MELHOR
QUE POSSUIR
Kevin Kelly
Percorro estradas que não possuo. Tenho acesso imediato a 99% das estradas e rodovias do mundo (com poucas exceções) porque elas são um bem comum. Nós todos temos o direito de acesso a essas ruas, pois pagamos os impostos locais. Para quase toda finalidade que eu consiga imaginar, as estradas do mundo me servem como se eu as possuísse. Ou ainda melhor do que se eu as possuísse, visto que não sou responsável pela manutenção das mesmas. Grande parte da infraestrutura pública oferece benefícios desse tipo.
A web também é um bem comum social. A web não é igual às vias públicas, que são “possuídas” pelo povo, mas, em termos de acesso e uso públicos, a web é um tipo de bem comum. Os benefícios da web me servem como se eu a possuísse. Eu posso tê-la na íntegra, a qualquer hora, com o estalar dos dedos. As bibliotecas partilham algumas dessas qualidades. Os conteúdos dos livros não são de domínio público, mas os livros, como dispositivos, garantem acesso público aos seus conhecimentos e informações, o que é, de certa forma, melhor do que possuí-los.
É muito provável que, em um futuro próximo, eu não “possua” música alguma, ou livros, ou filmes. Em vez disso, terei acesso imediato a todas as músicas, a todos os livros, a todos os filmes, usando um serviço sempre disponível, através de uma taxa de inscrição ou tarifa. Eu não comprarei – no sentido de decidir possuir – música individual alguma, ou livros, porque eu poderei, simplesmente, pedir para vê-los ou ouvi-las de acordo com a demanda do fluxo de TUDO. Eu talvez possa pagar por eles a granel, mas não os possuirei. A solicitação para apreciar uma obra é, portanto, separada de uma escolha mais complicada de querer ou não “possuí-la”. Eu posso consumir um filme, música ou livro sem ter que decidir sobre a posse.
Para muitas pessoas, esse tipo de acesso instantâneo e universal é melhor do que possuir, pois não há a responsabilidade de cuidar, guardar, classificar, catalogar, limpar ou conservar. Como livros, músicas e filmes ganham em acessibilidade pública, eles estão liderando a corrida para se tornarem bens comuns, ainda que possam não ser pagos através de impostos. Não é difícil imaginar outras mercadorias intangíveis se tornando bens comuns. Jogos, educação e informação sobre saúde estão, também, caminhando para essa direção.
Como as criações estão se tornando digitais, elas tendem a ser compartilhadas, mercadorias sem dono. Nós podemos repensar isso e dizer que, no reino dos bits, a propriedade em si torna-se mais um esforço social. A propriedade pode estar relacionada menos ao título e mais ao uso e ao controle. Uma ideia não pode ser possuída da maneira como o ouro pode; na verdade, uma ideia tem um valor reduzido, a menos que seja partilhada ou usada de alguma forma. Esse valor, paradoxalmente, pode aumentar à medida que a ideia for menos possuída privativamente. Mas, se ninguém possuí-la, quem ganha os benefícios do seu aumento de valor? No novo regime, os usuários geralmente presumirão muitas das tarefas que os proprietários antes tinham. E assim, de certo modo, o uso torna-se propriedade.
De acordo com o princípio da desmaterialização, todos os bens estão tendo seus átomos infundidos com bits, diminuindo seu peso a cada atualização, de modo que todos os bens materiais se comportam, cada vez mais, como se fossem serviços inatingíveis. Isso significa que madeira, aço, químicos, comida, carros, aviões – isto é, tudo aquilo que é feito – podem, também, ser governados pelos princípios dos bens inatingíveis. À medida que os bens se tornam desincorporados, infundidos com pedaços de mente e cheios de bits, eles também irão obedecer às novas dinâmicas da propriedade. Muito em breve, todos os manufaturados, potencialmente, tornar-se-ão propriedade social.
Nosso senso de propriedade é algo engraçado. Se você compra um livro eletrônico e faz o download do livro em formato PDF para seu computador, você diria que o possui e que conta com os direitos de propriedade. Contudo, se você clica em um link e o PDF de um livro é aberto na sua tela, gratuito e automaticamente, você pode não sentir que possui o livro, mesmo se tiver sido copiado no disco rígido do computador. A posse de uma cópia acaba sendo menos importante no sentimento de posse do que o preço. As coisas gratuitas não geram fortes sentimentos de posse. Se um item possui um valor de custo zero, nós tendemos a não sentir que o possuímos. Assim, quanto mais a atividade econômica gravita para o gratuito, menos haverá o sentimento de posse. À medida que mais coisas são partilhadas, menos funcionam como posses.
Dividir não é muito diferente de alugar. Poderíamos dizer que a economia partilhada que atualmente emerge da mídia social é, na verdade, uma economia de aluguel. Mas não usamos a palavra “alugar” de forma lógica. Quando assistimos a um filme em um canal de TV paga, estamos alugando-o, mesmo que não usemos essa palavra. Usamos um filme (filmes são usados quando assisitidos) sem possuí-lo; em vez disso pagamos pelo direito de pegar emprestado. Isso é alugar. A principal razão de não usarmos habitualmente a metáfora do “aluguel” para bens digitais está no fato de associarmos o aluguel com coisas, não com serviços. Não parece com alugar porque não há nenhuma unidade visível para ser trocada. Nós alugamos um paletó, mas não alugamos um serviço de internet. Mas, quando alugamos, estamos repartindo o custo da propriedade com um grupo. A propriedade legal pode residir na companhia de aluguel, mas a efetiva propriedade – a propriedade de uso – é mantida pelo grupo que pega emprestado o bem ou o serviço.
