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Texto de Roberto Andrés
Vaga, instalação de Tatiana Blass fotografada por Everton Ballardin
A promessa de que as pessoas poderiam compartilhar suas viagens, quartos vazios, ferramentas, habilidades com jardinagem ou computação, se transfigurou em precarização, sobretrabalho e desregulação. No centro disso está a propriedade de plataformas como Uber, Airbnb e Facebook.
“Nós somos os escravos modernos”, disse de supetão o motorista do Uber, avisando que a corrida não custaria nem metade do que estávamos prevendo. Engenheiro de formação, Ricardo está há pouco tempo no ramo do transporte urbano. Aquela viagem que eu compartilhava com amigos, numa ensolarada manhã de inverno, seria uma das últimas da sua jornada dupla que vinha desde as 16h do dia anterior.
No destino final, a corrida ficou em dez reais – algo em torno de 60% do que custariam bilhetes de ônibus para quatro pessoas. A Uber ficaria com R$3,50 e com o restante Ricardo teria que pagar seu tempo de trabalho, o combustível e os custos do carro. Trabalhar por 15 horas seguidas, sem dormir, tinha um objetivo: bater a meta de 99 corridas em três dias, para ganhar um bônus do aplicativo.
Ricardo vive em Belo Horizonte, mas sua situação é semelhante à de centenas de milhões de pessoas nas mais de 700 cidades em que a Uber opera em cinco continentes. Todas circulam com carros próprios, sem vínculo de trabalho que lhes dê amparo social, usando o aplicativo para gerar uma renda extra, para cobrir um período sem emprego ou mesmo como profissão. Na América Latina, segundo o site da empresa, o serviço está em 170 cidades, dentre elas quase todas as capitais nacionais e regionais.
Uber é o maior e o mais conhecido aplicativo de transporte sob demanda, mas não é o único. Companhias com muita presença no mercado asiático, como a Ola, na Índia, e a Grab Taxi, em Singapura, realizaram recentemente acordos de fusão ou não competição com a gigante norte-americana. Na China, a Didi Chuxing segue sendo a preferida dos usuários. Nos Estados Unidos, a Uber disputa com concorrentes como Lyft; no Brasil, com a espanhola Cabify e com a 99 POP, nascida a partir do aplicativo de táxis de mesmo nome.
A história de algumas dessas empresas acaba por ilustrar bem os descaminhos daquilo que se chama de “economia compartilhada”, desde sua origem em serviços mediados pela internet com viés comunitário, na década passada, até a formação de multinacionais bilionárias que dominam grandes mercados, formam oligopólios e fazem lobbies dos mais variados.
No longínquo ano de 2007 uma dupla de jovens criou um site para compartilhamento de caronas na Universidade Cornell, nos Estados Unidos. O serviço, de nome Zimride, basicamente transpunha para a internet o mural de caronas do campus – pedindo um login pelo Facebook, para que as pessoas fossem identificáveis e rastreáveis. O Zimride foi um grande sucesso e começou a receber rodadas de investimento de fundos de capital de risco.
Mas não se cria um unicórnio – apelido dado a startups que conquistam o mundo, como Facebook, Uber, Airbnb – com caronas em universidades. Em busca de um modelo escalável e rentável que atuasse num mercado amplo, a empresa criou o Lyft, um novo aplicativo que conectava motoristas e passageiros nas cidades, sem restrição aos campi. No início, o pagamento aos motoristas era facultativo, algo mais próximo do modelo de carona. Mas logo se percebeu que o serviço crescia e monetizava melhor se o pagamento fosse obrigatório, transformando o que era o compartilhamento de viagens que já iriam acontecer em uma prestação de serviço de transporte.
Na contramão veio a Uber, nascida como um aplicativo que conectava passageiros a serviços de transporte de luxo. Bastava apertar um botão no celular para que uma limousine aparecesse em sua porta – esta era a proposta de valor apresentada por Travis Kalanick, o fundador da empresa que foi recentemente afastado da direção por denúncias de assédio sexual, roubo de informação empresarial e tentativa de fraudar fiscalizações. Como tampouco nascem unicórnios em mercados de nicho, a Uber optou por atuar no segmento mais popular (e, em muitos lugares, clandestino) que seus executivos esnobavam. Assim nasceu o UberX, que basicamente permite a qualquer um que tenha um carro com menos de dez anos trabalhar como taxista.
