre as ruínas, como nos filmes italianos do pós-guerra. A emoção e a energia que temos neste espaço parecem dos anos 1970, da era dos playgrounds do norte da Europa”. Ao explicar o “espaço em obras” da Almendro 3, Basurama divulga na internet um texto de Walter Benjamin, do qual cito um trecho: “As crianças constroem elas mesmas seu próprio mundo objetual, um mundo pequeno dentro do grande. A criançada manda, desobedece, desajusta as lógicas do lazer domesticado criado pelo poder público”.
A principal novidade do espaço na Almendro 3 é que ele é cedido pela prefeitura de Madri. A cessão faz parte de um pacote de três espaços cedidos a coletivos e vizinhos do bairro da Latina, para compensar a falta de espaços verdes e infantis do bairro. São espaços público-comuns. A prefeitura coloca alguns recursos e cede aos cidadãos a gestão desses espaços.
Uma das principais expectativas dos movimentos de Madri é que a nova prefeitura encontre outras formas de relação entre a “autonomia cidadã” e o “poder público”. O desejo: uma fórmula para parcerias público-comuns que vá além da cessão. Os limites da autogestão estão presentes em muitas conversas. A falta de recursos nesse tipo de cessão de espaços preocupa. Também preocupa que a existência de recursos acabe gerando processos de cooptação política e acabe matando os movimentos.
A grande esperança para achar um novo caminho é o “Marco Común: Espacios de Gestión Ciudadana de Madrid”, no qual trabalharam os membros da Red de Espacios Ciudadanos (REC). O marco sé o primeiro protocolo para cessão de espaços e prédios públicos a movimentos. . . Algumas cessões já estão em andamento, como a do antigo Mercado de Frutas e Verduras de Legazpi, onde diferentes movimentos já empreendem o codesign do espaço.
Outras cessões esperadas há algum tempo não aconteceram. Os membros do Pátio Maravillas, que esperam obter um espaço há meses, continuam esperando. Antonio, um dos participantes do Pátio Maravillas, me contava há uns meses que El Pátio Maravillas e La Morada (outro Centro Social do qual, recentemente, os ocupantes foram despejados) vão continuar ocupando de novo para pressionar a prefeitura.. A ocupação aconteceu o passado dia 12 de novembro, na rua San Mateo. A Policia Nacional despejou a “ocupa” um dia depois. Mas o Patio vai continuar ocupando. O comum tem vida própria, ritmos alheios às instituições
Por isso, o editor vintage de 2040 entenderá muito bem o espírito do cartão-postal da “Comuna de Madri”. E saberá que foram os cidadãos e os movimentos – e não a prefeitura e as instituições – os grandes protagonistas da cidade do comum.
Bernardo Gutiérrez
Jornalista, escritor e pesquisador hispano-brasileiro. Sua pesquisa é sobre política, movimentos sociais, cultura livre e processos tecnopolíticos.
Los Madriles
Projeto coletivo coordenado por La Federación Regional de Asociaciones Vecinales de Madrid (FRAVM), Zuloark + Lys Villalba, [VIC], Paisaje Transversal e Todo por la Praxis.
Como citar
GUTIÉRREZ, Bernardo. Madri do comum. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 9, p. 96-103, set. 2016.