Em uma relação de aluguel, o locatário desfruta de muitos dos benefícios de propriedade, mas sem a necessidade de capital ou de manutenção. É claro que os locatários estão também em desvantagem, porque eles podem não ganhar todos os benefícios de uma posse tradicional, como os direitos de modificação, acesso a longo prazo ou mais-valias. A invenção do aluguel não ficou muito atrás da invenção de propriedade e, hoje, você pode alugar quase qualquer coisa. As bolsas femininas, por exemplo, movimentam US$9 bilhões na indústria de varejo dos Estados Unidos. No topo da linha estão as bolsas de marcas famosas vendidas por US$500 ou mais. Em grandes cidades, uma pessoa pode alugar bolsas de uma aristocrática vitrine de aluguel. Ou qualquer pessoa pode ir a um dos sites que oferecem o serviço de aluguel de bolsas online e alugar um exemplar de uma bolsa bem cara para seu uso. Os aluguéis prosperam porque, para muitos consumidores, isso é melhor do que possuir. Bolsas podem ser trocadas para combinar com roupas, devolvidas e, assim, não será preciso armazená-las. Para usos de curto prazo, a posse compartilhada faz sentido. E, para muitas das coisas que usaremos no mundo que vem por aí, o uso em curto prazo será a norma.
Na medida em que mais itens são inventados e manufaturados – enquanto o número total de horas para desfrutá-los em um dia permanece fixo –, gastamos menos e menos tempo por item. Em outras palavras, a tendência de longo prazo em nossas vidas é a de que todos os bens e os serviços serão para usos em curto prazo. Assim, todos os bens e os serviços são candidatos ao aluguel, à divisão, ao bem comum social.
Locação, licença, arrendamento, leasing, assinaturas são tipos de posse compartilhada. A última guinada da posse compartilhada de mercadorias físicas e tangíveis é chamada de posse fracionada. Regimes populares de posse fracionada garantem ao co-proprietário um certo número de horas de voo em um jato privado para o destino de sua escolha, ou dirigir um super carro por 5,000 milhas por ano, ou gastar um número limitado de dias em um resort. Com a posse fracionada, você também pode dividir a posse de um time de esporte, de uma corrida de cavalo ou de uma vinheda. Um site construído para promover a posse fracionada de bens essencialmente luxuosos anuncia desta maneira: “A posse fracionada e a propriedade-compartilhada oferecem a maneira ideal para obter o máximo proveito do seu investimento, comprando apenas as partes ou o tempo que você deseja de uma propriedade. Todos os outros aspectos são divididos, tanto os benefícios quanto os custos, entre um número limitado de membros acionistas.”
A desvantagem de um negócio tradicional de locação é a natureza “rival” das mercadorias físicas. Rival significa que há um jogo de soma nula; somente um rival prevalece. Se eu estou alugando o seu barco, ninguém mais pode. Se eu alugo uma bolsa para você, não posso alugar a mesma bolsa para outra pessoa. Para aumentar seu negócio de locação você tem que comprar mais barcos ou bolsas. Mas é claro que os bens e os serviços intangíveis não funcionam dessa maneira. Eles são “sem-rival”, o que quer dizer que você pode locar o mesmo filme para quantas pessoas quiserem alugá-lo numa dada hora. Compartilhar bens intangíveis funciona magnificamente. Essa habilidade de dividir em larga escala, sem diminuir a satisfação do locatário individual, é transformadora. O uso total do custo cai precipitadamente (dividido por milhões ao invés de um). De repente, a posse não é tão importante. Por que possuir, quando você pode ter o mesmo proveito alugando, arrendando, licenciando, compartilhando?
Mas o mais importante é questionar por que possuir. Por que ter a posse completa de algo, se você tem acesso instantâneo, constante, durável e completo a isso? Se você vivesse dentro da maior loja de aluguéis do mundo, por que você possuiria algo? Se você pode alugar tudo o que precisa, sem possuir, você ganha os mesmos benefícios com poucas desvantagens.
A internet é como uma loja mágica de locação. O “porão” virtual é infinito e provê acesso infinito a seus pertences. Cada vez mais, há menos razões para se ter algo. Através do omniacesso, o cidadão mais comum pode dispor de um bem ou serviço tão rápidamente quanto se o comprasse. A qualidade da mercadoria é igual à daquela que você pode possuir e, em alguns casos, pode ser mais rápido dispor de algumas coisas do que encontrá-las você mesmo, no seu próprio “porão”.
O acesso é tão superior à propriedade ou à posse, que deve guiar a economia emergente dos bens intangíveis. O principal obstáculo à conversão total da propriedade ao omniacesso está relacionado com questões de modificação e controle. Nos regimes tradicionais de posse, somente os proprietários têm o direito de modificar ou controlar o uso da propriedade. O direito de modificação não é transferido nos acordos de locação, arrendamento ou licença. Mas eles são transferidos aos conteúdos e ferramentas de sistemas abertos (open source), razão do seu grande atrativo nesse novo domínio. A habilidade e o direito de melhorar, personalizar ou adequar o que é dividido será o ingrediente principal no avanço do omniacesso. E à medida que a habilidade de modificar for arrancada dos modelos clássicos de propriedade (pense naquelas garantias bobas), a posse perde força.
O acesso deixa a posse para trás. Acessar é melhor do que possuir.
Kevin Kelly
Co-fundador da revista Wired. É autodidata e vive na Califórnia.
Como citar
KELLY, Kevin. Melhor que possuir. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 1, p. 23-25, jan. 2010.