Não deixa de ser curioso que, apesar das origens tão distintas, hoje Uber e Lyft ofereçam o mesmo serviço. Uma prometia compartilhamento de viagens entre universitários, reduzindo os custos e impactos ambientais dos traslados; a outra, uma opção prática para que ricos se deslocassem com glamour. Ambas se tornaram prestadoras de serviços de transporte sob demanda, com um modelo centrado na terceirização e na desregulação dos sistemas locais.
A história da Lyft exemplifica bem o que aconteceu com tantas outras startups, que nasceram para que as pessoas pudessem compartilhar seus quartos vazios, suas ferramentas, suas habilidades com jardinagem ou computação – e acabaram tornando-se prestadoras de serviços nessas áreas. Muitas dessas plataformas podem ter ajudado a quebrar monopólios, distribuir oportunidades e até mesmo a aumentar a eficiência dos mercados, mas é inegável que várias delas hoje se sustentam à custa de precarização, sobretrabalho, atuação nas margens da legalidade e não recolhimento de impostos.
O maior exemplo dessa transformação é o Airbnb, lançado em 2008 por rapazes que buscavam complementar sua renda para bancar o alto aluguel de São Francisco, na Califórnia, recebendo hóspedes em um colchão na sala. A proposta de valor da empresa era que cada um pudesse alugar por valores razoáveis espaços disponíveis em suas casas. O ganho seria duplo: para quem visita, custo baixo; para quem recebe, uma grana extra. Seriam quebrados, ainda, os monopólios das grandes cadeias de hotéis.
Menos de uma década depois, a realidade no Airbnb era outra. No livro Uberização – a nova onda do trabalho precarizado, publicado recentemente no Brasil, Tom Slee revela que apenas 25% do faturamento do Airbnb em Nova Iorque em 2014 veio do compartilhamento de casas em que os locatários moram. A maior parte diz respeito a imóveis vazios, destinados exclusivamente para aluguel. Meros 6% dos anfitriões, com mais de dois imóveis, fizeram 36% das receitas do Airbnb na cidade naquele ano.
Isso se repete em outros lugares, com variações numéricas, mas tendo em comum o fato de que crescem na plataforma proprietários com muitos imóveis, que os alugam durante o ano todo, competindo clandestinamente com os hotéis. A maior parte das reservas em cidades como Barcelona, Roma e Lisboa, ainda segundo os dados de Slee, beneficia anfitriões com mais de um imóvel. Em Istambul, esse número chega a 80%.
Ao fim das contas, o Airbnb reproduz a dinâmica existente, em que pessoas com capital adquirem imóveis para receber uma renda com aluguel. O problema é que isso é feito de maneira encoberta: afirma-se ser uma empresa de compartilhamento ocasional de espaços vazios, mas opera-se como uma agência de locação profissional de imóveis por temporadas curtas – sem recolher impostos ou obedecer às regulações locais.
Os mais prejudicados costumam ser pequenos hotéis e hospedagens econômicas, já que estes têm de registrar o negócio, pagar tributos, arcar com inspeções de incêndio, segurança e saúde. Os estados e municípios acabam também por ver reduzidos seus recolhimentos em taxas imobiliárias e turísticas. Mas as taxas, é claro, seguem existindo: elas deixam de ir para os cofres públicos e vão para a empresa intermediadora – no caso, a Airbnb e seus acionistas globais.
Para cidades com grande fluxo de turistas tudo isso gera impactos tremendos. Já há bairros em Paris que recebem, apenas no verão, mais hóspedes do Airbnb do que o número de pessoas que ali residem. Em Barcelona, a mera menção de investimentos públicos em certas áreas da cidade ativa uma dinâmica especulativa, em que fundos de investimento buscam comprar prédios inteiros para criar neles apartamentos de aluguel, conforme relata a secretária municipal de urbanismo Janet Sanz.
Esses movimentos imobiliários vorazes provocam a escalada dos aluguéis e a expulsão de parte da população dos centros urbanos. Por isso diversas cidades têm entrado em rota de colisão com o Airbnb, a fim de regular e fiscalizar esse mercado – e assim estabelecer políticas públicas que distribuam o fluxo de visitantes, que arrefeçam o impacto nos aluguéis, que equalizem os interesses dos moradores com as demandas turísticas.
Há uma ideologia difundida nesse meio de que as regulações seriam entraves a uma economia compartilhada, privilegiariam monopólios e encareceriam os serviços – em suma, uma herança passadista a ser superada pela tecnologia. Nas palavras de Trebor Scholz, professor da New School e pensador do trabalho na era digital, “o modelo de negócio dessas empresas é baseado na nulificação das leis”. Incentivando os próprios usuários a exercerem pressão sobre os poderes públicos, algumas companhias têm atuado como lobistas em busca da desregulação dos mais variados mercados.
Os graves problemas enfrentados por tantas cidades com o Airbnb mostram que a ausência de regulação pode favorecer a poucos e comprometer o interesse coletivo. Além disso, ao contrário do que se propaga, a desregulação não é exatamente uma novidade, e tampouco tem se mostrado eficiente em muitas áreas. Na ampla literatura sobre mobilidade urbana, abundam exemplos malsucedidos de extinção de regulações de táxis ou do transporte coletivo.
A cidade de Seattle, nos Estados Unidos, teve seu serviço de táxis regulado em 1914, mas em 1979 acreditou-se que o livre-mercado poderia funcionar melhor. A partir daquele ano, seria aberta a porta de entrada para novos taxistas e as tarifas seriam de livre definição. Aplicava-se o beabá de certas lições de economia, segundo as quais a livre competição tornaria os serviços melhores e a regulação seria feita pela “mão invisível” do mercado.
O resultado foi trágico. Segundo Craig Leisy, que atuava na área de estudos de consumo da prefeitura da cidade, “a oferta de táxis cresceu, as tarifas cresceram, a qualidade do serviço caiu e houve mais recusas de corridas”. Economistas ortodoxos podem estranhar a combinação de aumento da oferta com aumento dos preços, contrariando a lei da oferta e da procura, mas o problema talvez esteja mais no postulado do que na realidade que o desafia.
Como não se negocia o valor na porta do táxi, e tampouco há a opção de fazer uma ampla comparação de preços entre os taxistas, é praticamente impossível haver competição de fato nas tarifas. Em regiões de alta procura, os taxistas subiam muito os preços e, em outras, oscilavam bastante, criando instabilidades, espantando passageiros e aumentando a vacância. Mais táxis no trânsito e menos gente nos táxis resume os resultados. Alguns anos depois, optou-se por retomar as regulações em Seattle.
Não se trata aqui, obviamente, de defender regulações que privilegiem proprietários de licenças de táxis ou que mantenham serviços mal prestados em zonas de conforto, mas de perceber que a ausência de regulações não resulta, em tantas áreas, em melhoras para a coletividade. O sistema de mobilidade que nos falta deveria ser regulado não para atender a interesses corporativos, tampouco para potencializar o lucro de poucos, mas para maximizar o interesse coletivo.
Afinal, hoje as tarifas dos serviços de transporte sob demanda são reguladas por outra mão invisível: a dos donos dos aplicativos. Quando aterrissam numa cidade, os aplicativos praticam tarifas baixas para os usuários e bônus para os motoristas, operando no prejuízo. Começam depois a aumentar os preços conforme o público cresce, e retiram os bônus assim que adquirem motoristas suficientes. O propósito parece ser dominar o mercado e aniquilar os concorrentes, para então praticar preços cada vez mais altos. Conforme denunciam alguns críticos, a Uber utiliza dados dos usuários para definir as tarifas variáveis – não estranhe se a corrida ficar mais cara quando você estiver atrasado para o trabalho ou com a bateria do celular acabando.
Tomando-se o usuário do transporte urbano como um consumidor isolado, os aplicativos de transporte podem significar aprimoramento ou até libertação. Afinal, até outro dia éramos reféns de taxistas mal-humorados e de ônibus que nunca passavam, e agora temos opções práticas a preços razoáveis, com direito a balas e motoristas dóceis. Mas as cidades são ecossistemas em que as liberdades individuais impactam a esfera coletiva. E, aí, o debate é mais complexo.
Não são poucos os estudos que demonstram haver migração do transporte coletivo para Uber, Lyft e companhia. Uma pesquisa com 4 mil pessoas em diversas cidades americanas indicou que mais da metade das viagens feitas por aplicativos teriam sido realizadas a pé, de bicicleta, ônibus ou metrô se os serviços não existissem. “O consenso é cada vez maior de que esses serviços estão tornando o trânsito mais lento”, afirma Christo Wilson, professor de Ciência da Computação em Boston.
Em Nova Iorque, segundo o estudo de uma consultoria de transporte, o número de veículos de transporte sob demanda (somando táxis aos carros dos aplicativos) cresceu 59% entre 2013 e 2017. Uma parte desse enorme contingente pode ter tirado carros particulares das ruas, mas tudo indica que a parte mais significativa atrai usuários dos ônibus e metrôs. De toda maneira, cerca de um terço desses carros circula vazio, apenas emitindo poluentes e atrapalhando o trânsito.
Aqui, é preciso ter claro que, se todos os deslocamentos em uma cidade fossem feitos por táxi ou Uber, ninguém se moveria um centímetro. Só conseguimos nos deslocar em grandes cidades porque uma parcela relevante das viagens é feita em transporte coletivo e a pé, modais que ocupam pouco espaço. Automóveis particulares geram também poluição e acidentes numa escala algumas vezes maior que os ônibus – mesmo no caso da frota precária que circula nas cidades brasileiras – e muitas vezes maior que o metrô, por passageiro transportado.
A moral liberal que está por trás do ataque às regulações não dá conta da dinâmica urbana, ao ignorar as externalidades geradas por cada escolha. Uma ferramenta desenvolvida no Canadá, a calculadora de custos de viagens, permite comparar os custos individuais (dinheiro gasto, tempo) com os custos sociais (poluição, acidentes, trânsito) dos deslocamentos urbanos. Conclui-se que, para cada viagem em automóvel que custa R$1,00 para o indivíduo, onera-se a sociedade em R$9,00, enquanto em ônibus esse ônus é de somente R$1,50 (a ferramenta não faz o cálculo para metrô, que gera um ônus ainda menor). Utilizando modelos econômicos desse tipo não é difícil constatar, como fez o urbanista Rafael Lemieszek em seu mestrado, que em situações em que o Uber retira usuários do transporte coletivo, os custos sociais gerados com aumento de lentidão do trânsito, poluição do ar e acidentes podem facilmente exceder os valores dos ganhos obtidos pelos motoristas.
Em meados de 2014, quando estava se consolidando no mercado americano, a Uber divulgou que seus motoristas faturavam até 90 mil dólares por ano em cidades como Nova Iorque e San Francisco. A reação da imprensa foi de entusiasmo e reverberação da notícia, que “acabaria com a era dos taxistas mal pagos”, como colocado em manchete do Washington Post. Os salários de motoristas de táxi se aproximavam de 30 mil dólares anuais.
Os números foram celebrados por economistas e a enorme diferença foi posta na conta, por um lado, das regulações e licenças que prejudicariam os táxis e, por outro, da tecnologia que aumentaria a eficiência do Uber. Mas a história não se sustentou por muito tempo, e surgiu entre jornalistas a piada da busca infindável pelo unicórnio da Uber: ninguém encontrava, nas ruas, algum motorista que recebesse tal monta.
O fato é que os números divulgados eram de faturamento bruto em cidades específicas, e caíam enormemente quando se calculavam os diversos custos, conforme argumenta Tom Slee em seu livro. A taxa da Uber, de 20% naquele momento, somada ao valor fixo de um dólar por corrida, se igualava ao valor tomado pelos donos dos alvarás de táxis. Os gastos com combustível, manutenção, depreciação dos carros e pedágios representavam cerca da metade do faturamento.
O acerto de contas foi feito pela jornalista Emily Guendelsberger, da Filadélfia, que se cadastrou como motorista do aplicativo e foi ver, na prática, quanto conseguia receber com o trabalho. Ela chegou ao ganho de dezessete dólares por hora que, descontados as taxas e os custos, caíram para pouco mais da metade. O valor anual não chegava aos 30 mil dólares que costumavam ganhar os taxistas.
Em setembro de 2014, depois de ter alardeado os altos ganhos dos motoristas, a Uber aumentou a própria comissão em San Francisco para 25% e, no ano seguinte, passou para 30%. A tática é recorrente: assim que se consolida em uma cidade e torna os motoristas dependentes, a mordida do aplicativo aumenta. Em Belo Horizonte, onde Ricardo e outros motoristas deixam 35% do valor pago pelos passageiros com a Uber, essa taxa já foi de 20%. Perguntado certa vez sobre o porquê de aumentar as taxas, visto que o negócio estava equilibrado, o diretor financeiro da Uber, Brent Callinicos, foi direto ao ponto: “Porque nós podemos”.
A economia compartilhada pode conectar consumidores e prestadores de serviços de muitas maneiras, mas é a posse do aplicativo, como revela a sinceridade do executivo da Uber, que determina as regras do jogo. Não há neutralidade nessas regras e suas definições tendem a ser, conforme cresce a empresa e a participação de grandes acionistas, cada vez mais voltadas para a maximização dos lucros, à custa de quem presta os serviços.
Acessar é melhor que possuir. Esse é o título original de um artigo de Kevin Kelly, fundador da revista Wired, que foi publicado no Brasil na primeira edição de PISEAGRAMA, em 2011. O texto utiliza exemplos como o de que “viajamos por estradas que não possuímos” para argumentar que, em muitas situações, é mais conveniente que produtos e serviços sejam bens comuns a serem compartilhados – ao invés de propriedade individual.
Relendo o artigo após o boom da economia compartilhada, é impossível discordar da preferência pelo uso coletivo ao invés da posse individual, mas fica evidente que é preciso debater a propriedade das plataformas que tornam o compartilhamento possível. Para ficar no exemplo de Kelly, se as estradas pertencessem a uma empresa com práticas como a da Uber e não tivessem regulação que visasse ao interesse público, elas certamente não seriam um bem comum.
Em meados de 2014 o jornalista Natan Schneider conversou com pessoas que prestavam serviços na Mechanical Turk, uma plataforma da Amazon para contratação de serviços que vão da transcrição de notas fiscais à redação de artigos. Ele ouviu diversas reclamações, incluindo que contratantes podem avaliar os trabalhadores, mas não o contrário, que o trabalho pode ser rejeitado sem remuneração ou recurso, que não há piso de valor a ser pago. No decorrer da conversa, os trabalhadores começaram a se perguntar que regras escolheriam se a plataforma fosse deles.
A questão pode ser aplicada à maioria das plataformas que usamos. Se os bilhões de usuários que fazem o Facebook existir tivessem assento no conselho da empresa, seria permitido à plataforma coletar e vender dados pessoais? Se Ricardo e outros milhões de motoristas da Uber definissem as regras, haveria um bônus vinculado a sobretrabalho nos finais de semana? Se os usuários da Uber, que são pedestres na maior parte do tempo, pudessem decidir, não prefeririam uma frota elétrica, que não poluísse o ar que respiram?
A partir desses questionamentos, pesquisadores como Trebor Scholz e Natan Schneider têm trabalhado a ideia de cooperativismo de plataformapara contrapor ao que chamam de capitalismo de plataforma. Nos termos de Schneider, “por que uma cidade na Dinamarca ou no sul da China deve gerar lucros para algumas poucas pessoas no Vale do Silício, se elas podem criar suas próprias versões do Airbnb? Essas cidades poderiam ter plataformas cooperativas, que maximizariam o benefício coletivo”.
É fato que as novas plataformas globais constituem uma forma de imperialismo, operado a partir da intermediação. Senão, como falar dos bilhões que são sugados das economias de centenas de países, diariamente? Recursos que iam para cofres municipais nas taxas pagas por taxistas hoje vão para a taxa da Uber; valores que eram pagos em impostos pelos hotéis vão para o Airbnb; investimentos em marketing que iam para os veículos de imprensa nacionais são drenados pelo Facebook e outras redes que não produzem conteúdo.
A proposta por trás do cooperativismo de plataforma não é negar essas formas de intermediação – que podem de fato tornar a economia mais distribuída e eficiente, a vida mais simples e conectada – mas assumir o controle, com “propriedade comunitária e governança democrática”, nas palavras de Scholz. Afinal, quem disse que a inovação e todo o ferramental utilizado por startups (desenvolvimento ágil, prototipação, mensuração continuada, etc.) não pode ser aplicado no universo das cooperativas?
Há uma cena emergente nesse sentido. No Vale do Silício, uma cooperativa de trabalhadores chamada Loconomics permite que se contratem bombeiros, eletricistas, profissionais de limpeza, etc., num modelo similar ao de empresas como a Rabbit. Mas como donos da plataforma, na Loconomics os trabalhadores recebem quase a totalidade do valor pago pelo contratante e definem remunerações que consideram justas para os serviços.
Quem já vendeu fotografias em serviços como o Getty Images sabe que a maior parte do valor da venda fica para o site. Para contrapor a situação, um grupo de fotógrafos criou a Stocksy – uma plataforma que é propriedade dos artistas que ali vendem suas imagens. A taxa do fotógrafo é quase três vezes maior que a de concorrentes e, ao final do ano, a companhia distribui 90% de seus lucros para os coproprietários.
Baseado em Berlim, Fairmondo é um marketplace de produtos, tipo Amazon ou Ebay, mas tem em seu contrato social uma série de regras para manter seu funcionamento voltado para os interesses da comunidade. É possível se tornar sócio da empresa comprando quotas, mas com limites que tornam inviável que haja um acionista majoritário e que não deixam ninguém mandar na empresa sozinho. Cada pessoa tem um voto, independentemente do valor investido.
Diversas cooperativas de táxi têm criado os próprios aplicativos, de modo a operar com mais eficiência, conectadas às demandas dos passageiros nas cidades. Há também resultados promissores no poder público, como o Autolib, sistema de carros compartilhados da prefeitura de Paris, que permite aos cidadãos “acessar sem possuir”, mas também sem poluir o ar e sem gerar ruídos, num serviço desenhado para reduzir impactos dos deslocamentos na coletividade.
O crescimento de iniciativas como essas passa pela criação de leis que tornem a competição justa (é muito difícil para as cooperativas de táxis, com os custos que têm, competir com empresas como a Uber), deem amparo social aos trabalhadores e permitam a existência de modelos cooperativos que hoje não são previstos. Passa também pela criação de todo o ecossistema que já existe no universo das startups, como escolas, incubadoras e aceleradoras, fundos públicos de investimento, incentivos fiscais, etc., o que já começa a acontecer no mundo rico e pode ser visto em repositórios online como platform.coop, shareablee internet of ownership.
Há uma década, quando pessoas talentosas criaram ferramentas que prometiam aprimorar as maneiras como fazemos tantas coisas, aproveitar recursos locais e compartilhar de fato algo que não se estivesse usando, uma promessa se desenhou no horizonte. Se muito disso parece ter ficado para trás, o que falhou foi a visão de que seria possível agradar aqueles que visam somente à maximização dos lucros e, ao mesmo tempo, aqueles que são afetados diretamente pelas plataformas.
A promessa de uma verdadeira economia compartilhada ainda existe, com todas as possibilidades tecnológicas para se concretizar. Nada impede que nosso próximo aplicativo de transporte privilegie viagens que já iriam ocorrer, opere com dados abertos, incentive carros elétricos, promova remunerações justas e atue a favor do transporte coletivo. Mas, para isso, as regras deverão ser decididas por quem presta e por quem usa o serviço. Como coloca Trebor Scholz, “é muito difícil mudar substancialmente aquilo que você não possui”. Melhor que acessar é ter propriedade coletiva.
Tatiana Blass
Artista, participou da 29ª Bienal de São Paulo, ganhou o Prêmio PIPA e foi finalista do prêmio Nam June Paik. Integra as coleções Cisneros, MAC, SESC, Pinacoteca-SP e MAM-RJ.
Como citar
ANDRÉS, Roberto. Melhor que acessar. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 12, p. 66-73, ago. 2018.